PL dos Aplicativos: urge evitar a iminente
derrota cabal dos trabalhadores e trabalhadoras
No Brasil de 2023,
segundo dados do IBGE, mais de 600 mil trabalhadores tiraram seu sustento
prestando serviços para as gigantes do trabalho uberizado. Em sua grande
maioria são motoristas e entregadores, com jornadas de trabalho de 12 horas em
média. Diante de tal cenário, o governo federal propôs a construção de um
Projeto de Lei que garanta direitos a estes/as trabalhadores/as, mas, segundo
avaliações de especialistas no mundo do trabalho, o tiro saiu pela culatra.
“O PL criado e
proposto pelo governo Lula para regulamentar o trabalho dos/as motoristas de
aplicativos é uma derrota cabal, se for aprovado. Por quê? Porque os seus
(aparentes) pontos positivos, são um remendo para tentar consertar o erro
crucial. Por isso ele é essencialmente nefasto”, avalia o professor e
pesquisador da Unicamp Ricardo Antunes. “Para burlar e negar os direitos do
trabalho era preciso criar uma categoria híbrida, estranha, que eles definiram
como ‘autônomos’ e ‘autônomas’ e ‘empreendedores’ e ‘empreendedoras’. É um
embuste!”, complementa.
Aquilo que poderia ser
sinônimo de avanço civilizatório para estes/as trabalhadores/as transformou-se
na criação de uma subcategoria de empregados e, pior ainda, colocou em risco
atuais garantias trabalhistas, como a integridade do salário-mínimo. “Com relação
ao salário-mínimo, o primeiro ponto nefasto é que ele cria uma sistemática que
tende a reduzir o salário dos/as trabalhadores/as que já trabalham. Isto coloca
em xeque, sim, trabalhadores recebendo menos do que o salário-mínimo. Também
nesse ponto, o PL depõe contra a classe trabalhadora”, descreve.
LEIA A ENYTREVISTA:
• Dados do IBGE de 2023 apontam que em
2022 havia 600 mil trabalhadores de aplicativos com rendimentos inferiores a
trabalhadores não plataformizados. O que esses números indicam sobre a
realidade do trabalho no Brasil?]
Ricardo Antunes – A
primeira indicação importante é que esses 600 mil trabalhadores e
trabalhadoras, que compreendiam esse contingente de aplicativos, já demonstra
que não é algo pequeno. E eu tenho a intuição clara de que esse contingente
cresce a todo dia, celeremente, e que, com certeza, esse número já é bastante
superior a essa primeira investigação.
A primeira incursão
empírica do IBGE foi muito boa e mostrou que os trabalhadores e as
trabalhadoras de aplicativos trabalham muitas horas a mais do que a média
dos/as trabalhadores/as regulamentados pela CLT e mostra também que seus
salários são inferiores. O que esses números indicam, portanto, sobre a
realidade do trabalho no Brasil é que nós temos, hoje, uma combinação letal
caracterizada pela presença de uma burguesia predadora. A burguesia brasileira,
junto com os capitais globais que atuam aqui são predadores, porque eles seguem
a lógica do capital financeiro.
Essa ação empresarial,
conduzida pelo mais destrutivo de todos os capitais – o capital financeiro –
indica que a realidade do trabalho no Brasil, a depender dos interesses do
capital, é sempre de mais predação, mais exploração, mais espoliação e mais expropriação,
em plena era de uma expansão célere do mundo informacional, digital, da
inteligência artificial, da indústria 4.0 etc. É uma fotografia viva de que, no
Sul do mundo, mas também nos bolsões mais precarizados do Norte, o capital só
pode avançar incrementando altamente a tecnologia, de modo a levar ao limite a
exploração, espoliação e expropriação da classe trabalhadora.
• O Executivo federal encaminhou ao
Congresso uma proposta de regulação do trabalho de motoristas de aplicativos.
Quais são os avanços e os limites do texto?
