Trabalho
escravo no Brasil: números que chocam
Em 13
de maio de 1888, foi assinada a Lei Áurea, que extinguiu oficialmente a
escravidão no Brasil e pôs fim a uma das formas mais brutais de exploração do
trabalho. No entanto, essa realidade cruel, que parece tão distante, ainda se
faz presente nos dias de hoje. Um levantamento da Predictus, maior base de
dados jurídicos do país, revela que, entre 2015 e 2025, o Brasil registrou, em
média, 1.856 novos processos por ano relacionados ao trabalho análago a
escravidão, o equivalente a mais de cinco casos por dia, ao longo de uma
década.
Ao
todo, a análise reuniu 20.414 processos judiciais, formando a maior base de
dados já examinada sobre o tema. Os números revelam um Brasil pouco conhecido:
um país em que a escravidão moderna movimenta R$ 7,06 bilhões em disputas
judiciais e atinge desde pequenos comércios até grandes conglomerados que
faturam mais de R$ 1 bilhão por ano.
Casos
recentes confirmam essa realidade. Em agosto, uma operação conjunta do
Ministério do Trabalho e Emprego e do Ministério Público do Trabalho resgatou
563 trabalhadores submetidos a condições análogas à escravidão em uma obra de
usina de etanol em Porto Alegre do Norte, no Mato Grosso. Recrutados sobretudo
nas regiões Norte e Nordeste por meio de anúncios, muitos foram atraídos por
promessas de altos salários, mas ao chegarem ao canteiro de obras, depararam-se
com abusos, precariedade, jornadas exaustivas e um sistema de dívidas ilegais
que restringia a liberdade de deixar o emprego, configurando aliciamento por
dívida.
No
mesmo mês, 59 trabalhadores foram resgatados em fazendas de café em Minas
Gerais, onde enfrentavam condições degradantes: sem registro em carteira,
precisavam comprar suas próprias ferramentas e equipamentos de proteção,
trabalhavam sem acesso a banheiros, água potável ou locais adequados para
refeições, e eram alojados em casas improvisadas, sem mobília e até sem energia
elétrica. O caso mais extremo foi o de um idoso que viveu por quase 40 anos em
uma propriedade rural sem jamais ter seus direitos reconhecidos.
Também
em agosto, seis bolivianos e quatro argentinos, com idades entre 19 e 37 anos,
foram libertados de um restaurante argentino em Porto Alegre. Recrutados em
seus países de origem com promessas de salários altos eles se depararam com uma
realidade oposta: alojamentos precários, remuneração muito inferior à
prometida, jornadas que chegavam a 15 horas por dia, além do descumprimento de
uma série de direitos trabalhistas básicos.
De
acordo com o advogado Paulo Freire, especialista em direitos humanos e direito
administrativo e sócio do escritório Cezar Britto Advocacia, o trabalho
escravo, em sua conceitualização histórica, pode ser entendido como a privação
integral dos direitos de uma pessoa. "Com a promulgação da Lei Áurea,
houve a proibição da propriedade de uma pessoa sobre a outra. Entretanto, na
contemporaneidade, o cerceamento de direitos de trabalhadores persiste, o que
pode caracterizar trabalho em condições análogas à escravidão", explica.
No
âmbito jurídico, o conceito está previsto no artigo 149 do Código Penal, que
tipifica o crime a partir de quatro elementos:
(I)
trabalho forçado: quando o trabalhador sofre coação física e/ou psicológica
para exercer determinada atividade;
(II)
jornada exaustiva: imposição de carga horária que excede os limites legais (44
horas semanais, segundo a Constituição Federal), comprometendo a integridade
física e psicológica;
(III)
condições degradantes: ausência de higiene, alimentação inadequada, falta de
equipamentos de segurança, exposição a ambientes insalubres, entre outros
fatores;
(IV)
restrição de locomoção por dívida: impedimento de o trabalhador se desligar da
atividade em razão de débitos contraídos, frequentemente criados de forma
fraudulenta ou abusiva.
Paulo
destaca que a presença de qualquer um desses elementos já é suficiente para a
caracterização do trabalho análogo à escravidão. "Essa definição
brasileira é amplamente referenciada por organismos internacionais por sua
completude", ressalta.
