quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Ameaças a aborto legal revelam política “patriarcal” e “intimidatória”, diz antropóloga

O Brasil voltou a testemunhar cenas brutais de violência contra as mulheres. Tentativas de feminicídio, casos de agressões e mortes cruéis têm sido registradas em diversas regiões do país, na última semana. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2025, mais de 2,7 mil mulheres foram vítimas de agressões graves e pelo menos 1.075 foram assassinadas por feminicídio.

Nesse contexto de misoginia estrutural e persistente, um novo ataque aos direitos das mulheres avança no Congresso. A Câmara dos Deputados aprovou, em 05 de novembro, o Projeto de Decreto Legislativo 3/25, que, na prática, suspende os efeitos da Resolução 258/2024 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que trata do atendimento humanizado e acesso ao aborto legal às meninas e adolescentes vítimas de violência sexual.

Para refletir sobre este retrocesso no direito ao aborto legal e seguro, o Pauta Pública entrevistou a antropóloga, professora e escritora Débora Diniz, referência central no debate sobre direitos reprodutivos no Brasil. Diniz explica o que está em jogo quando parlamentares usam o aborto como “combustível político” e não como um problema social que resulta em uma média de 57 meninas menores de 14 anos, dando à luz por dia.

“O debate sobre o aborto entra nas chamadas questões sensíveis ou identitárias, uma forma de desqualificar a urgência dessas questões.” alerta.

Ela também aponta que um possível caminho para o avanço neste debate é ampliar a diversidade de vozes no poder. “Nós precisamos de outras pessoas fazendo política no Brasil, mulheres e juventudes diversas. Não podemos aceitar uma introjeção de uma obediência antecipada, que é aquilo que nós chamamos de: ‘se vocês falarem de aborto, vai vir uma resposta ainda pior’”, afirma.

>>>> Leia os principais pontos da conversa:

•        Como está o atual andamento do Projeto de Decreto Legislativo 3/25 e por que é um retrocesso e um perigo para as crianças e adolescentes?

[O projeto] está em tramitação no Congresso Nacional desde o ano passado. As tentativas desse conjunto de parlamentares que tentam impor maiores restrições ao aborto, em particular ao aborto legal, vêm sofrendo grande resistência social, com a campanha Criança Não é Mãe, com uma forte adesão de pessoas muito diferentes na vida política brasileira. O que é muito importante, porque essa é uma reação muito forte da sociedade brasileira.

Mas está lá agora, eu diria, dormente, à espera de uma oportunidade da sua movimentação mais uma vez. Eu o descreveria como uma permanente ameaça política, não necessariamente apenas às meninas, aos direitos das mulheres, ao futuro dessas meninas, mas como uma ameaça política. Nas negociações mais amplas da política partidária brasileira. A depender da situação, é um acelerador de problemas nas negociações políticas.

Esse é um processo legislativo que está fazendo uma confusão sobre uma resolução. [É] uma norma do Conanda, o Conselho de Direitos das Crianças e Adolescentes. No executivo, existem órgãos relativos a políticas públicas, das quais desenham o que nós chamamos de normas infralegais. São normas de resoluções, desenhos de políticas, etc. O Conanda  é um desses órgãos. Ele não cria lei e nem uma nova norma, e, sim, organiza aquilo que o Congresso Nacional já definiu. Aquilo que está no marco constitucional, que está no Código Penal, no Código Civil.

O que o Conanda fez foi dizer: olha, há muitas barreiras e incompreensões sobre como cuidar de meninas de 9 a 14 anos que sofreram uma violência sexual. Nós estamos falando de situações dramáticas. O Brasil tem uma média de 57 meninas por dia que estão dando à luz. Ou seja, é uma barreira de acesso àquilo que está determinado na nossa norma legal.

Como a possibilidade de acesso a um aborto legal [de gravidez fruto de estupro] é presumido pela lei, se essas meninas não estão conseguindo ter acesso, é porque tem alguma coisa de muito errado. A forma de operar desses parlamentares que disseram: vamos fazer um PDL [Projeto de Decreto Legislativo] para restringir ainda mais. Para responder essa resolução [sobre] os direitos das meninas de acessarem o aborto. Então, vai se colocar barreiras que não estão no marco legal.

