A
ONG que ajuda mulheres a terem acesso ao aborto legal
Uma
pipa voa livre pelo ar. Quem olha de longe enxerga um losango cortando o céu.
Quem repara melhor vê o desenho de uma vulva estampada no papel de seda.
VoaVulva, obra da artista plástica Viviane Cardell é um de 14 trabalhos da
campanha Arte Substantivo Feminino, que vende obras de arte para arrecadar
fundos para uma ONG que ajuda mulheres a terem acesso ao aborto legal no
Brasil.
São
mulheres como Maria (que teve o nome alterado pela reportagem), que tinha
direito incontestável ao procedimento por lei: havia sofrido estupro. Ela
procurou a ONG Milhas pela Vida das Mulheres (ou simplesmente Milhas, como é
conhecida), que a orientou a buscar atendimento na Fundação Santa Casa de
Misericórdia de Belém, referência no atendimento de aborto legal na capital
paraense.
Após
receber o atendimento, o pedido de Maria foi aceito, e o aborto foi agendado.
Porém, foi cancelado de véspera, após o anestesista declarar objeção de
consciência para realizar um aborto. Esse é um direito de profissionais de
saúde, que, então, devem ser substituídos. Mas o procedimento não foi
remarcado, e Juliana Reis, fundadora da Milhas, orientou Maria a fazer uma
denúncia no Ministério Público (MP) do Pará.
"Ao
saberem que o MP estava investido no caso, a Santa Casa começou o ‘deixa
disso', procedeu com a internação e fez sua obrigação", conta Reis.
"Só que não."
Maria
foi internada e sedada para o procedimento. Depois, recebeu alta médica. Voltou
para casa, aliviada. Mas, nas semanas seguintes, continuou se sentindo mal.
Tinha enjoo, vômitos, sentia a barriga estufada. Depois de semanas, procurou um
médico. Fez ultrassons que revelaram: ainda estava grávida. Agora, de 12
semanas.
Maria
voltou ao hospital com sua família e todo o seu histórico de exames e
documentos. Foi internada no mesmo dia. Desta vez, o aborto foi realizado de
fato. Porém, devido ao avanço da gestação, pela via mais dolorosa, fazendo a
indução do parto e a curetagem.
"Foi
a pior experiência da vida de Maria", relata à Reis. Maria não quis
conversar com a reportagem, por não querer relembrar tudo que passou. Mas
autorizou que a DW contasse o seu caso. Para Reis, a história "épica, para
não dizer trágica", oferece um panorama do abismo de cidadania enfrentado
por muitas mulheres no Brasil.
A DW
entrou em contato com a Secretaria de Comunicação da Santa Casa do Pará, mas
não obteve resposta até o fechamento da matéria.
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Obstáculos a direitos
De
acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA, 2021), uma em casa sete mulheres
no Brasil fez pelo menos um aborto antes de chegar aos 40 anos, e mais da
metade delas (52%) fez o primeiro aborto na juventude, até os 19 anos de idade.
A
prevalência contrasta com a criminalização do aborto no país, que empurra
muitas mulheres para vias clandestinas, gerando risco às suas vidas. Mas mesmo
quem tem o direito assegurado por lei encontra muitas pedras pelo caminho, como
uma rede insuficiente e atendimento extremamente desigual.
A
legislação brasileira prevê três situações em que mulheres têm direito ao
aborto: em casos de gravidez decorrente de estupro; de risco de vida para a
mulher; ou de anencefalia fetal. Na prática, porém, mesmo gestantes que se
enquadram na lei enfrentam inúmeros obstáculos para acessar esse direito.
Mulheres
que buscam se informar sobre o seu direito muitas vezes são julgadas,
culpabilizadas ou recebem informações incorretas de profissionais de saúde –
exigindo, por exemplo, que apresentem boletins de ocorrência após um caso de
estupro, o que não é mais necessário desde a Lei do Minuto Seguinte.
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A saída pelo meio legal
Alice
(que teve o nome alterado pela reportagem), mãe de uma jovem de 14 anos que
engravidou após ser abusada por um funcionário de sua escola, no Ceará,
percebeu essas barreiras ao levar a filha para fazer a primeira ultrassom.
Disse à técnica que não queriam escutar o batimento cardíaco do feto, porque
pensavam em interromper a gestação. Ouviu de volta que seria muito difícil
encontrar um profissional que fizesse o procedimento; e a menina deveria deixar
o filho para adoção.
Dias
depois, recebeu uma notificação do Conselho Tutelar a convocando junto com
filha para comparecerem perante a autoridade judicial. "Eu acredito que
foi o próprio serviço de saúde que me denunciou. Não quero acusar, mas não
consigo imaginar outro caminho."
Alice
seguiu procurando caminhos, e já estava pensando em comprar medicamentos
abortivos pela internet quando uma amiga a encaminhou para a Milhas – que a
ajudou a agendar um procedimento em Salvador.
"Se
não fosse pela ONG, a gente ia fazer de forma clandestina, tendo que entrar em
contato com pessoas perigosas", conta.
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Luta, luto e retomada
A
Milhas pela Vida das Mulheres nasceu em 2019, durante o governo de Jair
Bolsonar o, em um cenário proibitivo para discussões sobre a descriminalização
do aborto no Brasil. Reis, que é cineasta, fez uma postagem no Facebook no
começo daquele ano propondo a doação de milhas pra mulheres fazerem abortos
fora do Brasil, em países onde era permitido por lei. Em meia hora, recebeu
mais de cinco mil respostas.
