Viveiros
de Castro analisa três problemas mundiais: crise climática, IA e fascismo
Em
outubro de 2019, ou seja, há quase seis anos, a Agência Pública entrevistou
esse antropólogo que não se dá tanto valor, mas que é um dos mais influentes do
mundo. A conjuntura era outra, não havia pandemia, o presidente Lula seguia
preso em Curitiba e Jair Bolsonaro estava no primeiro ano de mandato. Na
ocasião, Viveiros nos disse que “não tinha visões especialmente inéditas e
profundas sobre tudo o que estava acontecendo e que estava, como todo mundo,
apenas perplexo”. Agora, em uma nova conversa inédita em seu apartamento no Rio
de Janeiro, fomos em busca de novas respostas aos tempos atuais com crise
climática, PEC da Blindagem, Anistia, COP30, Trump, Big Techs, inteligência
artificial (IA), capitalismo e, claro, o fim do mundo. Para ele, existem três
problemas hoje que são mundiais, o que inclui o Brasil: “de um lado a
catástrofe climática, do outro as novas tecnologias de inteligência artificial,
o terceiro, o fascismo. Essas três coisas estão profundamente ligadas”, afirma.
>>>>
A seguir, os principais trechos da entrevista.
• O senhor continua perplexo seis anos
depois? Onde sua perplexidade mais incomoda hoje?
Viveiros
de Castro – Durante esses seis anos aconteceu um monte de coisas para me deixar
ainda mais perplexo. Para começar pelo fim, diria que nós estamos um pouco
melhor do que estávamos pelo menos em relação a quem está governando o país.
Com todas as críticas que eu fiz, faço e farei ao PT e ao governo Lula, não tem
nem comparação, seria absurdo comparar os governos Lula com o que foi a
abominação do governo Bolsonaro, aliado à extrema direita. Talvez o que tenha
acontecido nesses seis anos tenha sido que o mundo ficou muito pior. Já estava
ruim, como um todo, não digo só Brasil, ainda que no Brasil tenha acontecido
coisas horríveis em larga medida por causa da pandemia, como o quase genocídio
dos Yanomami, as 700 mil mortes na pandemia que foram causadas por omissão
deliberada, imunidade de rebanho, Manaus como laboratório etc. Esse crime da
pandemia é um crime de saúde pública, da recusa às vacinas, da grande fake news
cloroquina, para usar o termo da época. Ou seja, foi um crime e esse crime não
foi julgado, estamos esperando que o STF e a PGR se encarreguem de denunciar
esse crime, não sei se ela denunciou.
• Ainda não.
Viveiros
de Castro – Além disso, obviamente está muito pior o mundo por causa dos
genocídios que estão acontecendo em Gaza, do que está acontecendo na guerra que
também é genocida da Rússia contra a Ucrânia. Na verdade, uma coisa que nós
temos que começar a levar em consideração é que o futuro vai ser pior que o
presente. Nós vivemos numa época, a
partir de mim para os mais moços, somos todos nascidos depois da Segunda
Guerra, e nós sempre achamos que o futuro ia ser melhor, de alguma forma ou de
outra. Você tem três problemas hoje que são mundiais e intrínsecos ao fato de o
Brasil estar no mundo: de um lado, a catástrofe climática, do outro, as novas
tecnologias de Inteligência Artificial (IA), e o terceiro, o fascismo. Essas
três coisas estão profundamente ligadas.
• Pode explicar o que é cada um dos
problemas?
Viveiros
de Castro – A inteligência artificial, na verdade, é a ponta de lança de um
projeto de dominação tecnológica do capitalismo por meio da IA que tem por trás
um projeto ideológico muito forte, que é um projeto de controle, na verdade, da
população humana em benefício de uma determinada fração muito pequena da
população. Estou pensando nas chamadas Big Techs, que estão entre as
principais, se não a principal, fonte de destruição do planeta pelo
extrativismo furioso. É interessante porque todo o projeto das Big Techs, o
projeto ideológico, é de sair da Terra, mas para sair da Terra eles precisam de
terras raras, ou seja, eles precisam cavar o planeta, destruir o planeta para
poder sair do planeta, e precisam gastar uma quantidade de água, como a gente
sabe, para os data centers como eles chamam, que aliás, o Brasil está
acolhendo, salvo engano, o ministro Haddad falou recentemente que está de
braços abertos para instalação de grandes centros de dados dessas Big Techs no
Brasil.
