terça-feira, 30 de setembro de 2025

Com o assassinato de Charlie Kirk, irrompe nos EUA a ultraconservadora Teologia do Domínio

O movimento tático de Donald Trump é claro: explorar essa tragédia para capitalizar seu projeto. Ele não está apenas visando a esquerda; ele pretende mesclar religião e política como a base ideológica que regerá seu governo.

O assassinato de Charlie Kirk e os eventos que se seguiram oferecem uma janela extraordinária para a política interna dos EUA e, acima de tudo, para as tendências atuais da extrema-direita estadunidense de entrelaçar religião e política.

Na mesma quarta-feira à noite, dia do ataque, no Congresso, o minuto de silêncio em homenagem a Kirk foi seguido por uma discussão que terminou em gritos entre legisladores, outro indicador de que as tensões partidárias permanecem altas. Muitos analistas alertam para um país dividido.

O assassinato do ativista ultraconservador Charlie Kirk durante um debate ao ar livre em Orem, Utah, enfureceu o presidente Donald Trump e altos funcionários do atual governo. Em uma mensagem de vídeo do Salão Oval, qualificou a morte de Kirk como um “momento sombrio para a América”. Em seguida, atacou e culpou a “esquerda radical” pelo ataque. Ele alertou que seu governo encontraria “todos aqueles que contribuíram para esta atrocidade e outros atos de violência política”.

Trump declara uma batalha cultural não apenas contra a esquerda estadunidense, mas também contra qualquer movimento secular que se desvie de sua postura ultraconservadora, chamada de “nacionalismo cristão”. Este é um conglomerado ideológico da extrema-direita religiosa que defende a primazia de Deus e do cristianismo na vida política, social e cultural dos Estados Unidos. Portanto, se opõe à separação entre Igreja e Estado e protege um país fundado por cristãos e com base em princípios cristãos.

De acordo com essa ideologia sociorreligiosa, os Estados Unidos estão perdendo sua fé e se afastando das igrejas, e, portanto, estão se desamericanizando. Ou seja, os Estados Unidos foram e devem se tornar novamente uma nação cristã. Dessa forma, negam as raízes iluministas da democracia estadunidense. Sem fé e igrejas, o país está perdido. Portanto, precisamos enfrentar o secularismo, as ideologias esquerdistas mergulhadas no wokismo, na lógica demográfica e no secularismo.

No funeral de Kirk, realizado diante de mais de 100.000 pessoas em um estádio de Phoenix, Arizona, Trump o chamou de “mártir das liberdades estadunidenses”, ressaltando os aspectos políticos e religiosos da cerimônia. A cerimônia ressaltou os aspectos políticos e religiosos de uma homenagem assistida por milhões de pessoas na televisão e na internet. Compararam Kirk a Santo Estêvão, o primeiro mártir cristão, e citaram a Bíblia; parecia mais uma cerimônia com conotações religiosas.

Charlie Kirk, um ativista de sucesso nos círculos juvenis da extrema-direita, fundou um movimento juvenil ultraconservador chamado Turning Point, algo como Momento Crucial, aos 18 anos. Foi um líder e mobilizou milhões de votos de jovens nas campanhas pró-Trump. Kirk era um cristão evangélico. A congregação cristã à qual pertencia é a Calvary Chapel Association, uma associação de igrejas evangélicas. Seu nacionalismo cristão defende o domínio absoluto da lei de Deus sobre a sociedade. A sociedade deve ser governada de acordo com as leis divinas e a vontade da lei bíblica. O movimento nacionalista cristão é autoritário e impositivo; é fundamentalista e defende a supremacia branca e o dominionismo.

Esta é a Teologia do Domínio, que pressupõe a penetração e a supremacia de Deus:

a) na política e no poder,

b) na educação,

c) na família,

d) na mídia e

f) na cultura.

Após o assassinato, o governo Trump desencadeou uma caça às bruxas contra jornalistas, dissidentes e cidadãos que ofereciam uma visão diferente dos eventos on-line. A pressão do governo, digna do velho macartismo, foi usada para suspender o programa de Jimmy KimmelBrendan Carr, presidente do órgão regulador das comunicações, sugeriu à ABC que demitisse o apresentador e que, caso contrário, o governo tomaria medidas. “Podemos fazer isso por meios justos ou injustos”, declarou ele, em tom de ameaça.

