sábado, 27 de setembro de 2025

Liszt Vieira: Donald Trump, química e mudanças

Não é comum o uso da psicologia nas análises políticas, mas, no caso de Donald Trump, a dimensão psicológica não pode ser descartada a priori, tendo em vista que estamos diante de personagem com traços psicóticos. Mediante o uso sistemático de mentiras e falcatruas, tornou-se um rico empresário e depois presidente dos EUA.

Como Presidente, suas ações têm mostrado certa lógica. Sempre ameaça ou aplica o pior, para depois ceder um pouco e conseguir o melhor para seu país, em sua visão pessoal. Donald Trump parece não ter estratégia ou projeto político, parece ter apenas táticas políticas de ocasião, que mudam conforme as circunstâncias ou seus interesses nas negociações.

Na realidade, porém, há uma característica constitutiva de seu governo: a destruição do equilíbrio dos poderes – condição sine qua non da democracia – em direção a um regime ditatorial, já que o governo dos EUA já pode ser considerado autoritário, pois o Executivo domina o Legislativo, a Suprema Corte e parte do Judiciário.

É muito difícil acreditar na “química” que rolou em poucos segundos entre Donald Trump e Lula. Donald Trump surpreende sempre, está sempre na mídia. Também rolou uma química entre Donald Trump e Vladimir Putin, e até agora não vimos resultados concretos na guerra da Ucrânia que essa química parecia anunciar.

O discurso de Lula na ONU foi magistral. A entrevista que deu em seguida também. Mas não deixa de ser estranho a projeção dessa “química” Trump-Lula para Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky. Todos nós sabemos que a diplomacia muitas vezes usa uma linguagem retórica, diz o dito pelo não dito, ou o não dito pelo dito.

Mas confesso que fiquei em dúvida se Lula estava falando sério ou estava de gozação quando disse o seguinte: “Eu sei que ele (Donald Trump) é amigo do Vladimir Putin. Eu também sou. Então, se um amigo pode muita coisa, dois amigos podem muito mais. Quem sabe a nossa química pode ser levada para o Vladimir Putin e para o Volodymyr Zelensky [e] a gente construa aquela saída que parece inesperada? Eu acho que pode ter surpresa no mundo” (O Globo, 25/9/2025).

A questão de fundo é saber se Donald Trump foi sincero ao falar de química com Lula, ou se foi maquiavélico e anunciou com isso seu afastamento de posições anteriores, como o apoio a Jair Bolsonaro, por exemplo. Segundo a Folha de S. Paulo, “o empresário Joesley Batista, um dos donos da gigante de carnes JBS, foi recebido em audiência pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, semanas antes do aceno do republicano ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na Assembleia-Geral da ONU” (Folha, 25/9/2025).

Ou seja, a “química” teria sido o estratagema usado por Donald Trump para negociar com Lula e o Brasil, abandonando Jair Bolsonaro à sua própria sorte? Que ninguém vá esperar coerência e caráter desse pedófilo eleito presidente dos EUA, depois de apoiar a invasão do Capitólio em 6/1/2021, após perder a eleição

Também no Brasil temos visto mudanças rápidas. Ano passado, a bandeira do patriotismo e do combate à corrupção estava na mão da direita. Hoje, é parte constitutiva da esquerda depois que a direita levou a bandeira norte-americana para a manifestação de 7/9, defendeu Donald Trump e suas sanções comerciais contra o Brasil, e apoiou a PEC da Blindagem, enterrada depois das grandes manifestações de protestos em todo o Brasil no domingo 21/9.

Tudo indica que Donald Trump passou a considerar a condenação de Bolsonaro como fato consumado. Como americano, conhece bem o ditado “It’s no use crying over spilt milk” (não adianta chorar sobre leite derramado). Tem problemas enormes à sua frente para ficar defendendo uma causa perdida. Principalmente, porque sua popularidade começa a se enfraquecer. Afinal, seu objetivo explícito, anunciado a quatro ventos, a reindustrialização dos EUA, não tem possibilidades de dar certo.

Com a globalização econômica, as empresas americanas passaram a produzir na Ásia pelo preço barato da mão de obra, o que garante maior lucro. O capitalismo se globalizou, os Estados Nacionais se enfraqueceram, a maioria virou província. A China, por exemplo, se fortaleceu no sistema mundial de livre comércio porque a mão de obra é baratíssima, o que possibilita menores preços.

Os EUA consomem mais do que produzem, importam mais do que exportam, daí o déficit. O poder dos EUA se baseia, além da força militar, na dominação do dólar, moeda universal, emitida pelos EUA, e agora ameaçada, a médio prazo, pelo BRICS.

Donald Trump quer dar marcha a ré e reindustrializar os EUA, onde a mão de obra é mais cara, o que iria gerar elevada inflação. Ou seja, não vai dar certo. A hegemonia unilateral dos EUA acabou, ou está acabando, caminhamos para um mundo multipolar. Nessa transição para a multilateralidade, aumenta muito a possibilidade de guerra.