• É um plano de legislação que vai
desonerar imposto para atração de investimentos.
Viveiros
de Castro – No mínimo, isso tinha que ser discutido longamente com a chamada
sociedade civil. A gente sabe que não é por acaso que esse mesmo governo que
está planejando facilitar a implantação de centros de dados das Big Techs no
Brasil é o mesmo que diz que vai explorar petróleo na margem equatorial. É
difícil entender um pouco esse raciocínio de usar mais o petróleo para poder se
livrar dele, porque enfim, você só pode entender isso se você for antropólogo.
Então, você tem inteligência artificial, você tem a catástrofe climática e o
fascismo, das três coisas, digamos assim, tem uma que é irreversível, que é a
mudança climática. As outras duas podem estar ao alcance de deter, inverter,
suprimir, em particular, o fascismo. Quanto à mudança climática, nós podemos de
fato freá-la, diminuí-la, mas ela já aconteceu e vai continuar acontecendo. É
nesse sentido que o mundo vai ficar pior, pelo menos, do ponto de vista das
suas condições de habitabilidade pela espécie humana. Vai ter mais calor, mais
seca, mais catástrofe, mais furacão, mais fome, tudo isso que nós estamos vendo
acontecer. Essas três coisas estão ligadas, porque a inteligência artificial é
parte de um dispositivo que está no poder hoje hegemônico nos Estados Unidos. É
nesse sentido que o mundo vai ficar pior, pelo menos, do ponto de vista das
suas condições de habitabilidade pela espécie humana. Vai ter mais calor, mais
seca, mais catástrofe, mais furacão, mais fome, tudo isso que nós estamos vendo
acontecer.
• Só os EUA?
Viveiros
de Castro – Se você pensar bem, as três maiores potências mundiais não são as
três maiores, mas enfim, quatro dos maiores países do mundo, Estados Unidos,
China, Rússia e Índia, os quatro são regimes autoritários. Então nós estamos em
uma situação em que os quatro maiores países do mundo são regimes autoritários.
Um deles é milenarmente autoritário, que é a China, e um que vendeu sua imagem
como sendo o maior país democrático do mundo, que nunca foi o maior país
democrático do mundo, sempre foi um país, digamos assim, com um inconsciente
fascista fortíssimo que é os Estados Unidos, genocida, um país que várias de
suas invenções civilizatórias foram utilizadas pelo nazismo, como a linha de
montagem Ford etc, inspiraram Hitler, que era um grande admirador dos Estados
Unidos. Ou seja, é um país que hoje está na mão de um… vamos chamar… de um
palhaço insano, criminoso que é o Donald Trump. E que, aparentemente, conseguiu
hipnotizar uma parte da população estadunidense e que não se sabe o que vai
acontecer daqui pra frente até porque ele está rodeado de gente que chega a ser
pior que ele, porque é menos louca e mais inteligente.
• Inclusive nesse aspecto que o senhor
falou das big techs e da inteligência artificial, a correlação com o Trump é
muito evidente. Todas as reuniões, todos os benefícios que ele traz às big
techs…
Viveiros
de Castro – Exatamente. Há uma relação orgânica entre essa extrema direita que
casa conservadorismo de costumes com uma extrema violência xenófoba, ataque a
todas as formas de diferença possíveis, diferença sexual, diferença
linguística, diferença cultural. EUA é um país que claramente assumiu o
supremacismo branco como a sua ideologia oficial. Oficial no sentido do governo
americano, do estado americano e que é responsável por tudo o que a gente sabe
que ele fez na América Latina durante décadas. É graças aos Estados Unidos que
o Brasil teve um golpe militar em 1964, ou seja, então não é que os Estados
Unidos tenham mudado tanto assim. A impressão que eu tenho é que com o Trump os
Estados Unidos finalmente, como se diz em inglês, came of age, amadureceu, os
Estados Unidos chegou ao grande Estados Unidos que era pra ser, finalmente se
transformou, isto é, numa enorme potência, a maior potência genocida do
planeta.
• Inclusive o slogan do Trump é muito
nessa linha Make America Great Again.
