'Reformas
sempre geram resistência', diz 'guru da desigualdade' sobre taxar super-ricos
no Brasil
O
Brasil é um dos países da América Latina que mais
reduziram sua desigualdade nos últimos 20 anos, período em que a região como um
todo foi na contramão do mundo ao mitigar sua disparidade de renda, diz o
economista sérvio-americano Branko Milanovic, um dos maiores especialistas em
desigualdade do mundo. Ele afirma que a proposta de taxar os super-ricos em
discussão no Congresso pode reduzir ainda mais a desigualdade
brasileira, ainda que seja preciso avaliar se a mudança poderá suscitar fuga de capital para o exterior. "Não há
qualquer dúvida de que a reforma [do Imposto de Renda] reduziria a desigualdade", diz Milanovic, em entrevista à BBC
News Brasil. "O argumento, eu suponho, do outro lado, é que é preciso
considerar se isso realmente teria um efeito positivo na economia — o que eu
acho que teria —, ou se os ricos esconderiam seu dinheiro, se eles colocariam o
dinheiro no exterior e coisas assim", pondera. "Muitas vezes isso foi
usado como uma ameaça, mas na realidade isso não se concretizou porque essas
pessoas ainda ganham mais dinheiro no Brasil do que colocando o dinheiro em
outro lugar", diz o professor da City University of New York (Cuny), que
foi economista-chefe do departamento de pesquisa do Banco Mundial por quase 20
anos.
A
reforma do IR prevê a ampliação da faixa de isenção do imposto para R$ 5 mil,
uma promessa de campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O
projeto prevê ainda um desconto parcial para rendimentos entre R$ 5 mil e R$
7,35 mil. Para compensar a perda de arrecadação com o aumento da isenção, o
governo propõe tributar progressivamente quem ganha mais de R$ 600 mil por ano
em até 10%, alíquota máxima aplicada a rendas anuais a partir de R$ 1,2 milhão;
e taxar na fonte em 10% lucros e dividendos distribuídos por empresas a seus
acionistas acima de R$ 50 mil mensais, inclusive dividendos enviados para o
exterior. A proposta teve urgência aprovada e agora pode ser votada diretamente
no plenário da Câmara, mas a votação foi adiada enquanto os deputados
aceleraram a tramitação da proposta de emenda à Constituição (PEC) que pretende
blindar parlamentares de processos criminais, conhecida como "PEC da Blindagem",
posteriormente derrubada pelo Senado.
Em
livro lançado recentemente no Brasil — Visões da desigualdade: Da
Revolução Francesa até o fim da Guerra Fria (Todavia, 2025) — Branko
Milanovic discute por que durante anos, no período da Guerra Fria, a desigualdade
desapareceu como tema dos estudos econômicos. O economista faz isso ao traçar
uma história do pensamento ocidental sobre a desigualdade, através das obras de
seis autores clássicos: François Quesnay, Adam Smith, David
Ricardo, Karl Marx, Vilfredo Pareto e
Simon Kuznets. Para cada um deles, faz uma pergunta hipotética: "O que seu
trabalho revela sobre a distribuição de renda como ela existe em sua época, e
como e por que ela pode mudar?" Milanovic explica a importância dessa
análise histórica: "Primeiro, é importante porque são autores canônicos.
Em segundo lugar, porque vemos como a visão da desigualdade está sendo moldada
pelas condições da época de cada um deles. E terceiro, é importante para nós
agora para que percebamos que realmente esquecemos completamente dois aspectos
importantes da desigualdade. Um é a estrutura de classes, e o segundo é o
surgimento da elite", considera o economista.
