terça-feira, 30 de setembro de 2025

Trabalho escravo no Brasil: números que chocam

Em 13 de maio de 1888, foi assinada a Lei Áurea, que extinguiu oficialmente a escravidão no Brasil e pôs fim a uma das formas mais brutais de exploração do trabalho. No entanto, essa realidade cruel, que parece tão distante, ainda se faz presente nos dias de hoje. Um levantamento da Predictus, maior base de dados jurídicos do país, revela que, entre 2015 e 2025, o Brasil registrou, em média, 1.856 novos processos por ano relacionados ao trabalho análago a escravidão, o equivalente a mais de cinco casos por dia, ao longo de uma década.

Ao todo, a análise reuniu 20.414 processos judiciais, formando a maior base de dados já examinada sobre o tema. Os números revelam um Brasil pouco conhecido: um país em que a escravidão moderna movimenta R$ 7,06 bilhões em disputas judiciais e atinge desde pequenos comércios até grandes conglomerados que faturam mais de R$ 1 bilhão por ano.

Casos recentes confirmam essa realidade. Em agosto, uma operação conjunta do Ministério do Trabalho e Emprego e do Ministério Público do Trabalho resgatou 563 trabalhadores submetidos a condições análogas à escravidão em uma obra de usina de etanol em Porto Alegre do Norte, no Mato Grosso. Recrutados sobretudo nas regiões Norte e Nordeste por meio de anúncios, muitos foram atraídos por promessas de altos salários, mas ao chegarem ao canteiro de obras, depararam-se com abusos, precariedade, jornadas exaustivas e um sistema de dívidas ilegais que restringia a liberdade de deixar o emprego, configurando aliciamento por dívida.

No mesmo mês, 59 trabalhadores foram resgatados em fazendas de café em Minas Gerais, onde enfrentavam condições degradantes: sem registro em carteira, precisavam comprar suas próprias ferramentas e equipamentos de proteção, trabalhavam sem acesso a banheiros, água potável ou locais adequados para refeições, e eram alojados em casas improvisadas, sem mobília e até sem energia elétrica. O caso mais extremo foi o de um idoso que viveu por quase 40 anos em uma propriedade rural sem jamais ter seus direitos reconhecidos.

Também em agosto, seis bolivianos e quatro argentinos, com idades entre 19 e 37 anos, foram libertados de um restaurante argentino em Porto Alegre. Recrutados em seus países de origem com promessas de salários altos eles se depararam com uma realidade oposta: alojamentos precários, remuneração muito inferior à prometida, jornadas que chegavam a 15 horas por dia, além do descumprimento de uma série de direitos trabalhistas básicos.

De acordo com o advogado Paulo Freire, especialista em direitos humanos e direito administrativo e sócio do escritório Cezar Britto Advocacia, o trabalho escravo, em sua conceitualização histórica, pode ser entendido como a privação integral dos direitos de uma pessoa. "Com a promulgação da Lei Áurea, houve a proibição da propriedade de uma pessoa sobre a outra. Entretanto, na contemporaneidade, o cerceamento de direitos de trabalhadores persiste, o que pode caracterizar trabalho em condições análogas à escravidão", explica.

No âmbito jurídico, o conceito está previsto no artigo 149 do Código Penal, que tipifica o crime a partir de quatro elementos:

(I) trabalho forçado: quando o trabalhador sofre coação física e/ou psicológica para exercer determinada atividade;

(II) jornada exaustiva: imposição de carga horária que excede os limites legais (44 horas semanais, segundo a Constituição Federal), comprometendo a integridade física e psicológica;

(III) condições degradantes: ausência de higiene, alimentação inadequada, falta de equipamentos de segurança, exposição a ambientes insalubres, entre outros fatores;

(IV) restrição de locomoção por dívida: impedimento de o trabalhador se desligar da atividade em razão de débitos contraídos, frequentemente criados de forma fraudulenta ou abusiva.

Paulo destaca que a presença de qualquer um desses elementos já é suficiente para a caracterização do trabalho análogo à escravidão. "Essa definição brasileira é amplamente referenciada por organismos internacionais por sua completude", ressalta.