Diante desse quadro, negociar com Lula é mais vantajoso do que ficar defendendo seu aliado Jair Bolsonaro e família. Para Donald Trump, a negociação se dá basicamente em três pontos: (i) Defesa das big techs norte-americanas ameaçadas pela regulação de países, como o Brasil. (ii) Acesso aos minerais estratégicos das chamadas Terras Raras. (iii) Redução do papel pró ativo do Brasil no BRICS, visto como ameaça ao dólar.

Eis aí, a nosso ver, o segredo da química trumpiana, que não é orgânica nem inorgânica. É econômica e geopolítica.

•        Uma diplomacia do espetáculo. Por Kristian Feigelson

Uma nova diplomacia midiática de força se desenrola hoje após a reunião dos iludidos entre Donald Trump e Vladimir Putin, em 15 de agosto no Alasca, seguida pela demonstração militar massiva de 3 de setembro passado em Pequim, com os três ditadores — o chinês, o norte-coreano e o russo — na Praça Tian’An Men, símbolo dos assassinatos de milhares de estudantes em 4 de maio de 1989.

Essa diplomacia do espetáculo vem junto com novas perdas na Ucrânia e bombardeios russos incessantes. Apesar do fortalecimento da OTAN, a Europa está enfraquecida e ameaçada em suas fronteiras, com uma intrusão sem precedentes de drones e aviões russos atualmente na fronteira da Europa, na Estônia, Lituânia, Polônia, Romênia, em um contexto novo onde Donald Trump e Vladimir Putin, cada um à sua maneira, contribuem para estabelecer um sistema complexo de deformação da realidade.

<><> O tapete vermelho de Anchorage

A última reunião entre Donald Trump e Vladimir Putin, em 15 de agosto no Alasca, teria selado um novo acordo de ilusão às custas da Ucrânia, testemunho das novas táticas de um ditador russo desesperado, implementando novas estratégias? Ou seria simplesmente mais uma reviravolta, após 17 ultimatuns do presidente americano, sucedidos de abraços no tapete vermelho — ou seja, novas maneiras evidentes de contornar uma diplomacia tradicional?

Lembremos da visita humilhante, em 28 de fevereiro de 2025, do presidente Volodymyr Zelensky, acusado de não ter cartas na mão, no escritório oval em Washington, amplamente divulgada na mídia mundial. Ela simbolizou a verdadeira mudança norte-americana, em favor de Vladimir Putin, de um Donald Trump implicado desde o fim dos anos 1980 em negócios com a Rússia. Nessa nova diplomacia do “deal”, feita de espetáculos e cortinas de fumaça, a Ucrânia, já exangue, foi pressionada a assinar rapidamente um acordo para a exploração de seus minerais pelos EUA. Diante de Donald Trump, o presidente russo, acusado como criminoso de guerra por um tribunal internacional, mas nunca questionado em seus deslocamentos, não tinha intenção de negociar ou ceder algo em Anchorage, antes de embarcar para a China para consolidar suas posições.

Já estávamos acostumados às excentricidades e ao espírito de improvisação de Donald Trump em várias questões internacionais importantes, começando pelas recentes taxas aduaneiras, e seu projeto de repartição do mundo, com a anexação da Groenlândia e do Canadá — para, literalmente, “tornar a América maior” (a Rússia se apoderaria então do Cáucaso e da Ucrânia). Donald Trump ainda anunciou de improviso, nesta ocasião no Alasca, possíveis “trocas” de territórios com a Rússia.

Essa ingenuidade foi repudiada por seu ex-conselheiro de segurança nacional, John Bolton, acusado de desviar informações confidenciais e que hoje é processado pela Justiça Federal norte-americana. Durante seu primeiro mandato, John Bolton foi seu terceiro chefe de segurança nacional, e eles se opuseram sobre o Irã, Afeganistão e Coreia do Norte. O FBI revirou, em agosto passado, os escritórios de Bolton, agora em campo oposto a Donald Trump após a publicação de seu livro sobre esses temas, acusando Donald Trump de falta de firmeza com a Rússia.

John Bolton narra, entre outras coisas, como Donald Trump pressionou, em 2019, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, a fornecer informações comprometedoras sobre o filho de Joe Biden, Hunter Biden, em troca de ajuda militar. Recentemente, em entrevista ao Financial Times, Bolton revelou que o presidente dos Estados Unidos raramente se preparava para seus encontros internacionais.

Na véspera da sua reunião em Anchorage, Donald Trump considerava este encontro como “uma reunião para medir a temperatura”, convencido de que perceberia rapidamente se as negociações deveriam avançar ou se a guerra deveria continuar. O tempo longo tradicional da diplomacia hoje se transforma em breves shows televisivos ao estilo americano, mas em benefício do presidente russo, enquanto comentaristas renomados qualificam Anchorage como “cúpula do fracasso”.