O pensamento político e religioso ultraconservador é mais diverso do que imaginamos. Tomemos, por exemplo, a posição da viúva de Charlie Kirk: “Eu o perdoo porque foi isso que Cristo fez. A resposta ao ódio é não odiar”. O perdão é um ensinamento central do cristianismo que promove a reconciliação. Donald Trump, no entanto, se distanciou dessa posição, expressando que odeia seus inimigos e não lhes deseja o bem.

O presidente dos EUA despede Kirk como um mártir da democracia. O movimento tático de Donald Trump é claro: explorar essa tragédia para capitalizar seu projeto. Ele não está apenas visando a esquerda; ele pretende mesclar religião e política como a base ideológica que regerá seu governo.

Teologia do Domínio, mais do que uma ideologia conspiratória, é uma fusão de várias teologias políticas cristãs conservadoras muito diferentes.

Trump precisa de aliados fortes e poderosos. Trump pretende se unir a movimentos evangélicos vigorosos para apoiar e legitimar seu governo.

¨      A terapia do choque de Trump dividirá o MAGA. Por Harold James

O consenso nos países ricos, e talvez no mundo todo, é que um mundo em crise requer algum tipo de intervenção radical. Foi isso que o presidente dos EUA, Donald Trump, prometeu e, embora goze de ampla impopularidade (com a desaprovação pública em seu país aumentando constantemente), até mesmo seus opositores compartilham sua convicção de que a política tradicional não funcionará mais.

Mas vale a pena perguntar como as intervenções de choque terminam. A resposta histórica é: “mal”. Isso é verdade mesmo em casos em que os efeitos econômicos da “terapia do choque” pareciam positivos a princípio, como na Europa Central após o colapso do comunismo.

O problema é que os choques políticos sistêmicos geram narrativas tóxicas que aumentam de potência com o tempo. Sempre há suspeitas de que uma conspiração está na origem do choque e que potências estrangeiras estavam envolvidas. Independentemente dos benefícios iniciais da terapia, essas narrativas acabam polarizando a sociedade e minando a ordem política.

O governo Trump é aberto sobre seu radicalismo. A terapia do choque é a solução para todos os problemas globais, de Gaza e Irã à Ucrânia e Sudão. Trump usa tarifas como se fossem um aguilhão, impactando qualquer um (amigo ou inimigo) que não ceda imediatamente às suas exigências. Supostamente, essa abordagem – que inclui expurgos no serviço público e na cúpula militar, bem como uma guerra contra as universidades, em sua implementação doméstica – fortalecerá a economia dos EUA, inaugurará uma nova era de ouro para os Estados Unidos, forçará a OTAN a se alinhar, impedirá a Índia de comprar petróleo russo e conterá a ascensão industrial e militar da China, impulsionada pela IA.

Assim, o secretário do Tesouro dos EUA, Scott Bessent, argumenta que qualquer sofrimento que os estadunidenses sintam com as tarifas faz parte de um “período de desintoxicação”. Trump, aliás, fala das tarifas como uma “operação” e um “remédio”. Enquanto isso, Russell Vought, diretor do Escritório de Administração e Orçamento, explica: “Queremos que os burocratas sejam afetados traumaticamente”.

Para alcançar os efeitos do choque desejados, o governo é deliberadamente caprichoso. Por que outro motivo dois aliados próximos e bem-comportados como a Coreia do Sul e o Japão seriam inesperadamente atingidos por novas tarifas de 25%? De acordo com o secretário de imprensa da Casa Branca: “É prerrogativa do presidente, e esses são os países que ele escolheu”.

A maioria dos “acordos” anunciados por Trump são secretos, tendo sido negociados a portas fechadas. Os mesmos métodos foram empregados na Europa Central e na antiga União Soviética durante a desintegração do comunismo. Os programas de Mikhail Gorbachev – glasnost (abertura) e perestroika (liberalização econômica) – buscavam uma mudança sistêmica.

Mas sua implementação foi necessariamente opaca, pois o objetivo era substituir um status quo poderoso e corrupto. No entanto, algum envolvimento de pessoas dentro do sistema era inevitável (por exemplo, partes dos serviços de inteligência eram obrigadas a fornecer informações sobre o funcionamento do antigo sistema). O esforço acabou sendo percebido como um acordo corrupto com setores privilegiados do antigo aparato.