O estudo também quantificou cinco modalidades de trabalho escravo nos processos examinados, excluindo deliberadamente o critério de "condições degradantes" para evitar distorções nos dados. O trabalho análogo à escravidão foi o mais identificado, representando 96,50% dos casos. Em seguida, aparecem: jornada exaustiva (3,54%), trabalho forçado (0,39%), restrição de locomoção (0,09%) e trabalho decorrente de tráfico de pessoas (0,03%).

<><> Impunidade

Quanto ao perfil das vítimas, a análise de gênero — baseada em metodologia que redistribuiu casos inicialmente classificados como indeterminados — apontou que 71,08% dos processos se referem a homens, 26,47% a mulheres e 2,45% a entidades coletivas, como sindicatos. O levantamento também revelou que 76,4% dos casos receberam justiça gratuita, confirmando o perfil de vulnerabilidade socioeconômica das vítimas.

O perfil de vulnerabilidade dos trabalhadores escravizados, segundo Paulo Freire, é um dos principais fatores que explicam a persistência de tantos casos de trabalho análogo à escravidão. Essa vulnerabilidade também se revela como o maior obstáculo para que essas pessoas consigam denunciar ou romper com essa realidade. Freire aponta que a falta de conhecimento sobre direitos básicos, a descrença na efetividade da Justiça e o receio de perder os poucos recursos que garantem a sobrevivência são elementos decisivos para a permanência nessas condições de exploração.

“A ausência de conhecimento sobre garantias fundamentais, como o direito ao salário mínimo, ao FGTS, à jornada de trabalho limitada a 44 horas semanais, além da vedação absoluta a situações degradantes ou de tortura, faz com que muitos trabalhadores sequer percebam que estão em um contexto ilegal”, afirma o especialista.

Outro ponto destacado por Freire é a distância geográfica entre os locais de maior incidência de irregularidades e as instituições de fiscalização e proteção, como o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Defensoria Pública da União (DPU). “Além disso, a força econômica e, muitas vezes, a influência política dos responsáveis pela exploração geram insegurança, levando o trabalhador a não enxergar na Justiça um instrumento de apoio, punição e reparação”, observa.

Os números reforçam essa percepção. Segundo a Predictus, os desfechos processuais seguem um padrão preocupante: 49,48% dos casos são encerrados por acordo judicial, e não por condenação, o que alimenta a sensação de impunidade.

Para o advogado, a impunidade, somada ao alto benefício econômico obtido com a exploração, é o que sustenta a persistência do trabalho escravo no Brasil. Ele afirma que as punições aplicadas aos empregadores flagrados não têm se mostrado eficazes para inibir a reincidência.

Segundo Freire, embora a lei preveja pena de reclusão de dois a oito anos e a inclusão do infrator na chamada “lista suja” do trabalho escravo, a efetividade dessas medidas ainda é reduzida. Ele cita estudo da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas (CTETP) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que revela: entre 2008 e 2019, dos 2.679 empregadores denunciados, apenas 112 (4,2%) foram condenados em última instância.

Um exemplo de impunidade é o caso da Fazenda Vale do Rio Cristalino, conhecida como “Fazenda Volkswagen”, pois pertencia a uma subsidiária da companhia. De acordo com levantamento da Comissão Pastoral da Terra e da CNBB, enviado ao Ministério Público do Trabalho em 2019, a fazenda chegou a empregar cerca de 900 trabalhadores entre as décadas de 1970 e 1980, sendo dois terços em condições análogas à escravidão.

Enquanto cerca de 300 atuavam em funções administrativas e de manejo de gado, outros 600, sem vínculo empregatício, realizavam atividades de desmate e roçagem, submetidos a vigilância armada, impedidos de deixar a fazenda e vivendo em alojamentos insalubres, sem água potável, alimentação adequada ou acesso a cuidados médicos. Apesar da gravidade, a condenação da empresa só foi proferida este ano.

Nesse contexto, o especialista destaca a relevância da Emenda Constitucional nº 81/2014, que acrescentou o art. 243 à Constituição Federal, prevendo a expropriação de propriedades rurais e urbanas onde for constatada a exploração de trabalho em condições análogas à escravidão. “Essas terras seriam destinadas à Reforma Agrária, sem qualquer indenização ao proprietário. Entretanto, a sanção ainda não foi efetivamente aplicada, pois depende de regulamentação, atualmente em tramitação no Senado por meio do PL 5.970/2019”, lamenta Freire.