"Começou
um debate enorme de reação ao bolsonarismo, e vimos que a hora era aquela. O
Milhas nasceu nessa onda, com a vocação de ir para a janela e dizer, ‘o corpo é
meu, eu fiz aborto, o aborto existe'. Achamos importante falar a palavra
aborto, para deixar de ser um tabu, uma vergonha, um crime. E a adesão foi
imediata."
No
primeiro momento, a ONG ajudava brasileiras a viajar para países onde o aborto
é legalizado , como Colômbia e, depois de 2021, Argentina. Em 2022, entretanto,
quando Reis organizava a terceira edição da campanha Arte Substantivo Feminino,
teve um acidente de carro que quase levou sua vida.
E tirou
a de seu parceiro, o fotógrafo Ricardo Azoury. Reis passou 15 dias em coma, com
todos os ossos da face quebrados. Três anos depois, saindo do luto e da
reabilitação, encontrou forças para reorganizar, enfim, a terceira campanha de
artivismo, após o longo hiato.
"Os
tempos não estão tão férteis para o otimismo. Mas a gente faz disso uma razão
para poder ir, ou voltar, à luta", afirma, referindo-se à composição
conservadora do Congresso – "que virou um âmbito de instituição
religiosa" – e ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva , cuja eleição
trouxe esperança ao movimento pela descriminalização do aborto, mas "se
revelou na verdade uma grande frustração" para a causa.
"É
como se a gente estivesse cada dia mais longe de atingir uma conquista
consistente de direitos sexuais e saúde reprodutiva da mulher no Brasil",
considera Reis.
Nesses
últimos anos, a Milhas mudou sua forma de atuação, deixando de buscar uma saída
no exterior, e passando a assessorar o aborto legal dentro do Brasil. O que
ainda envolve viabilizar viagens – agora interestaduais e intermunicipais –
para levar mulheres às cidades com centros de referência no procedimento no
país, como Brasília e Recife; mas envolve também uma luta para ir ampliando
fronteiras, por meio de processos judiciais para tentar criar novas
jurisprudências.
Para
arrecadar recursos para seu trabalho, que inclui ainda atendimento psicológico
e jurídico, a Milhas promove a campanha Arte Substantivo Feminino, que reúne
artistas visuais como Aline Bispo, Elaine Fontes, Tina Gomes e Mari Stockler,
que doaram trabalhos abordando a sexualidade, o corpo feminino e fazendo
críticas sociais. As obras estão à venda até o dia 31 de dezembro.
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Risco à vida
Uma das
frentes de atuação da ONG tem sido casos em que há risco à vida da gestante.
Grávidas de alto risco muitas vezes têm dificuldade de acessar o aborto legal,
muito embora este seja um dos três casos previstos por lei.
Adeline
Assad, de 39 anos, ouviu de um médico no pré-natal que sua gestação "era
de muito alto risco, e que ela provavelmente iria passar a gravidez deitada,
talvez internada", relata. "Mas confia em Deus", o médico lhe
disse. "Eu tive vontade de dar um soco nele", conta.
Assad
tem três filhos, de 10, 11 e 15 anos, e tem anemia crônica. No dia em que
descobriu a gestação, precisou de uma transfusão de sangue porque sua taxa de
hemoglobina estava muito baixa. Foi a quarta transfusão do ano.
"Eu
só conseguia me imaginar morrendo no parto e deixando os meus três filhos e um
recém-nascido. Eu estava muito debilitada, tinha febre, cansaço, desmaiava. Eu
não tinha dúvida quanto à necessidade de tirar."
Ela
começou a procurar vias clandestinas, mas pediu ajuda à médica que a atendeu no
pronto-socorro, que se destacara pelo atendimento humanizado quando Assad
descobriu a gestação. A profissional indicou a Milhas pela Vida das Mulheres,
que então a colocou em contato com a Defensoria Pública de São Paulo.
Assad
precisaria de um laudo médico atestando o alto risco de sua gestação. Mas sua
antiga hematologista em Ubatuba (SP), onde ela mora, negou categoricamente. Ela
então pediu o laudo a um hematologista com quem se trata em outra cidade, e ele
concordou. O documento foi peça fundamental para dar entrada no processo.
Há
pouco mais de um mês, Assad realizou um aborto legal no Hospital Municipal do
Campo Limpo, na zona sul de São Paulo. Mas antes, passou por questionamentos da
ginecologista que a atendeu, que lhe deu uma semana para pensar se era aquilo
que queria, e lhe ofereceu toda a assistência se decidisse ter o filho e viesse
morar em São Paulo com seus três filhos durante a gestação.
Segundo
Assad, a médica disse ainda que não recusaria fazer, mas que ela deveria ter
consciência de que poderiam procurá-la no futuro e dizer que havia cometido um
crime, questionando seu direito ao aborto legal. "Eu agradeci e falei que
estava consciente e decidida", conta.
"O
procedimento foi rápido. Deu certo. Mas é a pior dor do mundo. As pessoas não
têm noção quando falam que, se liberar o aborto, vai sair todo mundo fazendo. É
muito traumatizante. Ainda estou lidando com essa questão", emociona-se.
"Eu só conseguia pensar nas pessoas que não conseguem esse acolhimento, e
que fazem de qualquer jeito."
Por não
acreditar que o tema deva ser tratado como um tabu, Assad concordou em usar seu
nome na reportagem. "Acontece com mais frequência do que as pessoas
imaginam, mas ninguém fala sobre isso. No meu trabalho, eu achei melhor falar,
para verem que não sou um monstro por fazer essa escolha. Sou igual aos outros.
As pessoas que lidem", afirma. "É para todo mundo essa história. O
corpo é meu, a história é minha, mas isso é algo que concerne todo mundo."
Fonte:
DW Brasil

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