Viveiros
de Castro – Exatamente. E que hoje utiliza vários estados como seus braços
armados, que é o caso de Israel, que é o 51º estado dos Estados Unidos, como
vários políticos dos Estados Unidos já disseram. E ao mesmo tempo, é
interessante perceber que você tem China, Índia, Rússia… o fascismo não é
privilégio dos brancos europeus ou de origem europeia. E de outro lado você tem
uma Europa que simplesmente está desaparecendo como influência
político-cultural no planeta. A Europa está imprensada entre a Rússia e os
Estados Unidos com medo de tudo, dividida entre Inglaterra e o resto, e
completamente perdida. Eu diria assim, o equivalente do que foi a Covid em
termos de impacto para a consciência mundial é hoje, evidentemente, o genocídio
palestino. Que a atitude diante do genocídio eu acho que é uma radiografia do
estado do planeta. Protestos demoraram, demorou-se um ano, dois anos, para que
os Estados Ocidentais começassem a dizer que estão indo longe demais. O estado
fascista de Israel, não o país, contava que a comunidade nacional demorasse a
responder o tempo suficiente para eles arrasarem com Gaza, anexarem a
Cisjordânia e avançar com o projeto expansionista de criar um grande Israel no
Oriente Médio. Com, inclusive, uma aliança semi-oculta de vários países árabes,
essa aliança entre os países produtores de petróleo, os Estados Unidos e Israel
ali, controlando tudo. O equivalente do
que foi a Covid em termos de impacto para a consciência mundial é hoje,
evidentemente, o genocídio palestino.
• Thiago Domenici – Voltando ao Brasil, e
as nossas contradições?
Viveiros
de Castro – Essa coisa da transição energética… eu acho que o Brasil está com
um problemão na mão, vamos ver o que vai acontecer, com a COP30, que é explicar
para todo mundo que a gente é o campeão do meio ambiente e ao mesmo tempo vai
tocar pau no petróleo na margem equatorial e em outros lugares. O que está se
chamando de transição energética na verdade não é transição. Eles estão somando
novas fontes de energia às anteriores, e não trocando o petróleo pelo eólico,
pelo solar, eles estão colocando no cardápio energético novas formas de energia
sem tirar o petróleo. O Brasil está produzindo menos petróleo porque está
produzindo muito vento, muita energia eólica? Que eu saiba não, ao contrário,
ele está produzindo cada vez mais petróleo, botando cada vez mais torres
eólicas e cada vez mais placas solares, dispositivos solares. Sem contar que a
gente sabe que essas novas tecnologias solar e eólica não chegam como se fosse
uma coisa sem problemas, ao contrário, têm mil problemas. A gente sabe que as
turbinas eólicas estão sendo colocadas, no Nordeste, em particular, de uma
maneira que é extremamente agressiva e danosa aos moradores, aos pequenos
produtores, aos pequenos agricultores que moram no Nordeste. Existe uma imagem
da tecnologia de que a tecnologia só tem vantagens, mas se você pensar bem,
toda inovação tecnológica tem uma espécie de troca, em que você troca uma
vantagem por uma perda.
• Thiago Domenici – A tecnologia traz
ônus?
Viveiros
de Castro – Acho que tem uma questão, a tecnologia como uma coisa que as
pessoas parecem hipnotizadas. Eu estou usando a palavra hipnotismo mas no
sentido muito geral, mas a gente viu isso nos últimos anos, a capacidade de
capturar as mentes humanas que as redes sociais têm, de conseguir interferir na
macropolítica de um jeito que a gente não imaginava que a velha imprensa
escrita, e mesmo televisada, não tinha essa capacidade, essa capilaridade, essa
possibilidade de entrar, que têm essas redes, todas elas controladas pelas big
techs, Meta, Google e assim por diante. O que está se chamando transição
energética na verdade não é transição. Eles estão somando novas fontes de
energia às anteriores, e não trocando o petróleo pelo eólico, pelo solar, eles
estão colocando no cardápio energético novas formas de energia sem tirar o
petróleo.
• O senhor também fala de uma espécie de
“estupidez estrutural” nesse contexto todo que está reinante na sociedade.
Nessa lógica, o senhor aponta alguns cenários: fala de fim do mundo, fim do
capitalismo, se um vem antes do outro. O que pode acontecer primeiro, o fim do
mundo ou fim do capitalismo?