O
estudo também quantificou cinco modalidades de trabalho escravo nos processos
examinados, excluindo deliberadamente o critério de "condições
degradantes" para evitar distorções nos dados. O trabalho análogo à
escravidão foi o mais identificado, representando 96,50% dos casos. Em seguida,
aparecem: jornada exaustiva (3,54%), trabalho forçado (0,39%), restrição de
locomoção (0,09%) e trabalho decorrente de tráfico de pessoas (0,03%).
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Impunidade
Quanto
ao perfil das vítimas, a análise de gênero — baseada em metodologia que
redistribuiu casos inicialmente classificados como indeterminados — apontou que
71,08% dos processos se referem a homens, 26,47% a mulheres e 2,45% a entidades
coletivas, como sindicatos. O levantamento também revelou que 76,4% dos casos
receberam justiça gratuita, confirmando o perfil de vulnerabilidade
socioeconômica das vítimas.
O
perfil de vulnerabilidade dos trabalhadores escravizados, segundo Paulo Freire,
é um dos principais fatores que explicam a persistência de tantos casos de
trabalho análogo à escravidão. Essa vulnerabilidade também se revela como o
maior obstáculo para que essas pessoas consigam denunciar ou romper com essa
realidade. Freire aponta que a falta de conhecimento sobre direitos básicos, a
descrença na efetividade da Justiça e o receio de perder os poucos recursos que
garantem a sobrevivência são elementos decisivos para a permanência nessas
condições de exploração.
“A
ausência de conhecimento sobre garantias fundamentais, como o direito ao
salário mínimo, ao FGTS, à jornada de trabalho limitada a 44 horas semanais,
além da vedação absoluta a situações degradantes ou de tortura, faz com que
muitos trabalhadores sequer percebam que estão em um contexto ilegal”, afirma o
especialista.
Outro
ponto destacado por Freire é a distância geográfica entre os locais de maior
incidência de irregularidades e as instituições de fiscalização e proteção,
como o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Defensoria Pública da União
(DPU). “Além disso, a força econômica e, muitas vezes, a influência política
dos responsáveis pela exploração geram insegurança, levando o trabalhador a não
enxergar na Justiça um instrumento de apoio, punição e reparação”, observa.
Os
números reforçam essa percepção. Segundo a Predictus, os desfechos processuais
seguem um padrão preocupante: 49,48% dos casos são encerrados por acordo
judicial, e não por condenação, o que alimenta a sensação de impunidade.
Para o
advogado, a impunidade, somada ao alto benefício econômico obtido com a
exploração, é o que sustenta a persistência do trabalho escravo no Brasil. Ele
afirma que as punições aplicadas aos empregadores flagrados não têm se mostrado
eficazes para inibir a reincidência.
Segundo
Freire, embora a lei preveja pena de reclusão de dois a oito anos e a inclusão
do infrator na chamada “lista suja” do trabalho escravo, a efetividade dessas
medidas ainda é reduzida. Ele cita estudo da Clínica de Trabalho Escravo e
Tráfico de Pessoas (CTETP) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que
revela: entre 2008 e 2019, dos 2.679 empregadores denunciados, apenas 112
(4,2%) foram condenados em última instância.
Um
exemplo de impunidade é o caso da Fazenda Vale do Rio Cristalino, conhecida
como “Fazenda Volkswagen”, pois pertencia a uma subsidiária da companhia. De
acordo com levantamento da Comissão Pastoral da Terra e da CNBB, enviado ao
Ministério Público do Trabalho em 2019, a fazenda chegou a empregar cerca de
900 trabalhadores entre as décadas de 1970 e 1980, sendo dois terços em
condições análogas à escravidão.
Enquanto
cerca de 300 atuavam em funções administrativas e de manejo de gado, outros
600, sem vínculo empregatício, realizavam atividades de desmate e roçagem,
submetidos a vigilância armada, impedidos de deixar a fazenda e vivendo em
alojamentos insalubres, sem água potável, alimentação adequada ou acesso a
cuidados médicos. Apesar da gravidade, a condenação da empresa só foi proferida
este ano.
Nesse
contexto, o especialista destaca a relevância da Emenda Constitucional nº
81/2014, que acrescentou o art. 243 à Constituição Federal, prevendo a
expropriação de propriedades rurais e urbanas onde for constatada a exploração
de trabalho em condições análogas à escravidão. “Essas terras seriam destinadas
à Reforma Agrária, sem qualquer indenização ao proprietário. Entretanto, a
sanção ainda não foi efetivamente aplicada, pois depende de regulamentação,
atualmente em tramitação no Senado por meio do PL 5.970/2019”, lamenta Freire.