RA – O PL criado e
proposto pelo governo Lula para regulamentar o trabalho dos motoristas de
aplicativos é uma derrota cabal, se for aprovado. Por quê? Porque os seus
(aparentes) pontos positivos são um remendo para tentar consertar o erro
crucial. Primeiro, o artigo 3 do projeto: o que essas plataformas, desde a
Uber, Amazon, Amazon Mechanical Turk, Glovo, Deliveroo, 99, Cabify, todas elas,
bem como outras formas de trabalho Airbnb, Google, Facebook, Meta etc., o que
elas têm em comum? Elas se utilizam do trabalho desregulamentado. Ou seja,
operam basicamente destruindo os direitos trabalhistas, não reconhecendo os
direitos de assalariamento dessa classe trabalhadora. Fazem isso com base em um
embuste ideológico muito bem arquitetado e sofisticado, típico de uma burguesia
predadora da era financeira e digital.
Há uma massa imensa de
trabalhadores e trabalhadoras desempregados, procurando desesperadamente
qualquer trabalho – por isso que essas plataformas entram mais fortemente na
periferia do mundo, no Sul do mundo, e nos países do Norte avançam muito mais
nos países devastadoramente neoliberais; porque onde tem alguma forma mais
estruturada de direitos do trabalho, elas têm dificuldades. Elas podem se dar a
esta construção porque existe, primeiro, uma força de trabalho desempregada em
abundância, em escala global, e que é muito mais extensa no Sul do mundo.
Segundo, num contexto
de alta tecnologia, que não para de se desenvolver desde os anos 1970,
inicialmente o mundo da automação e o mundo informacional digital invadiram a
produção industrial e, partir daí, na virada do século, elas invadiram o que
prefiro chamar como a indústria dos serviços. Atenção! Nós não vivemos em uma
sociedade pós-industrial, como diziam intelectuais eurocêntricos equivocados,
nós vivemos a era da monumental expansão da indústria de serviços. Ora, os
capitais conseguiram ter, simultaneamente, forças de trabalho sobrante,
desesperadamente em busca de trabalho e alta tecnologia em ampla expansão.
Faltava dar o golpe Frankenstein, “dar o pulo do gato”, e qual é esse pulo? As
perguntas que esses grandes empresários fizeram, na sua origem, foi: como
burlar a legislação protetora do trabalho. Foram consultar esses grandes
escritórios de advocacia corporativa e concluíram que, para burlar e negar os
direitos do trabalho, era preciso criar uma categoria híbrida, estranha, que
eles definiram como “autônomos” e “autônomas” e “empreendedores” e
“empreendedoras”. Tratava-se de um embuste, desde sua origem!
É um embuste porque o
que presenciamos é uma proletarização acentuada desses trabalhadores e
trabalhadoras. Todas as pesquisas acadêmicas (não aquelas financiadas pelas
plataformas) demonstram que eles e elas trabalham, frequentemente, na periferia
do mundo, oito, dez, 12 e 14 horas – eu mesmo entrevistei um trabalhador que
chegou a trabalhar 20 horas em um dia e outro que me disse que tinha uma
jornada de 30 dias no mês, e eu perguntei “que dia você descansa?” e ele disse
“não descanso nenhum dia”. Isto é, superexploração do trabalho, que precisa ter
um “discreto charme” da burguesia predadora: viraram “empreendedores”,
“autônomos” e, portanto, não têm direitos do trabalho. E, mais ainda, os
trabalhadores e trabalhadoras devem comprar ou alugar o carro, a moto, a
bicicleta – e tudo mais o que for instrumento de trabalho – comprar um celular,
ter uma conexão de internet, comprar uma bag, no caso dos entregadores e cuidar
dos seus veículos etc. É um processo que no limite volta às condições vigentes
na era da acumulação primitiva, porque o capital nem sequer entra com o
instrumental de trabalho. E foi assim que se forjou esse vilipêndio em relação
ao trabalho.
Podemos chamar esse
projeto de PL do Desastre do Trabalho no Brasil, um projeto que “abre a
porteira” – lembra dessa expressão? – da devastação do Brasil. O atual
presidente, que com razão tanto criticou a contrarreforma [trabalhista] do
[Michel] Temer está criando um monstrengo assemelhado, inicialmente para
motoristas de aplicativo, mas que tem potencial para se expandir para a classe
trabalhadora que trabalha nos serviços, com o já estamos vendo em tantas
atividades, como jornalistas, trabalhadoras dos cuidados, empregadas
domésticas, professores, médicos, enfermeiras etc. Isso porque, esse PL, no seu
artigo terceiro, define juridicamente os/as trabalhadores/as como autônomos.