As discussões foram conduzidas por uma equipe reduzida de especialistas americanos em segurança internacional. E por uma razão: desde sua posse em janeiro, Donald Trump demitiu muitos quadros de política externa e segurança nacional. Segundo Eric Rubin, presidente da American Foreign Service Association (AFSA, o sindicato dos diplomatas americanos), 25% dos agentes do serviço exterior, considerados “politicamente incorretos”, foram exonerados.

Hoje, entre demissões e saídas voluntárias, vários postos-chave da administração ligados à Rússia e à Ucrânia estão vagos. Por exemplo, a embaixadora americana em Kyiv, Bridget Brink, uma democrata especialista na área pós-soviética, foi recentemente demitida.

Para a porta-voz adjunta americana, Anna Kelly: “sob a direção do presidente Trump e graças às funções conjuntas do secretário de Estado Marco Rubio, o Conselho de Segurança Nacional é mais relevante e influente do que nunca, e seria errado pensar que mais pessoal equivale a melhores resultados. Ao defender a eficácia otimizada por meio de uma reorganização do Departamento, nos tornamos mais leves…”. Tivemos um exemplo dessa leveza na última coletiva de imprensa do presidente, em 18 de setembro, em Londres, afirmando diante do primeiro-ministro britânico “resolver o conflito entre o ‘Aberbaijão’ (sic) e a Albânia!”. Os Estados Unidos, sem realmente avançar seus peões contra a Rússia, concederam finalmente um reconhecimento significativo ao legitimá-la na cena internacional.

<><> O putinismo de guerra

Vladimir Putin, por outro lado, é conhecido tanto por seu domínio dos assuntos engajados em reuniões quanto por sua habilidade em enganar o interlocutor, como demonstrou frente a Nicolas Sarkozy que veio negociar em Moscou durante a guerra Rússia-Geórgia de 2008, para finalmente endossar um fato consumado.

Hoje, a Geórgia está novamente sob vigilância russa após eleições fraudadas em outubro passado. No espaço pós-soviético, é sintomático ver Vladimir Putin insistindo particularmente sobre Geórgia e Ucrânia, duas repúblicas que souberam fundar, após 1918, curtas experiências de democracia antes de serem esmagadas pelo poder bolchevique.

Para os russos, trata-se de ganhar tempo contra os americanos para conquistar terreno e negociar em posição de força. Há outro símbolo de uma época soviética ainda não superada na Rússia hoje: ao se dirigir ao Alasca, Vladimir Putin fez escala em Magadan, cidade industrial às margens do Pacífico e terra de desolação, tristemente famosa por seus campos de trabalho forçado, onde milhões de prisioneiros de todo o mundo foram internados em condições de frio extremo.

O objetivo de sua visita a Magadan não eram os Gulags, nunca mencionados, mas a inauguração de uma fábrica de processamento de óleo de peixe, o apoio a uma equipe de hóquei de jovens russos e a comemoração de um monumento em memória da ponte aérea dos americanos no Alasca, durante a Segunda Guerra Mundial, em sua assistência militar a Stalin agora reabilitado na Rússia. Após décadas de silêncio, a ajuda americana é oportunamente relembrada na viagem de Vladimir Putin, em detrimento da história trágica dessa região.

Magadan foi também um lugar de exclusão e despejo para certo número de americanos que vieram evangelizar esses territórios remotos e que pereceram em Kolyma. Ao chegar a Anchorage, Vladimir Putin pôde até mesmo evocar, com ironia, o Alasca como sendo uma espécie de “América russa”, cedida aos Estados Unidos em 1867 pela Rússia por uma ninharia. O Alasca está a apenas 80 quilômetros da fronteira russa.

<><> Convergências e negociações

A reunião entre Donald Trump e Vladimir Putin reforça as convergências de dois presidentes autoritários e suas negociações recíprocas às custas da Ucrânia. Donald Trump enrola entre cessar-fogo e paz global e acaba por alinhar-se às posições de Moscou, enquanto está pronto para fornecer armas à Ucrânia, que agora precisa ser financiada pela Europa.

Os Estados Unidos vendem, mas não emprestam mais, buscando reescrever as propostas de Istambul de 2022. Reunidos em 18 de agosto na Casa Branca após a cúpula americana-russa, desta vez com Donald Trump e Volodymyr Zelensky, os sete líderes europeus saíram enfraquecidos, com garantias americanas vagas e sem qualquer perspectiva de resolução do conflito. Donald Trump se alinhou às posições russas, confirmando seu discurso desde a chegada ao poder.

A Ucrânia se compromete a comprar armas americanas por 100 bilhões de dólares, com financiamento europeu pelo acordo, uma forma de exportar esses contratos pela Europa. E de fato, no que foi negociado, ela surge capturada pelos novos interesses americanos. Por sua vez, os EUA podem fechar um acordo de 50 bilhões de dólares para a produção de drones, sob certas condições, com empresas ucranianas.

Mas, novamente, tudo isso ainda está obscuro, enquanto os Estados Unidos continuam a jogar com as fortes incertezas decorrentes da intransigência russa.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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