Da mesma forma, a atual polarização política da Polônia tem suas raízes na transição pós-comunista, ocorrida há cerca de 35 anos. As questões que dividem a Plataforma Cívica, de centro-liberal, e o partido antiliberal e populista Lei e Justiça (PiS) centram-se em um evento histórico pouco conhecido fora da Polônia: uma reunião em setembro de 1988 entre uma parte, mas não a totalidade, do movimento de oposição Solidariedade e o regime em um “centro especial” em Magdalenka, nos arredores de Varsóvia.

Os setores da oposição que ficaram de fora interpretaram a reunião como um ato de “confraternização”, onde os presentes concordaram em acabar com o socialismo por meio de uma “privatização vermelha” que entregaria ativos valiosos à velha elite. Da mesma forma, na Rússia, com seus vastos recursos naturais, as privatizações, consideradas uma terapia do choque, eram ainda mais flagrantemente corruptas e, portanto, passíveis de questionamento.

A segunda narrativa problemática diz respeito à intervenção estrangeira. Com a liberalização pós-comunista, a Alemanha tornou-se um demônio conveniente, devido à dolorosa lembrança de seus crimes na Segunda Guerra Mundial. Ainda me lembro de visitar Moscou em 1992 e ver fotos do presidente do Deutsche Bank sorrindo e abraçando Gorbachev.

Para a Polônia, uma parte fundamental do processo residiu na negociação da dívida da era comunista. Como grande parte dela era detida por bancos alemães, alguma interação com financiadores alemães e o governo alemão era inevitável. No entanto, era fácil para os inimigos do governo polonês semearem suspeitas de que ele estava traindo o interesse nacional, especialmente quando a adesão à União Europeia se tornou um elemento-chave da estratégia de transformação.

Que tipo de teorias da conspiração a estratégia do choque de Trump gerará? Alguns elementos já são perceptíveis. Haverá alguns vencedores, mas também muitos perdedores, especialmente porque a revolução MAGA (Make America Great Again) de Trump coincide com uma revolução tecnológica. À medida que a IA cria novos padrões de emprego, grande parte da base MAGA provavelmente será deslocada e rapidamente desenvolverá uma narrativa de vítima.

Apesar de todos os esforços do governo para confrontar o “Estado profundo”, alguns entusiastas do MAGA já reclamam que ele está fazendo concessões às elites estabelecidas. A persistência do escândalo de tráfico sexual de Jeffrey Epstein é apenas parte do problema. Assim como nas transformações pós-comunistas, aqueles que ostentam o poder colaboram estreitamente com os titãs das finanças globais e do capital internacional. A aliança do governo com o mundo das criptomoedas é bastante clara, como evidencia a insistência de Bessent de que as moedas estáveis serão essenciais para gerar demanda por grandes emissões de dívida soberana (necessárias devido à situação fiscal perigosamente desequilibrada). Nesse contexto, assim que um escândalo financeiro ou uma crise mais ampla surgir, teorias da conspiração consumirão o movimento.

Além disso, o governo não se esquiva de envolvimentos estrangeiros. A reunião estranhamente obsequiosa de Trump com o presidente russo, Vladimir Putin, no Alasca, mais uma vez levantou questões sobre a relação entre eles. Muitos agora temem que Trump tente impor uma “troca territorial” que simplesmente concederia à Rússia as regiões ucranianas de Luhansk e Donetsk. Enquanto isso, para muitos no mundo MAGA, Trump está fazendo concessões demais aos europeus e ucranianos em termos de garantias de segurança.

Quanto a Putin, obcecado em reverter o colapso do império soviético, as lições da aplicação da terapia do choque pela Rússia são claras. Sua máquina de propaganda explorará todas as oportunidades, espalhando insinuações de acordos secretos e laços estrangeiros para aprofundar as divisões entre os estadunidenses. O veneno da polarização continuará a corroer o sistema estadunidense. É a vingança da Rússia pelo suposto papel que os Estados Unidos desempenharam na subversão da União Soviética.

 

Fonte: La Jornada/El Economista – tradução do Cepat, para IHU

 

 

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