Ora, fazer isto é o que querem (ou exigem) a Uber, a IFood, a Rappi, a Glovo, a
99, a Lyft e a Deliveroo, todas essas empresas que circulam no mundo e que são,
muitas delas, muito poderosas. Basta citar o caso da Uber, por um lado, com
todas as suas ramificações – Uber Eats, Uber Works, Uber Health e também a
Amazon, inclusa a Amazon Mechanical Turk etc.
Então, quais são os
avanços do texto? Em poucas palavras: ele dá os diamantes e o ouro para as
grandes plataformas digitais e joga migalhas para os/as trabalhadores/as. E
quando forem comer essas migalhas, percebem que estão estragadas. A
previdência, que é crucial; a organização sindical é um direito dos
trabalhadores e trabalhadoras, está indelevelmente vinculada ao reconhecimento
da sua condição de assalariamento. Se não for assim, é embuste, como o PL 12. É
por isso que o que é aparentemente positivo, se desfaz, vira engodo, pois será
sempre usufruído pela metade, quando muito. Quem garante que o trabalhador
uberizado vai efetivamente conseguir pagar a sua parte da previdência? E o que
é o verdadeiro embuste, a aparência de autonomia, bem como a ideia de que as
plataformas são empresas de tecnologia, ganha estatuto legal. A pergunta
elementar é: quando se chama a 99 ou Uber, nós estamos em busca de transporte
privado ou queremos aprender tecnologia? A resposta, qualquer criança sabe. É
óbvio que essas são empresas de transporte de pessoas e não são fornecedores de
tecnologia. E o PL 12, se aprovado, legaliza-se, então, o ilegal. Por isso ele
tem que ser rejeitado ou retirado da pauta parlamentar. Até porque, se lá
ficar, vai piorar. Eis o imbróglio criado pelo governo.
• Houve uma divisão tripartite para a
construção do texto do Projeto de Lei entre empresas de aplicativos, Estado e
trabalhadores, mas, neste último caso, algumas lideranças foram excluídas. Como
o senhor avalia a construção do texto?
RA – Não houve uma
construção coletiva. Houve um início de uma discussão, que não aceitou uma
participação livre do conjunto heterogêneo e polimorfo que caracteriza a
categoria dos/as trabalhadores/as de aplicativos. E, além de não reconhecer
essa heterogeneidade em sua plenitude, o governo já tinha uma proposta na mão,
a das plataformas, que não aceitavam negociar o ponto crucial: o reconhecimento
da subordinação, do assalariamento real, contemplados os direitos do trabalho.
Esse é o ponto crucial: as plataformas não abrem mão do embuste, não aceitam e
não reconhecem a condição de assalariados.
Eu soube que setores
do Ministério Público do Trabalho saíram das negociações do PL, de
representantes dos entregadores que também saíram ou não foram mais chamados
para a negociação, pois se recusaram a legitimar o embuste. O resultado é que o
PL está fazendo água por todos os lados, como estamos vendo, porque a recusa a
esse projeto é muito grande, em vários setores, por motivos antagônicos, mas é
uma recusa grande. Na balança, então, o governo, no essencial, ficou do lado
das grandes plataformas, que continuarão a descumprir e burlar os direitos do
trabalho; não pagar tributos; se definir como “prestadoras de tecnologia” etc.
E assim encontram-se, hoje, entre as maiores corporações globais.
• Como o senhor vê a criação de um
sindicato de trabalhadores plataformizados? O que pode ser positivo e negativo
à categoria?
