Impactos
sociais da pílula anticoncepcional
O uso
da pílula anticoncepcional provocou uma das maiores re-evoluções culturais e
socioeconômicas da humanidade. Logo nos primeiros anos, após a difusão, houve a
redução de gestações não planejadas e adiamento da primeira maternidade. O
anticoncepcional oral permitiu maior controle sobre o momento das gestações,
reduzindo nascimentos precoces e imediatos.
Permitiu
um acesso mais fácil à educação e ao mercado de trabalho para mulheres jovens.
Com menos gravidezes precoces, mais mulheres puderam concluir estudos
secundários e adiar entrada nesse mercado, em vez de aceitar empregos exigentes
de baixa qualificação. Houve efeitos rápidos no aumento da participação
feminina no mercado de trabalho quando o acesso ao contraceptivo aumentou.
Mudança
agregada no capital humano possibilitou as trajetórias de carreira profissional
bem-sucedida das mulheres. A possibilidade de planejar família favoreceu
investimentos educativos e carreiras de longo prazo, alterando padrões
ocupacionais e de renda feminina. Pesquisas apontam ganhos de escolaridade,
participação no mercado de trabalho e renda associadas ao acesso à
contracepção.
Também
aconteceram transformações sociais indiretas. Houve “renegociação de papéis
domésticos”, embora ainda parcialmente, maior presença feminina em profissões
qualificadas e, ao longo das décadas, maior pressão por participação política e
por direitos reprodutivos.
Nas
décadas seguintes, registrou-se uma queda sustentada da fecundidade (taxa de
filhos por mulher) e envelhecimento demográfico. Em países onde o contraceptivo
se difundiu, a taxa média de filhos por mulher caiu muito, com efeitos
persistentes sobre a estrutura etária da população.
No
Brasil, a queda do número de filhos por mulher foi de TFR ≈ 6,28 filhos por
mulher em 1960 para TFR ≈ 1,56 filhos por mulher em 2022. Portanto, passou de
uma fecundidade típica de sociedades pré-transição demográfica (6+ filhos) para
níveis abaixo do nível de reposição (≈2,1) e consequente queda da população.
Esses números estão nos Censos e nas estimativas demográficas.
A queda
começou a tornar-se consistente a partir da difusão dos métodos
anticoncepcionais, nas décadas seguintes aos anos 1960, mas também envolveu
urbanização, escolaridade, mercados de trabalho e políticas públicas. Aconteceu
um processo sistêmico complexo com emergência de uma nova cultura
socioeconômica.
Quanto
ao efeito no orçamento familiar, sobrou mais espaço para pagar aluguel e
despesas urbanas, não foi automático nem universal. A transição rural-urbana e
a queda da fecundidade modificaram muito o padrão de despesas familiares, mas
isso não significa ter “sobrado” dinheiro para morar nas cidades para a
maioria.
A
urbanização aumentou a necessidade de pagar por habitação (aluguel ou compra),
transporte, saneamento, eletricidade, escolarização e serviços de saúde. Esses
custos em áreas rurais eram internalizados por autoabastecimento, moradia
própria etc.
Em
muitas cidades brasileiras o aumento da demanda por moradia gerou pressão sobre
preços e déficit habitacional com favelização em suas periferias. Desse modo, a
renda disponível para outros itens nem sempre aumentou proporcionalmente.
Levantamentos de despesa domiciliar (POF/IBGE) mostram mudanças na composição
do gasto ao longo das últimas décadas e indicam forte peso dos gastos de
moradia nas famílias urbanas.
Em
termos práticos, para alguns grupos – famílias de renda média/alta e mulheres
com maior escolaridade e renda própria – houve maior liberdade financeira
relativa para alugar ou comprar em áreas urbanas. Para muitos migrantes de
baixa renda houve maior aperto orçamentário e informalidade habitacional.
Mulheres
puderam estudar mais e ultrapassaram os homens na universidade. Esta é uma
tendência clara e mensurável. No Brasil, o aumento do nível educacional
feminino foi marcado e, segundo IBGE/Censo 2022, entre pessoas de 25 anos ou
mais a proporção com Ensino Superior completo era 20,7% nas mulheres e 15,8%
nos homens, isto é, o nível educacional feminino já superou o masculino nesse
recorte.
O
avanço feminino na Educação Superior ocorreu ao longo das últimas décadas,
quando as mulheres passaram a ter maior escolaridade média já desde os anos
1980–1990, enquanto muitos se dedicaram mais ao trabalho manual.
Isso
teve forte impacto no mercado de trabalho. A maior escolaridade aumentou a
inserção feminina em ocupações qualificadas e elevou a participação no mercado
formal. Contudo, persistem desigualdades salariais e segregação
setorial/ocupacional com mulheres concentradas em determinados ramos de
“cuidadoras” (e não “engenheiras”) com diferenças salariais em relação a
homens.
O
acesso à contracepção e à educação melhorou as chances de as mulheres
competirem por vagas qualificadas e construírem carreiras longas. Em setores
com valorização da escolaridade e de formação contínua, mulheres com maior
escolaridade obtiveram ganhos relativos. Estudos empíricos mostram aumentos na
participação feminina e ganhos salariais médios vinculados ao acesso à
contracepção e ao planejamento familiar.
