Estamos
vivendo o fim do capitalismo global? Ramonet avalia lições de Venezuela e
Palestina
Estamos
vivendo o fim do capitalismo global? A questão, levantada por Ignacio Ramonet,
jornalista espanhol e ex-editor do Le Monde diplomatique, atravessa
sua análise sobre a crise do capitalismo global.
Ao
examinar a decadência da União Europeia, a subordinação da Europa aos Estados
Unidos, o avanço da extrema-direita e os ataques contra experiências populares
como a Revolução Bolivariana na Venezuela e a resistência do povo palestino,
Ramonet revela os dilemas de uma civilização em colapso e aponta onde ainda se
pode buscar esperança no Sul Global.
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Confira a entrevista concedida:
·
Vivemos uma época de transformações profundas e
dramáticas que afetam todos os níveis de um modelo – o do capitalismo dominante
– em crise sistêmica, mas com a clara intenção de fazer toda a humanidade viver
a sua agonia. Do seu ponto de vista, como analista político experiente e
refinado, como interpreta esta crise?
Ignacio
Ramonet: Não
estamos diante de uma crise pontual do capitalismo global, mas de uma crise de
civilização. O sistema, em sua encarnação neoliberal e financeirizada, atingiu
um ponto em que já não consegue se reproduzir sem destruir os próprios
alicerces: o trabalho, a natureza, os laços sociais e até a ideia de comunidade
política.
O
capital transforma o colapso em estratégia, normaliza a precariedade e
administra a catástrofe como se fosse um estado natural. A agonia é longa e
violenta, e pretende arrastar toda a humanidade em sua queda. O que se anuncia
não é apenas o esgotamento de um modelo econômico, mas o fim de uma
racionalidade histórica: a que identificava o progresso com a acumulação
infinita.
·
E que contramedidas vê naquilo que muitos consideram o
surgimento de um mundo multicêntrico e multipolar, do qual, no entanto, não
emerge uma visão clara do futuro, como aconteceu no século passado, quando
grande parte do mundo acreditava na esperança do comunismo?
O mundo
multipolar já é um fato, mas ainda não é um horizonte. A multipolaridade significa
diversificação dos centros de poder, enfraquecimento da hegemonia absoluta dos
Estados Unidos e surgimento de atores como China, Índia e Rússia. Mas isso não
significa emancipação. No século 20, mesmo em meio a guerras e contradições, a
esperança comunista oferecia uma narrativa de futuro, uma bússola coletiva.
Hoje, a
multipolaridade parece mais uma negociação entre potências do que um projeto de
humanidade. Entretanto, nos movimentos sociais do Sul, nas resistências
feministas, indígenas e ambientais, insinua-se outra lógica: a de uma vida
pautada não pelo lucro, mas pelo cuidado. Aí reside uma perspectiva de
esperança, ainda embrionária.
·
Falemos da crise europeia, começando pelo sistema
político francês, agora mergulhado num novo e provável colapso do governo [que
caiu em 8 de setembro, após perder uma moção de confiança na Assembleia
Nacional, NdR]. Qual é a sua análise das forças em jogo e das possíveis
soluções?
A
França encarna de forma marcante a crise política europeia. A Quinta República,
concebida para garantir estabilidade, tornou-se um regime em ponto morto,
incapaz de gerar legitimidade. Macron governa com arrogância tecnocrática e
falta de visão: não fala à sociedade, mas aos mercados e a Bruxelas.
Esse
descompasso explica a raiva social, a fragmentação da esquerda e a ascensão da
extrema-direita. A Europa vê seu espelho partido na França: instituições que já
não representam, povos que se sentem ignorados, sociedades que buscam soluções
em protestos ou no voto. A verdadeira saída exigiria refundação democrática
desde a base, mas essa visão ainda não foi organizada politicamente.