RA – A criação de um
sindicato nasce com a própria história de luta da classe trabalhadora. Foi
assim que na Inglaterra, no século XVIII, as primeiras lutas levaram à criação
dos sindicatos que se consolidaram legalmente a partir de 1824. Então, esta criação
resulta da organização e da auto-organização da classe trabalhadora. Um
sindicato dos entregadores aqui ou um sindicato dos motoristas ali, como trata
esse PL – que, repito, os entregadores tiveram a coragem, a consciência e a
lucidez de recusar – propõe e incentiva a criação, por cima, de sindicatos. Não
cabe ao governo, “por cima”, criar sindicatos. Quem vai criar são os/as
trabalhadores/as. Existe uma recusa muito forte aos sindicatos por parte de
amplos setores da categoria, porque o ideário neoliberal ensina, desde meados
do século passado, que o sindicato é inimigo da classe trabalhadora e que,
portanto, o sindicato só atrapalha. Muitos dos trabalhadores mais jovens hoje
estão imbuídos dessa concepção antissindical, mas eles percebem na luta que individualmente
não são nada; coletivamente eles têm força. Para ter uma estrutura coletiva – e
o Breque dos APPs mostrou isso – é preciso ter formas de organização. Neste
processo, por exemplo, nasceu a Aliança Nacional dos Entregadores por
Aplicativos – ANEA, que é um exemplo muito importante de criação de um embrião
de entidade representativa dos/as trabalhadores/as de aplicativos de entrega.
Em 2019, houve discussões, que chegaram até um encontro internacional na
Inglaterra, de trabalhadores/as uberizados, motoristas da Uber, que discutiu a
criação de um sindicato internacional. Repito: não será pela via de um decreto
do governo, mas pela conscientização, organização e auto-organização da classe
trabalhadora. Através de um movimento, e não por decreto.
• Em termos de garantias aos
trabalhadores, o que a ausência de direitos previstos no artigo 7º da
Constituição, como 13º salário, participação nos lucros e Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço (FGTS) indica?
RA – Indica a burla e
que essa proposta é essencialmente uma proposta que atende às pressões do
grande capital financeiro que comanda essas plataformas, que tem uma relação
predadora, espoliadora, expropriadora e exploradora em relação à classe
trabalhadora, que é tratada como força de trabalho: funciona, fica; não
funciona, não fica. Lembre-se da primeira resposta: com uma massa imensa de
trabalhadores/as desesperados por qualquer emprego, as plataformas se utilizam
dessa condição. Então, não ter férias, 13º salário, descanso semanal, jornada
regulamentada e fundo de garantia mostra que este projeto é regressivo, um
projeto que retorna – se deixarmos seguir adiante – a níveis de exploração do
trabalho ao século XIX. Não por acaso que as palavras “bonitinhas”, como
crowdsourcing embutem a sua origem. O outsourcing, por exemplo, era um sistema
de trabalho do século XIX na Inglaterra, onde a classe trabalhadora trabalhava
em casa, fora do espaço da fábrica, sob condições abjetas e sem nenhum direito.
É um embuste e é isso que significa esse PL. Deve, por isso, ser retirado ou
rejeitado. E essa é uma luta que interessa diretamente a toda classe
trabalhadora.
• Considerando os termos dessa regulação e
a ausência de direitos, trata-se da criação de uma subcategoria de empregados?
RA – É pior do que
isso. Trata-se da criação de uma terceira categoria, porque se abre à “lei da
selva”. A partir de amanhã, todos os ramos e setores, não só as plataformas,
vão começar a exigir do Supremo Tribunal Federal – STF, que é neoliberal no que
diz respeito às questões do trabalho. O mesmo Supremo que teve coragem de tomar
uma postura antifascista, é absurdamente neoliberal, o que não é uma
contradição – nós sabemos, quem estuda e conhece o tema que estamos discutindo.
É a criação de uma terceira categoria sem direitos. Portanto, é dar plenitude à
contrarreforma de 2017 do Temer, que propôs o trabalho intermitente, que o Lula
na época tanto criticou. Hoje, o que o Lula está fazendo, como já disse acima,
é legitimar o ilegal, que não é frase jurídica, mas uma frase sociológica e
crítica: estão legalizando o que é inaceitável de ser legalizado, estão criando
uma terceira categoria que abre a porta para desmontar o conjunto da classe
trabalhadora. Basta imaginar, nas próximas eleições, se voltar uma aberração
tipo Temer, ou uma versão abjeta do fanfarrão que vai para a prisão.