Viveiros
de Castro – Pois é, se o fim do mundo acontecer primeiro, o problema está
resolvido, o capitalismo terá acabado. Se o capitalismo acabar primeiro, talvez
o mundo demore um pouco mais a acabar. A sensação que eu tenho, às vezes, a
impressão que dá, é que você está num pesadelo, no tempo do Bolsonaro era
assim, em que você cada dia tinha uma abominação nova, um absurdo novo que ele
tinha acabado de fazer, proibia alguma coisa que era óbvio que não podia
proibir, enfim, tinha um monte de absurdo, que é o modelo do Steve Bannon de
encher de merda os meios de comunicação para criar o caos, e o Bolsonaro estava
fazendo isso. Hoje isso está elevado à enésima potência. O Trump está fazendo
isso. A impressão que se tem é que os Estados Unidos estão derivando para
alguma coisa que chega a ser pior do que o nazismo, do que o
nacional-socialismo alemão, porque ele ataca agora todas as frentes ao mesmo
tempo e de um jeito caótico. O que está
acontecendo hoje é só destruição. Na década de 1930 estava cheio de gente que
achava que o Mussolini era legal, e de que o nacional-socialismo ia tirar a
Alemanhã do buraco. A gente sabe que aquilo tudo era uma monstruosidade, mas
hoje não tem nada, é só isso mesmo: é só destruição. Há um processo de volta ao
pior, que é muito espantoso. Fala-se muito do desencantamento do mundo com a
modernidade; o mundo perdeu o seu encantamento. A impressão que dá é que nunca
foi tão encantado quanto agora, só que é um encantamento do mal.
• A condenação do Bolsonaro pela tentativa
de golpe aconteceu. Agora tem esse movimento do Congresso que tenta anistiar as
pessoas que estiveram no 8 de janeiro e o próprio ex-presidente Bolsonaro. O
senhor pode tentar dar uma explicação do significado dessa sociedade que a
gente vive hoje…
Viveiros
de Castro – Tem uma palavra que eu detesto que é polarização, que acho
horrível, quem diz que tem dois lados ou tem uma polarização está do outro lado
que não do meu, mas o que você vê hoje, de fato, é uma espécie de fratura,
porque esse Congresso, todo mundo sabe que é o pior Congresso da história do
país, é o Congresso mais venal, mais corrupto, mais reacionário, jamais eleito
nesse país. A primeira coisa é que é difícil imaginar a tentativa de golpe do 8
de janeiro sem a tentativa de golpe no Capitólio do 6 de janeiro anterior. Não
estou dizendo que esse golpe tenha sido planejado pelos Estados Unidos, não é
isso, mas é evidente que há uma ressonância entre o que aconteceu nos Estados
Unidos e o que aconteceu no Brasil em termos da transição do regime, da recusa
à eleição etc. Claramente, as pessoas que organizaram o golpe são parte do
agronegócio. Claro que não foi todo mundo, e houve toda a direita estrutural
brasileira, um certo setor da classe média, mas essencialmente o dinheiro veio
de algum lugar. E também os militares tiveram uma incompetência para fazer esse
golpe, e isso foi gritante. Talvez porque não tivessem tido o apoio dos Estados
Unidos que tiveram em 1964, mas o fato é que eles fizeram um serviço porco. Não
conseguiram dar o golpe, colocaram a mulher do general Villas Boas para
organizar a porta do quartel, mas não conseguiram fazer. Evidentemente que a
maioria dos militares estava disposta a acompanhar o golpe, e continua
assim. O fato é que existe no Brasil uma
fração enorme, veja, 30% da população pelo menos dessas sondagens, pesquisas,
etc., é sempre de direita no Brasil. Tem sempre 30% de pessoas que são más, são
pessoas ruins que tem uma concepção ruim da vida, que tem uma relação ruim com
o fato de viver, de existir e que tem um certo gozo da destruição, um gozo da
vingança, um gozo da violência e que se sente espoliado de alguma forma, que
sente que não tem tudo o que merece e que por isso tem que se vingar de alguma
forma.
• A gente teve um presidente da República
que fez o que fez, tentou dar um golpe de Estado. Agora ele foi condenado. A
gente fala que as instituições não funcionam, apesar de serem disfuncionais em
muitos momentos. Mas eu acho que é um marco muito claro da democracia
brasileira. Queria saber do senhor se acha que a condenação do Bolsonaro é um
marco de uma democracia e que tipo de riscos ela ainda nos impõe.