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·
A França é o motor do rearmamento europeu, o país que
realiza o maior número de projetos financiados pelo Fundo Europeu de Defesa
(FED). A Itália de Giorgia Meloni segue o mesmo caminho, a Alemanha está a
rearmar-se, e os Estados Bálticos não são exceção. Poderá a União Europeia ser
simplesmente a do complexo militar-industrial, eternamente subordinada aos
Estados Unidos? E que consequências isso poderá ter no contexto dos conflitos
atuais?
O rearmamento europeu é o sintoma
mais evidente da subordinação do continente aos interesses estratégicos dos
Estados Unidos. França, Alemanha, Itália e os Estados Bálticos não se rearmam
para defender sua própria agenda, mas para reforçar o complexo
militar-industrial sob a tutela da Organização do Tratado do Atlântico Norte
(Otan).
A
Europa investe em armamento o que recusa investir em coesão social, educação ou
transição ecológica. Esse desequilíbrio revela uma escolha histórica: ser campo
de batalha e não promotor da paz. Ao abdicar de uma política externa autônoma,
renuncia à capacidade de oferecer ao mundo outra lógica que não a da guerra.
·
A crise das democracias ocidentais revela dois fenômenos
crescentes: o desencanto dos eleitores (especialmente à esquerda) e a ascensão
de partidos xenófobos e de extrema-direita, aparentemente menos inclinados a
recorrer a “táticas fortes” a nível geopolítico. Como é que este curto-circuito
ocorreu e como escapar a tal armadilha?
O
curto-circuito das democracias ocidentais tem raízes profundas. Durante
décadas, a social-democracia e grande parte da esquerda aceitaram o
neoliberalismo como um quadro inevitável.
Nesse
momento, ocorreu uma traição: milhões de trabalhadores, jovens e classes
populares sentiram-se privados de representação verdadeira. A extrema-direita
se impôs então como única narrativa de ruptura, propondo identidades fechadas,
soberanias fictícias e seguranças ilusórias.
É uma
narrativa pobre e exclusiva, mas sintoniza com o sofrimento social daqueles que
viram seus direitos violados. A solução não está em imitá-la, mas em
reconstruir um horizonte de emancipação: redistribuição radical da riqueza,
democracia participativa, internacionalismo, justiça social e ecológica. Em
outras palavras, devolver à política a capacidade de definir o futuro.
·
Enquanto se desintegra a possibilidade de uma alternativa
anticapitalista, ou de uma democracia avançada (o que foi chamado de
“Renascimento Latino-Americano” após a vitória de Chávez nas eleições
presidenciais venezuelanas de 1998), surge a ameaça de uma nova internacional
fascista, com diversas variantes. O “modelo” europeu também está a ganhar
terreno na América Latina?
O ciclo
progressista latino-americano, que alguns chamaram de “renascimento” após a
vitória de Chávez em 1998, abriu um horizonte inesperado em pleno regime
neoliberal: a possibilidade de uma democracia avançada, popular e inclusiva,
soberana e baseada na justiça social.
No
entanto, esse impulso inicial rapidamente esbarrou em limites e resistências:
sabotagem econômica, golpes de Estado “suaves”, guerra midiática e até
contradições internas dos próprios processos. Nesse vazio, ressurge um perigo
que se acreditava erradicado: uma internacional fascista com múltiplas faces –
religiosa, neoliberal, militarista – operando em redes e fortemente inspirada
pela Europa.
A
América Latina, que tantas vezes foi laboratório de emancipação, corre também o
risco de se tornar palco de novas formas de autoritarismo. A batalha atual
consiste em impedir que essa racionalidade exclusiva se torne norma e em
recuperar a ousadia de imaginar um projeto histórico único.
·
Qual é a sua análise do “laboratório venezuelano” à luz
dos novos ataques imperialistas contra a Revolução Bolivariana, mas também do
ponto de vista das forças de transformação? Como é que essa “experiência” se
insere na história do marxismo?