• Qual a força dos trabalhadores para
superar esta encruzilhada e garantir condições mais humanas de trabalho?
RA – Luta,
organização, auto-organização, debate coletivo, valendo-se do WhatsApp para
conectar com os companheiros e companheiras, conversando naqueles espaços
durante as horas em que ficam esperando pelo trabalho que não chega. Por
exemplo: todos nós já entramos em uma loja de comércio, o trabalhador, que está
na loja e vai te atender, estava recebendo com ou sem cliente. Por que os/as
trabalhadores/as motoristas não recebem se estão disponíveis e conectados? Por
certo, estas questões afloram em sua vida cotidiana, em suas conversas, em suas
ações e lutas.
A empresa tem o
maquinário algorítmico e a inteligência artificial, todos esses artefatos do
mundo informacional digital, rigorosamente controlados pela engenharia do
capital, pelos nefastos CEOs, que modulam as formas da exploração. Todos nós
sabemos que isso é para se jogar contra os/as trabalhadores/as. O desafio são
as lutas. Cito um exemplo real e vivo: o Breque dos APPs, de julho de 2020,
entrou para a história da classe trabalhadora brasileira como a primeira greve
dos trabalhadores entregadores de aplicativos. Só será possível superar essa
encruzilhada através da força coletiva, da organização, da consciência e de
luta. Não é uma coisa que a classe trabalhadora nasce sabendo. E algo que se
constrói em sua história, desde a Revolução Industrial na Inglaterra.
Os motoristas das
grandes plataformas, como Uber, Cabify e 99, até recentemente no Brasil, foram
ex-operários, professores; eu já entrevistei veterinário, engenheiro químico e
até um pequeno proprietário de indústria, porque ela estava parada na pandemia
e ele foi trabalhar de Uber. É um amálgama de subjetividades, de experiências,
não é só o antigo motoqueiro que tinha uma tradição já organizada de sindicato;
é um amálgama. Têm jovens, muito jovens, que se conectam com uma plataforma,
alugam uma motocicleta para fazer esse trabalho, não dirigiam antes, não eram
motoqueiros. Têm estudantes que alugam bicicletas para pagar os estudos.
Portanto, não vai nascer do nada um sindicato. Uma entidade desse gênero será
resultado de muita experiência, luta, discussão e organização coletiva.
• Há uma questão correlata a toda esta
discussão que é, precisamente, o salário-mínimo. O senhor avalia que o governo
colocou em risco o piso do salário-mínimo (condicionando-o às horas
trabalhadas), que, apesar de seus limites, tem se mostrado uma das principais
políticas benéficas à classe trabalhadora?
RA – Colocou em risco,
sim. A contabilização dessas horas trabalhadas mostra, por exemplo, que os/as
trabalhadores/as motoristas terão uma remuneração menor do que tinham antes. O
que explica por que motivo esses motoristas não querem CLT e nem sindicato é
que muitos estão imbuídos do milagre neoliberal. Seria um milagre, depois de
tantos desastres, derrotas da classe trabalhadora, pois nós vivemos uma era de
contrarrevolução preventiva burguesa (conforme nos ensinou Florestan Fernandes)
só que hoje ela é movida pelo capital financeiro. Seria um milagre que esses
trabalhadores tivessem um pensamento diferente. Por exemplo, se estou
desempregado e compro uma moto (ou um carro) e vou para uma plataforma, eu não
pergunto os meus direitos; eu vou porque preciso pagar o veículo que comprei
ontem e preciso trabalhar para sobreviver. Com relação ao salário-mínimo, o
primeiro ponto nefasto é que ele cria uma sistemática que tende a reduzir o
salário dos/as trabalhadores/as que já trabalham. Isto coloca em xeque, sim,
trabalhadores recebendo menos do que o salário-mínimo. Também nesse ponto, o PL
é contra a classe trabalhadora.
• Uma pergunta que não pretende ser
consoladora, mas que busca ver a realpolitik do mundo do trabalho
contemporâneo: nos atuais termos, o projeto foi aquele possível de se chegar ou
era possível avançar?
