Ameaças
a aborto legal revelam política “patriarcal” e “intimidatória”, diz antropóloga
O
Brasil voltou a testemunhar cenas brutais de violência contra as mulheres.
Tentativas de feminicídio, casos de agressões e mortes cruéis têm sido
registradas em diversas regiões do país, na última semana. Segundo dados do
Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2025, mais de 2,7 mil mulheres foram
vítimas de agressões graves e pelo menos 1.075 foram assassinadas por
feminicídio.
Nesse
contexto de misoginia estrutural e persistente, um novo ataque aos direitos das
mulheres avança no Congresso. A Câmara dos Deputados aprovou, em 05 de
novembro, o Projeto de Decreto Legislativo 3/25, que, na prática, suspende os
efeitos da Resolução 258/2024 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente (Conanda), que trata do atendimento humanizado e acesso ao aborto
legal às meninas e adolescentes vítimas de violência sexual.
Para
refletir sobre este retrocesso no direito ao aborto legal e seguro, o Pauta
Pública entrevistou a antropóloga, professora e escritora Débora Diniz,
referência central no debate sobre direitos reprodutivos no Brasil. Diniz
explica o que está em jogo quando parlamentares usam o aborto como “combustível
político” e não como um problema social que resulta em uma média de 57 meninas
menores de 14 anos, dando à luz por dia.
“O
debate sobre o aborto entra nas chamadas questões sensíveis ou identitárias,
uma forma de desqualificar a urgência dessas questões.” alerta.
Ela
também aponta que um possível caminho para o avanço neste debate é ampliar a
diversidade de vozes no poder. “Nós precisamos de outras pessoas fazendo
política no Brasil, mulheres e juventudes diversas. Não podemos aceitar uma
introjeção de uma obediência antecipada, que é aquilo que nós chamamos de: ‘se
vocês falarem de aborto, vai vir uma resposta ainda pior’”, afirma.
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Leia os principais pontos da conversa:
• Como está o atual andamento do Projeto
de Decreto Legislativo 3/25 e por que é um retrocesso e um perigo para as
crianças e adolescentes?
[O
projeto] está em tramitação no Congresso Nacional desde o ano passado. As
tentativas desse conjunto de parlamentares que tentam impor maiores restrições
ao aborto, em particular ao aborto legal, vêm sofrendo grande resistência
social, com a campanha Criança Não é Mãe, com uma forte adesão de pessoas muito
diferentes na vida política brasileira. O que é muito importante, porque essa é
uma reação muito forte da sociedade brasileira.
Mas
está lá agora, eu diria, dormente, à espera de uma oportunidade da sua
movimentação mais uma vez. Eu o descreveria como uma permanente ameaça
política, não necessariamente apenas às meninas, aos direitos das mulheres, ao
futuro dessas meninas, mas como uma ameaça política. Nas negociações mais
amplas da política partidária brasileira. A depender da situação, é um
acelerador de problemas nas negociações políticas.
Esse é
um processo legislativo que está fazendo uma confusão sobre uma resolução. [É]
uma norma do Conanda, o Conselho de Direitos das Crianças e Adolescentes. No
executivo, existem órgãos relativos a políticas públicas, das quais desenham o
que nós chamamos de normas infralegais. São normas de resoluções, desenhos de
políticas, etc. O Conanda é um desses
órgãos. Ele não cria lei e nem uma nova norma, e, sim, organiza aquilo que o
Congresso Nacional já definiu. Aquilo que está no marco constitucional, que está
no Código Penal, no Código Civil.
O que o
Conanda fez foi dizer: olha, há muitas barreiras e incompreensões sobre como
cuidar de meninas de 9 a 14 anos que sofreram uma violência sexual. Nós estamos
falando de situações dramáticas. O Brasil tem uma média de 57 meninas por dia
que estão dando à luz. Ou seja, é uma barreira de acesso àquilo que está
determinado na nossa norma legal.
Como a
possibilidade de acesso a um aborto legal [de gravidez fruto de estupro] é
presumido pela lei, se essas meninas não estão conseguindo ter acesso, é porque
tem alguma coisa de muito errado. A forma de operar desses parlamentares que
disseram: vamos fazer um PDL [Projeto de Decreto Legislativo] para restringir
ainda mais. Para responder essa resolução [sobre] os direitos das meninas de
acessarem o aborto. Então, vai se colocar barreiras que não estão no marco
legal.