A
Venezuela continua a ser o grande laboratório político da nossa época. Ali se
busca concretizar o que o sistema mundial não pode tolerar: combinar democracia
participativa, soberania nacional e redistribuição social em um quadro
socialista.
Por
isso os ataques persistem: bloqueios, sanções, asfixia econômica e campanhas de
deslegitimação. Ainda assim, observamos na Venezuela as formas mais criativas
de resistência popular: comunas, autogestão e a ideia de poder a partir de
baixo.
Na
história do marxismo, a experiência bolivariana representa uma tentativa de
atualização: não repetindo dogmas, mas enxertando a tradição emancipatória nas
realidades latino-americanas, com Bolívar, Chávez, os povos indígenas e a
memória insurrecional do continente. É um processo inacabado, cheio de tensões,
mas também prova de que o marxismo não morreu: ele se transforma, reencarna e
busca novas sínteses.
·
Os aparelhos ideológicos de controle são cada vez mais
sofisticados. A guerra de quarta e quinta geração é acompanhada por uma guerra
cognitiva, como atestam o genocídio na Palestina – o mais televisionado e, no
entanto, o mais ocultado – mas também a agressão contra a Venezuela. No
entanto, com a chegada de Trump, o ataque contra os setores populares e as
visões que os representavam no século passado (socialismo e comunismo) é direto
e frontal. Como interpretar tudo isso?
Vivemos
uma época em que o domínio não se exerce apenas por armas e exércitos, mas
também por narrativas e dispositivos de controle mental. A guerra de quarta e
quinta geração, chamada “guerra cognitiva”, molda percepções, fabrica consensos
e banaliza injustiças. A Palestina é o caso mais brutal: um genocídio
transmitido ao vivo, mas dissimulado sob camadas de manipulação midiática.
O mesmo
se aplica à Venezuela e a qualquer processo que questione a ordem imperial. O
trumpismo e fenômenos semelhantes em outros lugares revelam essa lógica: um
ataque frontal contra setores populares e memórias de emancipação (socialismo,
comunismo, lutas operárias, feministas ou anticoloniais). O objetivo é
erradicar a própria ideia de alternativa. Nossa tarefa é o contrário: preservar
a memória, apoiar a resistência e alimentar o imaginário político de um outro
mundo possível.
·
Cem anos após o nascimento de Fanon, Malcolm X e Lumumba,
o Sul Global, a Palestina e a África em particular (penso especialmente no
Sahel) ainda precisam das suas mensagens? O socialismo bolivariano tem razão em
se concentrar na possibilidade de construir um novo homem e uma nova mulher
hoje, sem destruir aquilo que os impede? Ou devemos voltar à machete?
Um
século após o nascimento de Franz Fanon, Malcolm X e Patrice Lumumba, suas
mensagens continuam essenciais. Fanon ensinou que a colonização ocupa não
apenas territórios, mas também consciências, e que a libertação deve ser
material e psicológica. Malcolm encarnava a dignidade radical diante do racismo
estrutural. Lumumba simbolizava a soberania africana em um mundo dividido em
blocos.
Hoje,
na Palestina, na África e nos países do Sul, essas lições são vitais: sem
emancipação cultural não há emancipação política. O socialismo bolivariano, ao
falar do “homem e da mulher novos”, retoma essa tradição: transformar o ser
humano no próprio processo de luta, e não depois. Não se trata de “voltar à
machete” como pura violência, mas de reconhecer que nenhum projeto
emancipatório floresce sem desmontar os mecanismos de opressão que o sufocam. O
desafio continua o mesmo: libertar o ser humano em sua totalidade.
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Tarifaço dos EUA e declínio europeu estreitam ainda mais
relações China-África, avalia analista
Em
entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialista aponta que a
África é parte importante do processo de internacionalização da China, e que o
tarifaço dos EUA, somado ao "franco declínio euro-atlântico",
consolida de vez a cooperação entre Pequim e o continente.