À BBC
News Brasil, Milanovic antecipou ainda o debate de seu novo livro, que deverá
ser lançado nos Estados Unidos em novembro, The Great Global
Transformation: National Market Liberalism in a Multipolar World ("A
Grande Transformação Global: Liberalismo de Mercado Nacional em um Mundo
Multipolar", em tradução livre, que será lançado no Brasil pela Todavia em
2026). Nele, o economista discute como a ascensão da Ásia nas últimas décadas —
principalmente da China, mas também de
países como Índia, Indonésia e Vietnã — redesenhou o topo de renda global,
levando a uma crescente insatisfação das classes médias de países
desenvolvidos, que resultou na eleição de Donald Trump nos Estados
Unidos e em instabilidades diversas na Europa. O especialista explica também
porque considera Trump um "neoliberal otimista" e, ao mesmo tempo, um
mercantilista na política externa.
<><>
Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
·
Seu livro Visões da Desigualdade foi
publicado recentemente no Brasil. Então, para começar, gostaria de lhe fazer a
mesma pergunta hipotética que você fez aos seis autores clássicos: o que seu
livro revela sobre a distribuição de renda em nosso tempo e como e por que ela
pode mudar?
Branko
Milanovic -
Basicamente, quando você analisa esses autores com a perspectiva de observar ou
interpretar como eles pensavam sobre desigualdade de renda, você tem que fazer
um pouco da sua própria interpretação porque autores (que vieram) antes de
[Vilfredo] Pareto — o que significa [François] Quesnay, [Adam] Smith, [David]
Ricardo e [Karl] Marx — não tinham realmente o que consideramos desigualdade de
renda como seu foco principal. Então o que se aprende é que, para eles, a
distribuição de renda se resumia essencialmente a distribuição entre classes. Portanto,
seja você um proprietário de terras, capitalista ou trabalhador, determinar sua
posição na distribuição de renda e estudar a distribuição de renda entre
indivíduos significava estudar quanto da produção ou renda total iria de fato
para os proprietários de terras, quanto para os capitalistas, quanto para os
trabalhadores. Era um estudo muito orientado por classes, o que eu acho que
desapareceu hoje em dia, em parte por causa da influência política de que não
devemos estudar classes, em parte por causa da mudança na estrutura da economia
neoclássica. Então, quando chegamos a Pareto, há a introdução da desigualdade
interpessoal, ela substitui a desigualdade entre classes. Mas, para Pareto, o
que aparece é uma elite no topo. Como você sabe, na verdade, os economistas não
estudavam as elites até recentemente. E então, finalmente, temos [Simon]
Kuznets. Para quem as desigualdades eram o resultado da divergência de renda e
produtividade entre agricultura e manufatura, entre áreas rurais e áreas
urbanas. Então essa seria, em poucas palavras, a história dos seis autores.
·
E por que isso é importante?
Milanovic - Primeiro, é
importante porque obviamente eles são autores canônicos.
Em
segundo lugar, é importante porque você vê como a visão da desigualdade está
sendo moldada pelas condições da época para cada um deles. E terceiro, é
importante para nós agora para que percebamos que realmente esquecemos
completamente de dois aspectos importantes da desigualdade. Um é a estrutura de
classes da desigualdade, e o segundo é o surgimento da elite.
·
E qual é a implicação de esquecermos esses dois aspectos
importantes?
Milanovic - A implicação
é que devemos perceber que a economia neoclássica, que prevaleceu da década de
1970 até provavelmente 2010, realmente ignorou, em grande medida, as questões
da desigualdade de renda. Como menciono no livro, isso se aplica menos à
América Latina [Milanovic menciona no livro os economistas estruturalistas
latino-americanos, como Celso Furtado, e outros autores do terceiro mundo, como o
egípcio Samir Amin, como exceções à regra de ignorar a concentração de renda
durante a Guerra Fria]. Isso porque a ignorância sobre essa questão nos países
capitalistas se deveu essencialmente, em primeiro lugar, à Guerra Fria, quando
houve uma tentativa dos EUA de afirmar que não havia classes no país. O segundo
elemento foi o financiamento da pesquisa por pessoas muito ricas. E pessoas
ricas obviamente não gostam de pesquisas sobre desigualdade. E a terceira razão
foi a mudança na economia neoclássica, onde na verdade não se estudava mais
classes, mas o que é chamado de "agentes", e agentes são, por
definição, iguais. Alguns têm mais capital, alguns menos, mas é irrelevante. Então,
por essas três razões, não estudávamos, e a implicação é que deveríamos
analisar por que os estudos sobre distribuição de renda foram deixados de lado.