•        O debate político sobre o aborto ainda vem pautado pelo pecado e pelo tabu. Parece que falta coragem ainda hoje de pautar o tema com a urgência necessária. Por que você acha que isso ainda acontece? Os políticos estão preparados para essa conversa?

Primeiro, é importante dizer por que isso [ o debate sobre o aborto] se mantém como uma moeda de troca, como uma ameaça no debate político brasileiro. As razões talvez sejam múltiplas, mas uma delas ainda é muito forte, sobre a forma de fazer política no Brasil.

Nós ainda temos uma política fortemente patriarcal, liderada por homens, uma forte presença religiosa, como uma característica intimidatória na política, não apenas como uma expressão de convicções filosóficas e religiosas.

Essa natureza muito patriarcal e muito intimidatória da forma de fazer política brasileira, dificulta uma diversificação de vozes, que é isso que nós estamos chamando de coragem, de uma diversificação de circulação, de representação, e de um agendamento da política brasileira.

Por isso, é muito importante saber sobre quem está no poder. Nós olhamos as grandes oligarquias no poder [e vemos] uma forte presença masculina. E de uma forma de masculinidade que vai traçar as fronteiras daquilo que é considerado urgente à política brasileira, à saúde das meninas e ao direito das mulheres, que acabam ficando à margem dessa forma de fazer política.

Há uma característica nas formas de se fazer aliança e nas formas de se fazer o confronto que ela é intimidatória. As questões com esse forte potencial de uma combustão moral, pelo contágio, pelas redes, elas se tornam as chamadas questões sensíveis ou identitárias. Isso é uma forma de desqualificar a urgência dessas questões. O mais difícil para nós é que isso atravessa o espectro político.

Há um atravessamento, dada a permanência de homens no poder, na política, uma forma de fazer política. Inclusive, naquilo que se esperaria com uma maior coerência, que seria nos partidos de esquerda. Mas essa lógica patriarcal da política, faz com que eles também estejam confusos sobre como falar, sobre como tratar essa matéria, que não seja na intimidação política.

•        Como a gente combate isso?

Precisamos de outras pessoas fazendo política no Brasil. Precisamos de mulheres e juventudes diversas. A história da política argentina é um exemplo. Ela vai transformar a lei do aborto em uma mudança de quem está compondo o Congresso Nacional/Parlamento argentino. Então é muito importante uma diversidade na participação política.

Por outro lado, nós não podemos nunca abdicar de acreditar que a política, e a forma de fazer política, não pode ser pela intimidação. Ela não pode ser por uso dessas matérias, como matérias de fragmentação, de polarização. Não podemos, como um campo progressista, ou como um campo que acredita que os direitos das meninas tenham que estar na pauta, aceitar uma introjeção de uma obediência antecipada, que é aquilo que nós chamamos de: ‘se vocês falarem de aborto, vai vir uma resposta ainda pior para vocês’.

Nós precisamos desacreditar essas previsões catastróficas da política. Todas as vezes que vamos anunciar questões como racismo, como direito das mulheres, como aborto, não é só aborto, as previsões catastróficas de que isso vai levar a uma perda da possibilidade de eleição, ou um alinhamento da extrema direita, elas são profecias autorealizadas.

Nós não podemos nem tentar essas formas de desenvolver criatividade sobre como falar [sobre] essa matéria. Então, nós temos uma criatividade política que está associada ao que você chamou de coragem, mas uma criatividade política muito limitada, muito pobre, pela introjeção da punição como algo que regula a forma de fazer política.

•        Legalização do aborto e mulheres morrendo sangrando. Por Nina Lemos

No dia 8 de setembro, a chefe de cozinha Paloma Alves Moura, de 46 anos, procurou um pronto-socorro em Olinda, Pernambuco, sentindo fortes dores e apresentando hemorragia uterina. Depois de passar o dia sangrando, ela morreu de parada cardiorrespiratória. Segundo amigas que acompanhavam a chefe, funcionários do hospital a teriam tratado com negligência por acharem que ela sofria consequências de uma tentativa de aborto.

O Hospital e Maternidade Tricentenário, onde Paloma foi atendida, nega essa versão e afirma que a paciente esperava remoção para um centro de saúde que estivesse preparado para lidar com casos de maior complexidade.