A China
acumulou um superávit comercial de US$ 60 bilhões (cerca de R$ 321
bilhões) com a África até agora em 2025. O valor quase ultrapassa o total do
ano passado, e é registrado à medida que empresas chinesas redirecionam o
comércio para a região, enquanto as tarifas aplicadas pela administração do
presidente estadunidense, Donald Trump, restringem o fluxo de mercadorias para
os EUA.
A China
há muito tempo é o maior parceiro comercial do continente africano, mas o fluxo
de produtos fabricados pelo país para a região nunca foi tão importante, em
razão da guerra comercial com os EUA e da desaceleração da economia chinesa. Em
agosto, as exportações da China para os EUA caíram 33%, enquanto as
exportações para a África cresceram 26%.
Ao podcast
Mundioka, da Sputnik Brasil, a professora de relações internacionais da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do Centro
Brasileiro de Estudos Africanos (Cebrafrica), da universidade, Analúcia
Danilevicz Pereira, explica que a África tem ocupado um papel importante na
estratégia de internacionalização da China.
"Um
dos lugares com maior índice de crescimento econômico hoje é a África
Subsaariana, e também de crescimento demográfico de uma população jovem em
idade laboral, enquanto nós temos um espaço ocidental em declínio, envelhecido,
e que mostra já claramente sinais de desgaste sob o ponto de vista, vamos dizer
assim, do centro de poder internacional."
Danilevicz
aponta que o eixo afro-asiático tem uma enorme capacidade de produzir uma
mudança importante sob o ponto de vista internacional. Ela lembra
que durante a Guerra Fria Pequim desempenhou um papel de liderança
política em conferências de países africanos, contribuindo para a
independência destes.
Segundo ela, isso mostra a familiaridade das relações chinesas com o espaço
africano.
"E
eu diria mais, a África fez parte desse processo de internacionalização da
economia chinesa." Ela lembra que, a partir da década de 1980, o
Ocidente começa a se retirar
de espaços na
África, que passam a ser ocupados pela China, "que aproveita esse
vácuo".
"Lá
nos anos 1990, a China produzia muitos produtos muito baratos, de baixo custo,
e ela foi ocupando esses mercados. Só que hoje a China não é mais aquela dos
anos 1990. Hoje ela produz produtos de alta tecnologia, ela tem capacidade de
implementar projetos de cooperação econômica, de benefícios mútuos",
lembra.
A
especialista afirma ver um "franco declínio
euro-atlântico" nas relações econômicas e políticas, e nos padrões de
cooperação ocidentais, "que, evidentemente, não são de interesse
mútuo". Ela cita as mudanças de regime em países do Sahel, com rupturas na
relação com a Europa, que resultaram no processo conhecido
hoje como neodescolonização.
Danilevicz
acrescenta que as tarifas impostas por Trump vêm acelerando esse processo
de transição de relações porque a China consegue "fazer frente a isso
sem grandes preocupações".
"Meses
atrás, as tarifas chegaram a cento e tantos por cento, e os chineses bancaram
até o final, sem maiores prejuízos. Agora, os americanos tiveram que recuar
diante do nível de dependência [da China] que os EUA têm."
Por
outro lado, as tarifas norte-americanas também levaram a um movimento
de reconexão comercial no mundo, e cita como exemplo as sobretaxas
aplicadas à Índia para tentar forçar o país a cessar a compra de petróleo
russo.
"Os
indianos, da mesma forma, reagiram e disseram: 'Não, nós vamos continuar
comprando o petróleo da Rússia' […]. Então o que ocorreu? A Índia é fundadora
do BRICS. Os americanos conseguiram empurrar os indianos em direção à Rússia e
em direção à China, quando há contenciosos históricos entre Índia e
China."
Fonte:
Por Geraldina Colotti, no Pressenza/Diálogos do Sul Global/Sputni Brasil

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