Porém,
barreiras institucionais (discriminação, divisão sexual do trabalho, faltas por
cuidado, renda desiguais) e escolhas ocupacionais (setores feminizados com
menor remuneração) limitaram ganhos plenos. Logo, houve vantagem relativa em
formação e disponibilidade para carreiras longas, mas não uma vitória
automática sobre as disparidades laborais de gênero.
Surgiram
mais mulheres como líderes locais e mundiais, mas a representação continua
desigual. Globalmente, a proporção de assentos parlamentares ocupados por
mulheres cresceu nas últimas décadas, por exemplo, de ~11% em 1995 para ~27% em
2025, em média nos parlamentos europeus. Entretanto, ainda estão longe da
paridade: muitos países, inclusive o Brasil, têm representação feminina menor
diante a média regional/global.
Emergiram
mais mulheres como líderes nacionais, ao longo do século XX e XXI, mas
continuam sendo exceções e concentradas em determinados momentos ou países.
Chefes de Estado ou do Poder Executivo ainda são raras.
Há
aumento de mulheres em cargos municipais, lideranças comunitárias e em
organizações da sociedade civil. No entanto, a violência política, assédio e
barreiras estruturais continuem inibindo avanços uniformes.
O
objetivo central da pesquisa de Joelma R. Santana e Silvia Waisse foi explorar
os aspectos conceituais e historiográficos relacionados à difusão da pílula
anticoncepcional no Brasil. Focou na primeira década após sua introdução, em
1962, no estado de São Paulo.
O
estudo analisou como a informação sobre o modo de ação do contraceptivo
hormonal no organismo feminino, suas implicações associadas, e os supostos
riscos e benefícios foram divulgados às usuárias potenciais.
O
achado mais significativo foi a chegada da pílula anticoncepcional ter
provocado debates intensos no país. Porém, estes se concentraram menos em
questões científicas e mais em problemas morais, políticos e religiosos.
A
pílula não foi inicialmente divulgada por meio de revistas femininas (com a
exceção de Cláudia), devido o assunto não ser considerado parte do universo da
mulher. Foi sim por meio de jornais e revistas de grande circulação destinados
ao público em geral.
O
discurso inicial era próprio do neomalthusianismo. A pílula foi promovida no
contexto da preocupação com a explosão demográfica, sendo vista como um remédio
para conter o crescimento desordenado da população e o subdesenvolvimento.
Inicialmente, o foco era o controle dos nascimentos para o “bem-estar de
todos”.
As
informações sobre a fisiologia reprodutiva e o modo de ação do contraceptivo
hormonal foram pouco abordadas, sendo superficiais e, por vezes, equivocadas.
Por exemplo, a mídia informava, equivocadamente, os hormônios artificiais
induzirem uma falsa gravidez. Demonstrava a baixa qualidade da informação
científica publicada.
Embora
inicialmente a pílula tenha sido apresentada em uma “fase rosa”, com uma longa
lista de vantagens e informações tranquilizadoras sobre segurança, as críticas
se intensificaram a partir de 1966. Passou-se a questionar seus efeitos
colaterais (como tromboses e problemas cardíacos), riscos futuros, e
consequências morais/psicológicas.
A
Igreja Católica foi a principal opositora do medicamento, causando grande
polêmica e angústia entre os fiéis. Essa oposição culminou na Encíclica Humanae
Vitae (1968), na qual reafirmou a proibição de métodos anticoncepcionais não
naturais, classificando o seu uso como “pecado mortal” [?!].
Devido
ao preço elevado da cartela, o uso disseminado inicialmente definiu a pílula
como um fenômeno de classe média. A partir de meados de 1964, um novo discurso,
o de “casal consciente adota contraceptivo”, passou a predominar. Para as
camadas mais populares, a orientação era fornecida por entidades focadas no
controle da natalidade, como a BEMFAM (Bem-estar Familiar no Brasil) e o SOF
(Serviço de Orientação à Família).
Houve
debates jurídicos sobre o direito do marido de anular o casamento se a esposa
usasse a pílula sem seu consentimento, porque o marido era “o chefe da
sociedade conjugal” pela lei de 1962. Além disso, a pílula foi associada a
interesses internacionais e dominação norte-americana, com entidades sendo
acusadas de genocídio e esterilização em massa nos países subdesenvolvidos.
Em
suma, a pesquisa demonstrou a difusão da pílula ter ocorrido em um contexto de
questionamento do conservadorismo, onde o debate sobre o planejamento familiar
e o controle da natalidade rapidamente ofuscou os aspectos médicos e
científicos do novo contraceptivo.
“Bendita
ignorância” (ou “ignorância é uma bênção”) é uma frase justificadora de “não
saber algo (a verdade ou os problemas) pode trazer paz ou felicidade, evitando
o estresse e o sofrimento do conhecimento”… Consola os ignorantes.
Fonte:
Por Fernando Nogueira da Costa, em A Terra é Redonda
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