<><> Quem explora

Na percepção de Paulo Freire, o perfil de quem explora é justamente o de quem mais lucra. “Em geral, são empresários com poder econômico e político que se aproveitam da vulnerabilidade dos trabalhadores e da baixa fiscalização para obter lucro”, afirma.

Uma das descobertas da investigação desmonta o mito de que o trabalho escravo no Brasil é um problema restrito a pequenos negócios informais. Na verdade, quase metade dos casos (47,92%) está ligada a grandes empresas, a maior categoria entre todas. Em termos estatísticos, isso significa que é mais provável encontrar trabalho escravo em uma grande corporação do que em um pequeno empreendimento.

Quase um em cada cinco casos (19,25%) envolve grupos econômicos bilionários, o que representa 1.946 processos contra empresas pertencentes a conglomerados que faturam mais de R$ 1 bilhão por ano. Além disso, 15,88% das ocorrências dizem respeito a grupos com mais de 5.000 funcionários, grandes corporações que, em teoria, deveriam dispor de estruturas sólidas de compliance e recursos suficientes para assegurar condições dignas de trabalho.

Outra constatação é que o trabalho escravo no Brasil contemporâneo não se restringe mais a fazendas isoladas do interior. O estudo identificou 880 setores econômicos diferentes envolvidos em casos. A construção civil lidera, com 777 ocorrências, refletindo um histórico de vulnerabilidade do setor. Mas a presença de bancos múltiplos (222 casos) e até da administração pública (279 casos) mostra que o problema extrapolou os limites tradicionais.

O estado com maior número de processos relacionados ao trabalho escravo é São Paulo. Se a prática fosse uma doença, o estado estaria em situação de epidemia: são 10.387 processos, mais da metade de todos os casos do país (50,88%). Só a capital paulista concentra 6.234 processos, o equivalente a 30,53% do total nacional. Para se ter ideia da dimensão, a cidade de São Paulo sozinha registra mais casos de trabalho escravo do que 24 estados brasileiros inteiros.

“São Paulo não é apenas o maior estado em população e economia. É também onde a fiscalização atua com mais eficiência e onde as denúncias chegam mais facilmente à Justiça”, aponta a análise.

¨      Brasil ainda enfrenta desafios no combate ao racismo

O Brasil celebra o Dia da Raça, em 05 de setembro, data criada para valorizar a diversidade cultural do povo brasileiro, formada pela miscigenação entre indígenas, negros, brancos e imigrantes, além de reforçar a importância do respeito às diferenças. Mais do que simbólica, a data é um chamado à conscientização sobre a tolerância e à construção de uma sociedade inclusiva e harmoniosa, diante da persistência do racismo e da intolerância.

Apesar dos avanços, os números revelam o crescimento dos crimes raciais no país. Em 2024, o Brasil registrou 18.200 casos de injúria racial, representando um aumento de 41,4% em relação aos 12.813 casos registrados em 2023. O número de ocorrências de racismo também cresceu, passando de 14.919 para 18.923 no mesmo período, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Esses dados evidenciam a permanência do preconceito estrutural e a necessidade de ações efetivas para combater a discriminação.

Para o advogado criminalista e professor de direito processual penal Osmar Callegari, esse crescimento está ligado a dois fatores centrais: a maior conscientização das vítimas, que passaram a registrar as ocorrências, e a naturalização de discursos de ódio tanto nas redes sociais quanto em ambientes presenciais. "Ou seja, não se trata apenas de um aumento de registros, mas da revelação de um problema estrutural que sempre existiu e agora aparece com mais clareza", ressalta.

Atualmente, as redes sociais concentram cerca de 60% dos casos registrados, conforme levantamento da SaferNet Brasil, mostrando que o ambiente digital amplifica práticas discriminatórias. O advogado explica que as redes funcionam como um megafone, dando voz a grupos racistas que antes se limitavam a círculos privados. "O anonimato, a ausência de filtros éticos e o alcance massivo criam um ambiente propício para a propagação da intolerância. É um espaço onde o preconceito se mascara de opinião e encontra audiência instantânea", afirma o especialista.