• O debate político sobre o aborto ainda
vem pautado pelo pecado e pelo tabu. Parece que falta coragem ainda hoje de
pautar o tema com a urgência necessária. Por que você acha que isso ainda
acontece? Os políticos estão preparados para essa conversa?
Primeiro,
é importante dizer por que isso [ o debate sobre o aborto] se mantém como uma
moeda de troca, como uma ameaça no debate político brasileiro. As razões talvez
sejam múltiplas, mas uma delas ainda é muito forte, sobre a forma de fazer
política no Brasil.
Nós
ainda temos uma política fortemente patriarcal, liderada por homens, uma forte
presença religiosa, como uma característica intimidatória na política, não
apenas como uma expressão de convicções filosóficas e religiosas.
Essa
natureza muito patriarcal e muito intimidatória da forma de fazer política
brasileira, dificulta uma diversificação de vozes, que é isso que nós estamos
chamando de coragem, de uma diversificação de circulação, de representação, e
de um agendamento da política brasileira.
Por
isso, é muito importante saber sobre quem está no poder. Nós olhamos as grandes
oligarquias no poder [e vemos] uma forte presença masculina. E de uma forma de
masculinidade que vai traçar as fronteiras daquilo que é considerado urgente à
política brasileira, à saúde das meninas e ao direito das mulheres, que acabam
ficando à margem dessa forma de fazer política.
Há uma
característica nas formas de se fazer aliança e nas formas de se fazer o
confronto que ela é intimidatória. As questões com esse forte potencial de uma
combustão moral, pelo contágio, pelas redes, elas se tornam as chamadas
questões sensíveis ou identitárias. Isso é uma forma de desqualificar a
urgência dessas questões. O mais difícil para nós é que isso atravessa o
espectro político.
Há um
atravessamento, dada a permanência de homens no poder, na política, uma forma
de fazer política. Inclusive, naquilo que se esperaria com uma maior coerência,
que seria nos partidos de esquerda. Mas essa lógica patriarcal da política, faz
com que eles também estejam confusos sobre como falar, sobre como tratar essa
matéria, que não seja na intimidação política.
• Como a gente combate isso?
Precisamos
de outras pessoas fazendo política no Brasil. Precisamos de mulheres e
juventudes diversas. A história da política argentina é um exemplo. Ela vai
transformar a lei do aborto em uma mudança de quem está compondo o Congresso
Nacional/Parlamento argentino. Então é muito importante uma diversidade na
participação política.
Por
outro lado, nós não podemos nunca abdicar de acreditar que a política, e a
forma de fazer política, não pode ser pela intimidação. Ela não pode ser por
uso dessas matérias, como matérias de fragmentação, de polarização. Não
podemos, como um campo progressista, ou como um campo que acredita que os
direitos das meninas tenham que estar na pauta, aceitar uma introjeção de uma
obediência antecipada, que é aquilo que nós chamamos de: ‘se vocês falarem de
aborto, vai vir uma resposta ainda pior para vocês’.
Nós
precisamos desacreditar essas previsões catastróficas da política. Todas as
vezes que vamos anunciar questões como racismo, como direito das mulheres, como
aborto, não é só aborto, as previsões catastróficas de que isso vai levar a uma
perda da possibilidade de eleição, ou um alinhamento da extrema direita, elas
são profecias autorealizadas.
Nós não
podemos nem tentar essas formas de desenvolver criatividade sobre como falar
[sobre] essa matéria. Então, nós temos uma criatividade política que está
associada ao que você chamou de coragem, mas uma criatividade política muito
limitada, muito pobre, pela introjeção da punição como algo que regula a forma
de fazer política.
• Legalização do aborto e mulheres
morrendo sangrando. Por Nina Lemos
No dia
8 de setembro, a chefe de cozinha Paloma Alves Moura, de 46 anos, procurou um
pronto-socorro em Olinda, Pernambuco, sentindo fortes dores e apresentando
hemorragia uterina. Depois de passar o dia sangrando, ela morreu de parada
cardiorrespiratória. Segundo amigas que acompanhavam a chefe, funcionários do
hospital a teriam tratado com negligência por acharem que ela sofria
consequências de uma tentativa de aborto.
O
Hospital e Maternidade Tricentenário, onde Paloma foi atendida, nega essa
versão e afirma que a paciente esperava remoção para um centro de saúde que
estivesse preparado para lidar com casos de maior complexidade.