RA – Era necessário,
imperioso, e ainda há tempo, de termos uma regulamentação efetiva e garantidora
de direitos do trabalho e da previdência. É uma questão fundamental. Todos nós
sabemos que o Lula nasceu e apareceu na cena social e política, em meados dos
anos 1970, como uma liderança operária-metalúrgica muito importante. Não é
possível imaginar que aquele que foi, no passado, o mais importante líder
operário e sindical da história da classe trabalhadora no século XX no Brasil
não tenha consciência de que este projeto atende às empresas. Os entregadores,
com lucidez, deram um sinal contrário e dou outro aqui.
Força para os
entregadores, porque quando esse embuste vier a ser imposto para eles, será
preciso recusar. Os entregadores têm mostrado mais agilidade em formas de luta
do que os motoristas, por vários motivos que aqui não há tempo de discutir.
Portanto, o projeto não é o que foi possível, porque esse projeto é pior do que
o da Tabata Amaral e daquele senador, que gosta mesmo de apoiar o governo
autocrata e fascista, o qual só não deu o golpe por muito pouco, como estamos
sabendo agora. É inaceitável esse projeto, ele está neste nível e é preciso e
imperioso avançar em direção ao reconhecimento da subordinação, do
assalariamento real e do reconhecimento pleno dos direitos do trabalho,
preservada a flexibilidade de horários, que tipifica esta atividade. Mas
flexibilidade com direitos!
Pensando em motoristas
e entregadores, quando perguntados se querem CLT, a maioria diz não, se
perguntar se querem sindicato, boa parte diz não. Agora, se perguntar se eles
querem o descanso semanal pago, dizem que sim. A mesma coisa quando perguntam
se eles gostariam de ter férias pagas de um mês, 13º salário e condições para
usufruir de uma previdência na aposentadoria, eles dizem que sim. Era isso que
era possível fazer.
A CLT já permite a
muitas categorias que o trabalho seja flexibilizado na jornada, mas não
flexibilizado nos direitos. Esse monstrengo do governo Lula mantém a
precariedade completa das condições de trabalho. O motorista ou entregador pode
trabalhar até 12 horas? É um acinte, pois a jornada no Brasil é de 44 horas,
sendo de 40 horas para vários setores. Ter 12 horas ou mais, é outro vilipêndio
inaceitável.
Segundo ponto: a
plataforma tem direito de demitir, suspender ou bloquear desde que justifique.
Mas justifique como? O governo sabe muito bem que no mundo dos algoritmos os/as
trabalhadores/as não têm um gerente da empresa para conversar, não tem um espaço
físico de contato. Estamos vivendo uma era algorítmica, da inteligência
artificial, e os/as trabalhadores/as não sabem como funciona, quem opera e quem
programa. Alguém conhece algum programa ou algoritmo dessas empresas que diz
“Dirija lentamente, siga todas as regras de trânsito, teu tempo de entrega não
vai contar, trabalhando ou não as mesmas horas por dia você vai receber o mesmo
salário”. Não! É a gamificação. Isto é, quem rala e se mata vai adiante; quem
não faz assim, não segue. Portanto, esse projeto é nefasto. E necessário
avançar mais, com outro projeto.
E aqui trago outro
ponto importante. Se o projeto for para a Câmara e o Senado, ele será
aprofundado e se tornará ainda mais devastador. Se o governo tiver o mínimo de
consciência histórica da classe trabalhadora, ele retira esse projeto de lei. O
que o Lula chamou – ele estava com a cabeça em outra coisa, talvez no
Corinthians (eu falo aqui como corinthiano) – do “mais importante projeto” do
mundo ou algo parecido, que envolve empresas/plataformas e trabalhadores/as
uberizados é outro embuste.
Ele é pior do que
todos os projetos que foram feitos ou estão em discussão na Espanha,
Inglaterra, Itália, Portugal, França, Alemanha e União Europeia.
Na semana passada, o
projeto da União Europeia, por exemplo, reconheceu um ponto crucial: eles são
empregados. Essa é a questão fundamental.