É essencialmente porque as pessoas não queriam estudar, por razões políticas,
as elites e a estrutura de classes.
·
E por que foi diferente na América Latina?
Milanovic - A América Latina
foi uma exceção, em primeiro lugar, porque a desigualdade é tão óbvia na
região. Então as pessoas estudaram isso por muitos anos. Na verdade, há cerca
de 100 anos de história de estudos da desigualdade de renda na América Latina,
incluindo o Brasil. Em segundo lugar, porque as pressões da Guerra Fria para
afirmar que não se tratava de uma sociedade baseada em classes eram muito
menores. As pressões da Guerra Fria eram mais fortes nos países do Leste
Europeu, que tinham que afirmar que tinham abolido sua estrutura de classes. E,
nos EUA, isso ocorreu em meio à luta com a União Soviética na Guerra Fria.
·
Então, trazendo a conversa para o Brasil. O país está
atualmente debatendo sua reforma do Imposto de
Renda mais
significativa em décadas, que deve isentar ou reduzir impostos para 90% da
população e aumentá-los para os mais ricos. Como o senhor vê essa reforma e
como ela posiciona o Brasil no debate global sobre desigualdade?
Milanovic - O que foi
interessante na América Latina — por que a América Latina foi diferente [das
demais regiões] nos últimos 20, 25 anos — é que, se você observar os dados de
pesquisas domiciliares, todos os países registraram um declínio significativo
na desigualdade. O Brasil é ainda mais impressionante na redução da
desigualdade, mas isso também é verdade para o México, Chile, Peru. Acho que o
único país em que isso não aconteceu foi a Colômbia. Isso ainda faz da América
Latina um continente com grande desigualdade, porque [esse declínio] começou a
partir de um nível muito alto — no caso do Brasil, o coeficiente de Gini
[indicador de desigualdade de renda que varia de 0 a 100, sendo 100 a
desigualdade máxima] era de 60 e caiu para algo como 48 ou algo assim. Então é
um declínio muito significativo. Mesmo quando os pesquisadores ajustaram isso
para a subnotificação [de renda] no topo [no Brasil, em trabalhos com os
de Pedro Ferreira de Souza, Marc Morgan, Sérgio Gobetti e, mais recentemente, Gabriel Zucman] — porque é verdade
que as pessoas muito ricas, que são poucas em número, não são incluídas nas
pesquisas, que são limitadas e tendem a subestimar suas rendas. Então, mesmo
quando você ajusta isso, você ainda encontra um declínio na desigualdade de
renda, embora seja um declínio menor. Então, nesse sentido, a América Latina é
um continente atípico, porque tinha um nível de desigualdade alto, mas ele
diminuiu. É interessante que a desigualdade no Brasil agora é apenas um pouco
maior que na China. É um ponto muito interessante. Se você olhar, 20 anos
atrás, a desigualdade no Brasil era significativamente maior que a da China. Então
acredito que há forças econômicas por trás disso, não acho que seja só uma
questão política. Na verdade, no Brasil, o declínio começou ainda no governo
[Fernando Henrique] Cardoso. Obviamente, Lula foi muito importante, mas acho
que começou antes de seu primeiro mandato.
·
Mas o senhor está acompanhando a reforma atual que está
sendo discutida no Congresso brasileiro? Acredita que ela pode reduzir ainda
mais essa desigualdade?
Milanovic - Não há
qualquer dúvida de que a reforma reduziria a desigualdade. O argumento, eu
suponho, do outro lado, é que é preciso considerar se isso realmente teria um
efeito positivo na economia — o que eu acho que teria —, ou se os ricos
esconderiam seu dinheiro, se eles colocariam o dinheiro no exterior e coisas
assim.