Viveiros
de Castro – Condenação do Bolsonaro foi um marco? Eu diria assim: talvez seja
um pouco cedo para dizer. Porque eu estou pagando para ver. Quais são as
consequências efetivas que essa decisão recente do STF vai traduzir… Não estou
falando se ele vai em cana ou não. Quais são as consequências do ponto de vista
da reação da direita? Esses projetos que estão aí. Os PECs aí da bandidagem e o
da anistia evidentemente estão intrinsecamente associados ao processo contra o
golpe.
Eu não
quero ser otimista demais. Mas é claro que foi um gesto simbólico, fundamental
porque estamos fazendo o que deveríamos ter feito em 1985 e não fizemos. Então
quer dizer, é um marco, sim. Mas é um marco por enquanto simbólico. As pessoas
que estão no Congresso continuam dando golpe, continuam aí armando o golpe,
tentando o golpe de toda forma. E isso vem de longe. Não quero ir tão longe
assim, mas isso vem desde o Temer, do Cunha, do impeachment da Dilma e foi onde
o Bolsonaro apareceu na verdade. Foi com seu elogio público de um torturador.
Foi naquele momento que ele, de certa maneira, desabrochou para a política
brasileira. A democracia brasileira sempre foi uma democracia complicada. Então, o Brasil está em uma posição um pouco
frágil. O Brasil hoje está com o protagonismo que ele não tinha há alguns anos
em termos de [relevância] internacional. Em grande medida por causa do carisma
e da habilidade diplomática do Lula, do ponto de vista dos seus diplomatas e
dele. E, em parte, também esse protagonismo vem do fato de que o mundo está
esfacelado. E o Brasil está cada vez mais aparecendo como um poder geopolítico
importante. Eu diria que a gente está num momento perigoso no Brasil. Porque o
Congresso se tornou hoje inimigo da democracia, você tem um paradoxo.
As
pessoas que estão no Congresso, eles continuam dando golpe, continuam aí
armando o golpe, tentando o golpe de toda forma. E isso vem de longe.
• Onde é que a esquerda erra ou acerta
menos nessa renovação, nesse discurso para mobilizar mentes e corações e se
colocar contra o aspecto antidemocrático que a gente está vivendo?
Viveiros
de Castro – Eu acho que a esquerda, o PT em particular, cometeu um erro grave
em 2013, quando, em vez de assumir a Jornada de Junho, denunciou a jornada como
sendo uma manobra da direita, que não era. Deixou a direita tomar as ruas
depois… O tipo de manifestação hoje tem outro tipo de bandeira. Mas espero que
a esquerda saiba entender a importância que estão tendo essas manifestações de
hoje no Brasil inteiro, nas capitais, em várias cidades do Brasil.
Manifestações gigantescas que eu acho que não tinham desse tamanho desde 2013.
A esquerda no poder, como todo partido no poder, tem medo de gente na rua, não
é só a esquerda. Sobretudo à direita. Porque a massa é complicada e tal. E a
tentação de dizer “isso é coisa deles. Isso foi manipulado” é muito grande. Mas
eu acho que dessa vez, não. Acho que a esquerda está entendendo que esse
movimento é um movimento de esquerda. Essas manifestações de hoje estão se
opondo a um golpe, a um golpe legislativo. Eles tentaram um golpe físico, agora
tentando um golpe legislativo. E eu acho que tem um inimigo atrás. Tem um
inimigo no sentido de que, desde 1988, o inimigo é a Constituição Federal. A
direita brasileira está trabalhando contra a Constituição Federal desde que ela
foi proclamada. Marco temporal, por exemplo. Ou seja, a Constituição Federal é
o problema.
• E as eleições de 2026?
Viveiros
de Castro – Não vejo ninguém na esquerda brasileira com o perfil minimamente
comparável ao do Lula. Em termos de carisma, de prestígio, de popularidade
etc., por várias razões. Então é muito difícil saber o que vai acontecer. Do
lado da direita, ao contrário, você tem um monte de garoto-propaganda. A
cobertura política da imprensa brasileira, da imprensa corporativa, é de
direita. Sempre foi de direita. Manipula descaradamente. E depois, 30 anos
depois, pede desculpas. Como a Globo fez. Quando roubou no debate do Lula com o
Collor. Mente. Apoiou o golpe, depois dizia “opa, desculpa, foi mal, estava
doidão”. Eu acho que em 2026 vai ser muito complicado. Vai ser uma guerra, uma
briga de foice. Se chegarmos até lá, na boa, com o Bolsonaro em cana, com os
militares de cabeça baixa, com o Congresso desistindo dessas abominações, né?