A
versão das amigas de Paloma e suas amigas ainda precisa ser confirmada. Mas uma
coisa é certa: ela não estava grávida e não tinha tentado um aborto caseiro. A
mulher sofria de endometriose e tinha um mioma uterino.
Não
podemos afirmar com certeza que ela foi tratada com negligência porque
funcionários do hospital desconfiaram de um aborto, mas, ao mesmo tempo, também
nao é impossível imaginar um cenário desses em um país onde o aborto (e,
consequentemente, a vida das mulheres) é tratado com fanatismo e ódio cego.
Mullheres
que fazem abortos ilegais no Brasil aindas estão sujeitas a todo tipo de
descaso e violência. Muitas ainda são punidas com a morte por optarem por não
seguir com uma gravidez. O horror que cerca a prática do aborto é tão grande no
país que não parece impossível que uma mulher tenha morrido punida por um
suposto aborto que ela nunca fez.
Paloma
não merecia ter morrido assim. E, claro, mulheres que são vítimas de sequelas
de aborto induzido também não. E elas são muitas. De acordo com pesquisa
realizada pela rede Gênero e Número, 483 mulheres morreram por aborto no Brasil
entre 2012 e 2022. No caso de "falhas na tentativa de aborto", uma
mulher vem a óbito a cada 28 internações em hospitais públicos.
Essas
mortes, é importante lembrar, atingem principalmente mulheres de baixa renda,
pretas e pardas.
Como
todo mundo sabe (mas muitos fingem que não), mulheres de classes mais altas e
maior poder aquisitivo fazem aborto no Brasil em clínicas ilegais particulares
sem grandes problemas. Conheço muitas mulheres que já fizeram. Nenhuma delas
teve complicações ou morreu. Aborto seguro no Brasil é, sobretudo, uma questão
de classe, o que é um disparate que precisa acabar.
Este é
um assunto de saúde pública. Estamos falando de impedir que mulheres morram.
Simples assim.
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Luz no fim do túnel?
A
descriminalização do aborto é urgente porque mulheres precisam parar de morrer.
Mas será que podemos ter esperanças?
Semana
passada, vimos uma luz, mesmo que pequena, no fim do túnel. Na sexta-feira
(17/10), o ministro Luís Roberto Barroso, antes de se aposentar do Supremo
Tribunal Federal (STF), votou sim pela legalização do aborto até 12 semanas de
gestação. A votação tinha sido aberta pela ministra Rosa Weber em 2023, também
antes de se aposentar. O processo foi suspenso depois do voto de Barroso e
precisa ser novamente reaberto, o que depende do atual presidente do Supremo,
Edson Fachin.
Em seu
voto, Barroso disse o óbvio, uma frase que nós, mulheres, repetimos há séculos:
"Se os homens engravidassem, o aborto já não seria tratado como crime há
muito tempo". Isso acontece, entre outras coisas, porque ainda são os
homens, em grande maioria, que fazem e votam as leis, certo?
Apesar
desse fato histórico e positivo, é preciso estar atento. Os poucos direitos das
mulheres, conquistados com muito custo, continuam ameaçados, ainda mais em
época de avanço da extrema direita e do fundamentalismo.
Ao
mesmo tempo em que a pauta caminha, muito lentamente, no STF, a Comissão dos
Direitos Humanos do Senado aprovou, também na semana passada, um Projeto de Lei
que proíbe o aborto após a 22ª semana de gestação mesmo em casos de
anencefalia, estupro e quando houver risco de vida para a gestante. Sim, eles
querem que mulheres que foram estupradas sejam punidas novamente, e que aquelas
que correm risco de morte sejam obrigadas a gerar fetos incompatíveis com a
vida. Isso mostra uma crueldade e um descaso pela vida das mulheres sem
limites.
O texto
ainda precisa ser aprovado por outras comissões antes de ir a plenário. Mas só
o fato de que existem políticos pensando em submeter mulheres a essa tortura já
mostra o quanto o direito à vida das mulheres continua ameaçado e sendo tratado
com desdém.
O que
querem, que mais mulheres sangrem até a morte? E sim, essas pessoas se dizem
protetoras da vida, mas desprezam completamente a vida e a dignidade de
mulheres, principalmente das mais pobres e vulneráveis.
É
preciso estar atento e forte.
Fonte:
Por Andrea DiP, Sofia Amaral, Ricardo Terto e Stela Diogo, para Agencia
Publica/DW Brasil

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