Mas
acho que não há dúvida de que, se houver uma reforma séria que afete os 10%
mais ricos do Brasil, que são realmente muito ricos, reformando a tributação,
essa reforma reduziria a desigualdade.
·
Isso nos leva à minha próxima pergunta. À medida que a
reforma avança no Congresso, vemos uma resistência crescente por parte das
empresas, uma vez que ela inclui a tributação de dividendos, que atualmente são
isentos no Brasil. E também há esse medo de que os ricos possam deixar o
país devido
aos impostos mais altos, como o senhor mesmo mencionou. Como vê esse tipo de
resistência sempre que políticas para reduzir a desigualdade são propostas?
Milanovic - É
compreensível que sempre haverá resistência, porque políticas que reduzem a
desigualdade tendem obviamente a afetar mais pessoas com rendas mais altas.
Então, essas pessoas com rendas mais altas, especialmente aquelas com maior
riqueza, resistem a isso. E a resistência deles é vista fortemente na imprensa
porque eles têm influência na mídia, eles têm influência sobre o que outras
pessoas pensam. A resistência das pessoas mais pobres é muito mais difícil de
ver na mídia e nas notícias, porque as pessoas pobres não têm a mesma
influência que as pessoas ricas. Então, o fato de eles [os ricos] se oporem não
é uma surpresa. Agora, a pergunta que se deve fazer, e eu realmente não sei a
resposta, é se essa ameaça da chamada "greve de capital" ou de saída de capital do país é uma ameaça
real ou não. Muitas vezes isso foi usado como uma ameaça, mas na realidade isso
não se concretizou porque essas pessoas ainda ganham mais dinheiro no Brasil do
que colocando o dinheiro em outro lugar. Mas não há dúvida de que uma reforma
tributária que fizesse uma mudança significativa ou um aumento na alíquota
máxima do imposto, reduziria a desigualdade. Eu acho que é algo óbvio. A
questão é se isso é viável e se teria outros efeitos que não seriam necessariamente
bons.
·
O senhor deve lançar um novo livro em breve, The
Great Global Transformation. Sobre o que ele trata e como pode nos ajudar a
entender o mundo após Trump?
Milanovic - É um livro
sobre a ascensão da Ásia. Principalmente da China, é claro, mas também de
outros países asiáticos, como Índia, Indonésia, Vietnã e assim por diante. Os
países asiáticos aumentaram suas rendas e seu poder econômico muito mais do que
o resto do mundo. Isso produziu questões em dois níveis: é uma grande
redistribuição de poder econômico, o que implica numa redistribuição de poder
político e até militar; e levou ao conflito entre EUA e China. Então documentei
essa mudança drástica no poder econômico que ocorreu nos últimos 40 anos. E
essa mudança dramática de poder entre Estados tem implicações na renda das
pessoas. Muitos chineses tiveram um aumento na sua renda e ultrapassaram
pessoas de países ocidentais que estiveram no topo da distribuição global de
renda por quase 200 anos. E isso teve impacto na estabilidade política interna
de países ricos. Então o objetivo do livro é explicar que os processos de
recalibração do poder econômico entre a Ásia e o resto do mundo tiveram efeito
na estabilidade geopolítica, mas também na estabilidade interna dos países. Há
uma mudança no poder econômico entre os países que se traduz na mudança nas
posições de indivíduos pertencentes a diferentes países em uma ordem global. Agora,
se as classes médias dos países ocidentais caem na ordem global, elas ficam
insatisfeitas. E a única maneira de manifestar essa insatisfação é na esfera
política. E isso levou a Trump e a muitos outros tipos de instabilidade na
Europa.
·
Um dos elementos mais famosos do seu trabalho é a "curva do elefante", que levou o debate sobre
desigualdade do nível nacional para o global. Como esse gráfico nos ajuda a
entender o conflito atual entre a China e os EUA e a ascensão de Trump ao
poder?