Entre janeiro e novembro de 2024, o Disque 100, canal de denúncias do Ministério dos Direitos Humanos, recebeu mais de 5,2 mil relatos de violações envolvendo racismo e injúria racial, abrangendo residências, escolas e ambientes virtuais. Para Callegari, isso revela que o problema não é isolado: "O racismo atravessa o lar, a sala de aula e os espaços digitais. Crianças, adolescentes e adultos convivem diariamente com práticas discriminatórias, do bullying escolar às ofensas em grupos de mensagens", destaca.

Na visão do advogado, o Dia da Raça deve ser entendido como um marco pedagógico. "Não é apenas uma data simbólica, mas uma oportunidade de repensar a história do Brasil, reconhecer a contribuição dos povos negros e indígenas e reafirmar o respeito à diversidade como pilar democrático", afirma.

Um avanço importante, segundo ele, foi a Lei 14.532/23, que equiparou a injúria racial ao crime de racismo. A norma alterou o Código Penal e a Lei nº 7.716/89, estabelecendo pena de dois a cinco anos de reclusão, além de multa, e garantindo que a vítima tenha acompanhamento jurídico em todos os atos processuais.

"A lei trouxe rigor ao tratar a injúria racial como crime contra a coletividade, imprescritível e com maior poder de investigação do Estado. A mensagem é clara: ofender alguém por sua cor ou origem não é mais 'mero xingamento', é crime", ressalta o especialista.

No entanto, ele destaca que a legislação deve ser acompanhada de conscientização social. "Não basta apenas punir; é necessário que a sociedade se mobilize para promover o respeito às diferenças e combater o preconceito estrutural", explica.

Callegari afirma que a lei atinge a conduta, mas não elimina a mentalidade, pois o racismo estrutural está presente nas relações sociais, na desigualdade de acesso a oportunidades e na perpetuação de estereótipos. "A conscientização social é a única ferramenta capaz de alterar esse cenário, porque ensina desde cedo que diversidade é riqueza e que preconceito não pode ser tolerado", declara.

À reportagem, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) informou que, para identificar um crime racial no Brasil, é preciso avaliar a intenção do ofensor. Se a ação visa ofender a dignidade de uma pessoa específica com palavras ou gestos racistas, trata-se de injúria racial; se atinge um grupo ou coletividade, impedindo-o de exercer algum direito com base na raça, o crime é de racismo. Todos os crimes estão descritos na Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Esses delitos são inafiançáveis e imprescritíveis.

O órgão ressalta que é necessário que as pessoas denunciem esses crimes, seja por meio de registro de ocorrência, seja informando diretamente ao MP por sua Ouvidoria. Também é imprescindível que sejam ampliadas políticas públicas de equidade racial e a conscientização da população sobre o racismo, para que, de fato, a sociedade se torne livre de discriminações.

De acordo com Nauê Bernardo Azevedo, diretor de Igualdade Racial da OAB-DF, ainda existem muitos pontos que precisam avançar para que a legislação atual, que combate o racismo e a injúria racial, funcione com efetividade. Ele explica que, apesar do aumento na aplicação de penas para quem comete esse tipo de crime, ainda existe uma grande cifra oculta de casos. Isso ocorre principalmente devido à resistência de alguns órgãos do sistema de justiça criminal em adotar mecanismos capazes de receber e processar essas denúncias de forma adequada.

Na percepção do advogado, um dos principais desafios para a efetiva aplicação das leis que punem esses crimes está no fato de que o racismo também pode se manifestar na forma como integrantes do sistema de justiça criminal enxergam a prática. Quando prevalece a visão de que se trata de uma ofensa menor ou não suficientemente grave para justificar a aplicação da lei, cria uma barreira à sua efetividade. "Por isso, a correta implementação da norma depende de um processo contínuo de letramento e sensibilização dos agentes responsáveis", declara.

Azevedo destaca ainda que a advocacia exerce um papel fundamental na luta pela igualdade racial, pois é a principal responsável por levar os casos ao Poder Judiciário. Cabem aos advogados e advogadas elaborar as teses a serem apreciadas, bem como trabalhar a jurisprudência e os precedentes. Por isso, é essencial que toda a classe esteja preparada para identificar e lidar adequadamente com esse tipo de situação.

 

Fonte: Correio Braziliense

 

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