• Em novembro de 2020, em entrevista ao
IHU, o senhor afirmou que “a expansão do trabalho uberizado nos levará à
escravidão”. Olhando em perspectiva o cenário de quatro anos atrás e hoje, o
senhor mantém sua afirmação? Por quais razões?
RA – Eu já concedi
muitas entrevistas ao IHU, é uma revista muito importante, que está sempre
muito em sintonia com as questões cruciais do Brasil e do mundo e uma revista
que acompanha as temáticas do trabalho. Eu já fiz, certamente, muitas
entrevistas. Mas faço uma pequena adição à pergunta. Na entrevista eu disse: “a
expansão do trabalho uberizado nos levará à escravidão digital”, faltou o
“digital”. Inclusive, assim está no título, que foi bem dado por quem editou
essa matéria.
Eu mantenho a
afirmação e agudizo: todos esses/as trabalhadores/as são prisioneiros de uma
máquina algorítmica, que eles não têm ideia como funciona, assim como nós
também não temos. Alguém aqui já viu um algoritmo? Ele é como um relógio que
pode alterar as horas? Não. O algoritmo é um inferno na mão dos CEOs, que são
os predadores. Evidentemente que os CEOs são uma parte das classes dominantes.
Não são os proprietários, mas os agentes fundamentais que mantêm a hierarquia
de controle do trabalho sob o capital. Ou seja, é o capital sobrepondo-se ao
trabalho.
A escravidão digital é
um traço dos nossos tempos. Nenhum desses motoristas consegue trabalhar sem ter
uma meta, visando receber um valor X no fim do dia. Mas, para atingir a meta,
ele não sabe quanto vai receber. Quanto as empresas descontam? O mundo algorítmico
e digital sequer mostra o que os motoristas ganharam e quanto lhes foi
descontado.
O nosso livro Icebergs
à deriva: o trabalho nas plataformas digitais (Boitempo, 2023) com pesquisas
densas e pesquisadores nacionais e internacionais, bem como nosso trabalho
anterior, coletivo, que originou o livro Uberização, trabalho digital e indústria
4.0 (Boitempo, 2020), ambos feitos em um Projeto com o Ministério Público de
Campinas e região (MPT-15) mostram que este comando maquínico, digital,
informacional e algorítmico faz com que o trabalhador não saiba nem o quanto
vai receber. Ele vai saber o valor recebido quando vem o pagamento final e ele
não pode perguntar por que é x e não y. Isso porque o comando mais global da
sociedade é do capital financeiro, o mais destrutivo de todos. E os artefatos
digitais e informacionais são projetados, programados e utilizados para impor a
exploração, a expropriação e a espoliação do trabalho estão dados.
A exploração é
evidente: trabalho de 12, 13 horas por dia, quando não mais. A expropriação é a
retirada de todos os direitos. E a espoliação é que, para entrar nessas
empresas, endividam-se com o capital financeiro, para pagar a prestação da
moto, carro ou bicicleta, etc.
E os/as
trabalhadores/as, endividados, não vão discutir se as empresas dão direitos ou
não; querem começar a trabalhar e se envolvem na lógica da gamificação. É
possível começar a trabalhar às 6h, às 8h ou às 10h da manhã, mas essa é a
única “autonomia” que tem, mas vão trabalhar as horas necessárias para cumprir
a meta. Foi isso que denominei como “escravidão digital”.
Em 2018, no livro O
privilégio da servidão, quando cunhei a expressão, tínhamos um número menor de
trabalhadores em plataformas, entregadores, trabalhadoras domésticas,
professores, médicos, jornalistas, advogados, trabalhadores do cuidado,
eletricista etc. Hoje nós temos uma massa de trabalhadores que trabalham por
aplicativo e que é prisioneira dessa escravidão digital.
• Deseja acrescentar algo?
RA – Agradeço a
entrevista, o cuidado na elaboração das questões e desejo vida longa para essa
publicação do IHU que honra o debate sério e qualificado da humanidade, em
especial da classe trabalhadora.
Fonte: Entrevista com
Ricardo Antunes, para o Instituto Humanitas Unisinos
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