Milanovic - Essencialmente, o
gráfico é o ponto de partida de tudo isso. O gráfico, como você sabe,
representa as diferenças nas taxas de crescimento [da renda para as diferentes
faixas de renda no mundo, entre 1988 e 2008]. Então, o que o livro faz é ir
além. Ele explica essa grande mudança, que é muito semelhante à Revolução
Industrial.Essencialmente, na Revolução Industrial, a Europa, os EUA e o Japão
se tornaram muito mais poderosos economicamente e, com isso, muito mais
poderosos política e militarmente. Não haveria colonialismo sem a Revolução
Industrial. Agora temos uma revolução tecnológica reversa, onde a Ásia se torna
muito mais importante politicamente e economicamente. Isso leva ao conflito
pela hegemonia entre EUA e China e talvez outros países como Índia, Rússia,
Brasil e assim por diante.Mas no nível individual, isso leva ao diferencial nas
taxas de crescimento das rendas e à substituição de parte da elite global, que
é inteiramente ocidental, por uma nova elite, que vem de grandes países asiáticos
e de países como, por exemplo, o Brasil.A elite brasileira do 1% mais rico
sempre esteve no 1% mais rico do mundo, mas isso não era importante o
suficiente para fazer uma diferença tão grande para as outras elites
ocidentais.Mas, quando você tem 1,4 bilhão de chineses, 1% deles são 14
milhões. Então, na verdade, é uma mudança muito significativa.
·
Esse famoso gráfico mostra as tendências globais de
desigualdade até 2008. Que formato ele teria hoje, se fosse estendido até 2025?
O que aconteceu com a desigualdade global após a pandemia?
Milanovic - Na verdade,
eu estendi os dados até 2023. O que aconteceu é que a forma da curva mudou. Bem,
duas coisas não mudaram. O crescimento das classes médias globais continua, o
baixo crescimento da classe média alta dos países ocidentais continua. Mas o
topo da distribuição de renda cresceu a taxas muito menores do que antes da
crise financeira [de 2008]. Então isso mudou.
·
Em artigos recentes, o senhor se referiu a Trump como um
"neoliberal otimista". Por que o senhor o considera um neoliberal,
sendo que ele tomou várias medidas de intervenção na economia dos EUA, adotou
políticas comerciais protecionistas e elevou gastos do governo?
Milanovic - Na verdade,
isso faz parte do livro. É preciso diferenciar — e isso infelizmente não tem
sido diferenciado o suficiente até agora — neoliberalismo doméstico e
neoliberalismo no exterior. Se você olhar para Trump, ele desregulamentou
coisas. Ele reduziu impostos. Ele quer um Estado menor e impostos mais baixos
sobre o capital. Ele quer impostos mais baixos para os ricos. Então, todas
essas são medidas neoliberais em âmbito doméstico.Internacionalmente, ele é um
mercantilista. Portanto, temos que distinguir entre o neoliberalismo interno e
o neoliberalismo externo. Ele se livrou do neoliberalismo no exterior, mas, na
verdade, aprofundou o neoliberalismo doméstico. E é por isso que o subtítulo do
livro é o que eu chamei de "liberalismo de mercado nacional".É um
neoliberalismo que agora se aplica apenas ao mercado interno, não se aplica nem
mesmo à esfera social interna, onde ele é contra todas as políticas de ação
afirmativa, políticas de igualdade, e tudo o mais. E não se aplica de forma
alguma à arena internacional.Então é por isso que eu acredito e argumento que
ele ainda é neoliberal no âmbito doméstico, não neoliberal no âmbito
internacional.
·
E quanto ao confronto entre Trump e o Federal
Reserve [o
Banco Central dos EUA]? Como isso se encaixa na sua interpretação de que ele é
um neoliberal?