A versão das amigas de Paloma e suas amigas ainda precisa ser confirmada. Mas uma coisa é certa: ela não estava grávida e não tinha tentado um aborto caseiro. A mulher sofria de endometriose e tinha um mioma uterino.

Não podemos afirmar com certeza que ela foi tratada com negligência porque funcionários do hospital desconfiaram de um aborto, mas, ao mesmo tempo, também nao é impossível imaginar um cenário desses em um país onde o aborto (e, consequentemente, a vida das mulheres) é tratado com fanatismo e ódio cego.

Mullheres que fazem abortos ilegais no Brasil aindas estão sujeitas a todo tipo de descaso e violência. Muitas ainda são punidas com a morte por optarem por não seguir com uma gravidez. O horror que cerca a prática do aborto é tão grande no país que não parece impossível que uma mulher tenha morrido punida por um suposto aborto que ela nunca fez.

Paloma não merecia ter morrido assim. E, claro, mulheres que são vítimas de sequelas de aborto induzido também não. E elas são muitas. De acordo com pesquisa realizada pela rede Gênero e Número, 483 mulheres morreram por aborto no Brasil entre 2012 e 2022. No caso de "falhas na tentativa de aborto", uma mulher vem a óbito a cada 28 internações em hospitais públicos.

Essas mortes, é importante lembrar, atingem principalmente mulheres de baixa renda, pretas e pardas.

Como todo mundo sabe (mas muitos fingem que não), mulheres de classes mais altas e maior poder aquisitivo fazem aborto no Brasil em clínicas ilegais particulares sem grandes problemas. Conheço muitas mulheres que já fizeram. Nenhuma delas teve complicações ou morreu. Aborto seguro no Brasil é, sobretudo, uma questão de classe, o que é um disparate que precisa acabar.

Este é um assunto de saúde pública. Estamos falando de impedir que mulheres morram. Simples assim.

<><> Luz no fim do túnel?

A descriminalização do aborto é urgente porque mulheres precisam parar de morrer. Mas será que podemos ter esperanças?

Semana passada, vimos uma luz, mesmo que pequena, no fim do túnel. Na sexta-feira (17/10), o ministro Luís Roberto Barroso, antes de se aposentar do Supremo Tribunal Federal (STF), votou sim pela legalização do aborto até 12 semanas de gestação. A votação tinha sido aberta pela ministra Rosa Weber em 2023, também antes de se aposentar. O processo foi suspenso depois do voto de Barroso e precisa ser novamente reaberto, o que depende do atual presidente do Supremo, Edson Fachin.

Em seu voto, Barroso disse o óbvio, uma frase que nós, mulheres, repetimos há séculos: "Se os homens engravidassem, o aborto já não seria tratado como crime há muito tempo". Isso acontece, entre outras coisas, porque ainda são os homens, em grande maioria, que fazem e votam as leis, certo?

Apesar desse fato histórico e positivo, é preciso estar atento. Os poucos direitos das mulheres, conquistados com muito custo, continuam ameaçados, ainda mais em época de avanço da extrema direita e do fundamentalismo.

Ao mesmo tempo em que a pauta caminha, muito lentamente, no STF, a Comissão dos Direitos Humanos do Senado aprovou, também na semana passada, um Projeto de Lei que proíbe o aborto após a 22ª semana de gestação mesmo em casos de anencefalia, estupro e quando houver risco de vida para a gestante. Sim, eles querem que mulheres que foram estupradas sejam punidas novamente, e que aquelas que correm risco de morte sejam obrigadas a gerar fetos incompatíveis com a vida. Isso mostra uma crueldade e um descaso pela vida das mulheres sem limites.

O texto ainda precisa ser aprovado por outras comissões antes de ir a plenário. Mas só o fato de que existem políticos pensando em submeter mulheres a essa tortura já mostra o quanto o direito à vida das mulheres continua ameaçado e sendo tratado com desdém.

O que querem, que mais mulheres sangrem até a morte? E sim, essas pessoas se dizem protetoras da vida, mas desprezam completamente a vida e a dignidade de mulheres, principalmente das mais pobres e vulneráveis.

É preciso estar atento e forte.

 

Fonte: Por Andrea DiP, Sofia Amaral, Ricardo Terto e Stela Diogo, para Agencia Publica/DW Brasil 

 

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