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Quem explora
Na
percepção de Paulo Freire, o perfil de quem explora é justamente o de quem mais
lucra. “Em geral, são empresários com poder econômico e político que se
aproveitam da vulnerabilidade dos trabalhadores e da baixa fiscalização para
obter lucro”, afirma.
Uma das
descobertas da investigação desmonta o mito de que o trabalho escravo no Brasil
é um problema restrito a pequenos negócios informais. Na verdade, quase metade
dos casos (47,92%) está ligada a grandes empresas, a maior categoria entre
todas. Em termos estatísticos, isso significa que é mais provável encontrar
trabalho escravo em uma grande corporação do que em um pequeno empreendimento.
Quase
um em cada cinco casos (19,25%) envolve grupos econômicos bilionários, o que
representa 1.946 processos contra empresas pertencentes a conglomerados que
faturam mais de R$ 1 bilhão por ano. Além disso, 15,88% das ocorrências dizem
respeito a grupos com mais de 5.000 funcionários, grandes corporações que, em
teoria, deveriam dispor de estruturas sólidas de compliance e recursos
suficientes para assegurar condições dignas de trabalho.
Outra
constatação é que o trabalho escravo no Brasil contemporâneo não se restringe
mais a fazendas isoladas do interior. O estudo identificou 880 setores
econômicos diferentes envolvidos em casos. A construção civil lidera, com 777
ocorrências, refletindo um histórico de vulnerabilidade do setor. Mas a
presença de bancos múltiplos (222 casos) e até da administração pública (279
casos) mostra que o problema extrapolou os limites tradicionais.
O
estado com maior número de processos relacionados ao trabalho escravo é São
Paulo. Se a prática fosse uma doença, o estado estaria em situação de epidemia:
são 10.387 processos, mais da metade de todos os casos do país (50,88%). Só a
capital paulista concentra 6.234 processos, o equivalente a 30,53% do total
nacional. Para se ter ideia da dimensão, a cidade de São Paulo sozinha registra
mais casos de trabalho escravo do que 24 estados brasileiros inteiros.
“São
Paulo não é apenas o maior estado em população e economia. É também onde a
fiscalização atua com mais eficiência e onde as denúncias chegam mais
facilmente à Justiça”, aponta a análise.
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Brasil ainda enfrenta desafios no combate ao racismo
O
Brasil celebra o Dia da Raça, em 05 de setembro, data criada para valorizar a
diversidade cultural do povo brasileiro, formada pela miscigenação entre
indígenas, negros, brancos e imigrantes, além de reforçar a importância do
respeito às diferenças. Mais do que simbólica, a data é um chamado à conscientização
sobre a tolerância e à construção de uma sociedade inclusiva e harmoniosa,
diante da persistência do racismo e da intolerância.
Apesar
dos avanços, os números revelam o crescimento dos crimes raciais no país. Em
2024, o Brasil registrou 18.200 casos de injúria racial, representando um
aumento de 41,4% em relação aos 12.813 casos registrados em 2023. O número de
ocorrências de racismo também cresceu, passando de 14.919 para 18.923 no mesmo
período, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Esses dados
evidenciam a permanência do preconceito estrutural e a necessidade de ações
efetivas para combater a discriminação.
Para o
advogado criminalista e professor de direito processual penal Osmar Callegari,
esse crescimento está ligado a dois fatores centrais: a maior conscientização
das vítimas, que passaram a registrar as ocorrências, e a naturalização de
discursos de ódio tanto nas redes sociais quanto em ambientes presenciais.
"Ou seja, não se trata apenas de um aumento de registros, mas da revelação
de um problema estrutural que sempre existiu e agora aparece com mais
clareza", ressalta.
Atualmente,
as redes sociais concentram cerca de 60% dos casos registrados, conforme
levantamento da SaferNet Brasil, mostrando que o ambiente digital amplifica
práticas discriminatórias. O advogado explica que as redes funcionam como um
megafone, dando voz a grupos racistas que antes se limitavam a círculos
privados. "O anonimato, a ausência de filtros éticos e o alcance massivo
criam um ambiente propício para a propagação da intolerância. É um espaço onde
o preconceito se mascara de opinião e encontra audiência instantânea",
afirma o especialista.