Milanovic - A
independência do Banco Central foi originalmente um projeto neoliberal, datado
de 50 anos atrás. E era um projeto neoliberal cujo objetivo era deixar parte da
tomada de decisões econômicas fora do controle popular, porque eles tinham medo
que partidos sociais-democratas, socialistas, comunistas e outros vencessem. E
se eles vencessem, a formulação de políticas econômicas seria politizada. E o
interesse deles, que na verdade era o interesse na proteção do capital, não
seria seguido. Então, a ideia da independência do Banco Central sempre foi uma
ideia da direita, cujo objetivo era afirmar que se tratava de um domínio
profissional, restrito, de especialistas, que não deveria estar sujeito ao
controle do Legislativo ou Executivo. Então isso era fruto de um sentimento de
pessimismo, de que eles não seriam capazes de permanecer no governo e no
controle. Trump não é pessimista. Na verdade, ele é um otimista. Ele acredita
que "agora estamos no poder e permaneceremos no poder. Então não há razão
alguma para eu não controlar o Fed, porque acredito que seremos capazes de
controlá-lo de qualquer maneira". Então, eu vejo isso como a diferença
entre neoliberais mais cautelosos e pessimistas, que queriam ter certeza de que
os bancos centrais não seriam vítimas de medidas populistas ou socialistas, e
alguém que acredita que nunca seria vítima disso porque "nós é que vamos
governá-lo".
·
E qual o senhor acha que pode ser o resultado desse
confronto?
Milanovic - Eu realmente
não sei, não sou um macroeconomista. Só estou explicando o que acredito ser a
razão ideológica por trás disso. Porque as pessoas que são macroeconomistas,
cujos conhecimentos de história e ideologia são muito fracos, se convenceram de
que bancos centrais independentes devem ter existido desde sempre e devem
permanecer assim para sempre. Então o que eu estava tentando fazer — usando, o
livro Globalistas, de Quinn Slobodian [Enunciado Publicações,
2022], sobre a ascensão do pensamento neoliberal — era explicar ideologicamente
por que temos um banco central independente. Isso não caiu do céu, surgiu de
uma tomada de decisão política. E, a propósito, isso também é verdade sobre a
independência dos bancos centrais na maioria dos países, porque essa ideia foi
muito fortemente promovida nas décadas de 1980 e 1990. E, em muitos países, foi
quase totalmente aceita pelas elites nacionais pelas mesmas razões explicadas. E
é verdade que, em muitos países, os bancos centrais se tornaram independentes.
Mas isso também significou que eles não tinham supervisão democrática. Esse era
o ponto.
·
Com as nações mais pobres enfrentando tarifas mais altas
do que as nações mais ricas sob o governo Trump, isso pode afetar as tendências
globais de desigualdade de alguma forma nos próximos anos?
Milanovic - Pode, mas não
tenho muita certeza de quanto. Li que a Índia [contra quem Trump impôs tarifas
de 50%, similares às do Brasil] seria afetada significativamente, em 1,5% do
PIB. Mas não se deve perder muito tempo com as tarifas de Trump porque elas
podem mudar na semana que vem. Então não sabemos realmente. Acho que para ele é
um jogo. Ele aumenta a tarifa e então ganha outras coisas de você. E então diz:
"Ok, agora vou diminuir as tarifas". Então eu acho que as pessoas
gastam muito tempo estudando ou falando sobre alguma coisa, que na semana
seguinte se torna irrelevante.
·
É bastante relevante para o Brasil no momento, porque
fomos taxados em 50%. Então, para nós é um tópico bastante significativo no
momento.
Milanovic - Eu vi esse número
para a Índia e certamente terá um impacto no Brasil. Provavelmente de cerca de
1% do PIB, e isso não é desprezível. Um crescimento mais lento provavelmente
seria ruim para a desigualdade no Brasil e para a desigualdade no mundo. Mas
isso não é significativo. A desigualdade no mundo é um fenômeno grande demais e
mesmo as tarifas de Trump não serão vistas com tanta clareza [no horizonte
maior de tempo]. E, como eu disse, não acho que elas vão durar.
Fonte:
BBC News Brasil

Nenhum comentário:
Postar um comentário