Entre
janeiro e novembro de 2024, o Disque 100, canal de denúncias do Ministério dos
Direitos Humanos, recebeu mais de 5,2 mil relatos de violações envolvendo
racismo e injúria racial, abrangendo residências, escolas e ambientes virtuais.
Para Callegari, isso revela que o problema não é isolado: "O racismo
atravessa o lar, a sala de aula e os espaços digitais. Crianças, adolescentes e
adultos convivem diariamente com práticas discriminatórias, do bullying escolar
às ofensas em grupos de mensagens", destaca.
Na
visão do advogado, o Dia da Raça deve ser entendido como um marco pedagógico.
"Não é apenas uma data simbólica, mas uma oportunidade de repensar a
história do Brasil, reconhecer a contribuição dos povos negros e indígenas e
reafirmar o respeito à diversidade como pilar democrático", afirma.
Um
avanço importante, segundo ele, foi a Lei 14.532/23, que equiparou a injúria
racial ao crime de racismo. A norma alterou o Código Penal e a Lei nº 7.716/89,
estabelecendo pena de dois a cinco anos de reclusão, além de multa, e
garantindo que a vítima tenha acompanhamento jurídico em todos os atos
processuais.
"A
lei trouxe rigor ao tratar a injúria racial como crime contra a coletividade,
imprescritível e com maior poder de investigação do Estado. A mensagem é clara:
ofender alguém por sua cor ou origem não é mais 'mero xingamento', é
crime", ressalta o especialista.
No
entanto, ele destaca que a legislação deve ser acompanhada de conscientização
social. "Não basta apenas punir; é necessário que a sociedade se mobilize
para promover o respeito às diferenças e combater o preconceito
estrutural", explica.
Callegari
afirma que a lei atinge a conduta, mas não elimina a mentalidade, pois o
racismo estrutural está presente nas relações sociais, na desigualdade de
acesso a oportunidades e na perpetuação de estereótipos. "A
conscientização social é a única ferramenta capaz de alterar esse cenário,
porque ensina desde cedo que diversidade é riqueza e que preconceito não pode
ser tolerado", declara.
À
reportagem, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT)
informou que, para identificar um crime racial no Brasil, é preciso avaliar a
intenção do ofensor. Se a ação visa ofender a dignidade de uma pessoa
específica com palavras ou gestos racistas, trata-se de injúria racial; se
atinge um grupo ou coletividade, impedindo-o de exercer algum direito com base
na raça, o crime é de racismo. Todos os crimes estão descritos na Lei 7.716, de
5 de janeiro de 1989. Esses delitos são inafiançáveis e imprescritíveis.
O órgão
ressalta que é necessário que as pessoas denunciem esses crimes, seja por meio
de registro de ocorrência, seja informando diretamente ao MP por sua Ouvidoria.
Também é imprescindível que sejam ampliadas políticas públicas de equidade
racial e a conscientização da população sobre o racismo, para que, de fato, a
sociedade se torne livre de discriminações.
De
acordo com Nauê Bernardo Azevedo, diretor de Igualdade Racial da OAB-DF, ainda
existem muitos pontos que precisam avançar para que a legislação atual, que
combate o racismo e a injúria racial, funcione com efetividade. Ele explica
que, apesar do aumento na aplicação de penas para quem comete esse tipo de
crime, ainda existe uma grande cifra oculta de casos. Isso ocorre
principalmente devido à resistência de alguns órgãos do sistema de justiça
criminal em adotar mecanismos capazes de receber e processar essas denúncias de
forma adequada.
Na
percepção do advogado, um dos principais desafios para a efetiva aplicação das
leis que punem esses crimes está no fato de que o racismo também pode se
manifestar na forma como integrantes do sistema de justiça criminal enxergam a
prática. Quando prevalece a visão de que se trata de uma ofensa menor ou não
suficientemente grave para justificar a aplicação da lei, cria uma barreira à
sua efetividade. "Por isso, a correta implementação da norma depende de um
processo contínuo de letramento e sensibilização dos agentes
responsáveis", declara.
Azevedo
destaca ainda que a advocacia exerce um papel fundamental na luta pela
igualdade racial, pois é a principal responsável por levar os casos ao Poder
Judiciário. Cabem aos advogados e advogadas elaborar as teses a serem
apreciadas, bem como trabalhar a jurisprudência e os precedentes. Por isso, é
essencial que toda a classe esteja preparada para identificar e lidar
adequadamente com esse tipo de situação.
Fonte:
Correio Braziliense

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