Porque, se eu olhar o Brasil hoje, você tem uma parte do Brasil, que é o Sul do
Brasil e o Centro-Oeste, que é um outro país. É a direita do tipo americano, é
o agroboy, é o country, é o sertanejo, é outra cultura que foi introduzida
deliberadamente ali. A cultura do rodeio, do 4×4, do chapelão texano, da música
sertaneja, toda ela maciçamente financiada pelo agronegócio. A aliança disso com o neopentecostalismo, que
também vem dos Estados Unidos, que também é uma arma explícita de colonialismo
ideológico, que entrou no Brasil, essa aliança, cristianismo de direita, o
cristofascismo com o agronegócio, é um negócio que cria um caldo de cultura
tóxico, barra pesadíssima, contra o qual a esquerda tem que trabalhar com o
quê? Com Bolsa Família. Ou seja, com uma coisa que não faz o barulho que faz o
músico sertanejo cantando, ou o Malafaia gritando, ou o bispo Macedo com um
templo gigantesco, colocando PM para virar tropa de choque da Igreja Universal.
Quer dizer, a esquerda não tem a mesma tecnologia, talvez, para enfrentar esse
tipo de coisa.
• No tema ambiental, está todo mundo
ansioso com essa COP30 em Belém, e a gente sabe como ela é importante para o
planeta e, em especial, para o Brasil. Uma das coisas que mais se coloca nas
expectativas do Brasil é mostrar o que é a Amazônia, a importância que ela tem
para a regulação do clima e também para as nossas próprias emissões, tanto é
que existe a meta de zerar o desmatamento da Amazônia. Como o senhor tem visto
esse movimento em torno da COP30 quase como uma tábua de salvação?
Viveiros
de Castro – A impressão que eu tenho é que o Brasil está numa situação
complicada em relação a COP, como eu disse, por conta dessa coisa do petróleo.
Eu acho que a gente já viu que as coisas que foram acordadas nas outras COPs
não rolaram. O grande acordo de Paris não rolou. Estados Unidos está sabotando
e continuará sabotando toda e qualquer medida de real impacto sobre a economia
mundial do ponto de vista infraestrutural. Então, eu não sei, não estou
morrendo de otimismo em relação à COP, para dizer o mínimo. E a impressão que
eu tenho é que a COP vai ser muito mais utilizada como um ritual. Acho que existe uma política deliberada que
nunca, evidentemente, será confessada. Eu sei que eu estou em modo conspiracionista,
relevem isso como parte do pesadelo, mas existe uma necropolítica no sentido
literal.
• O senhor acha que a humanidade é capaz
de se livrar dos combustíveis fósseis?
Viveiros
de Castro – Sem o fim do capitalismo, acho muito difícil. A quantidade de
dinheiro, de capital, literalmente, a quantidade de capital fixo envolvida na
economia do petróleo é de tal magnitude que sem ele o capitalismo desaba. E ao
mesmo tempo não há nenhuma revolução em vista. Você tem que trocar toda a base
material da economia mundial. Essa infraestrutura eles não vão abrir mão.
Porque se abrir mão, eles dão um tiro na cabeça. Eles não conseguem abrir mão.
Não é possível. O sistema não consegue abrir mão disso. E evidentemente
tecnologias que vão surgindo são tecnologias que na verdade envolvem mais
dinheiro do capital. A tecnologia serve para resolver problemas que a
tecnologia criou. Não a própria, mas uma outra. Então é a máquina que funciona
assim. Como é que a gente vai esfriar a casa? Está muito quente.
Ar-condicionado. Vamos criar um outro aparelho que resolva o problema do
ar-condicionado. É o tal do tubarão. Ela não pode funcionar na base do
pressuposto de que certas coisas são finitas. Ela tem que imaginar um
crescimento contínuo. O crescimento contínuo é necessário para essa economia. E
o problema é que o mundo não é infinito. Então, necessariamente, em algum
momento, ele vai bater no muro. Chamado de muro energético. A que distância nós
estamos do muro é a grande questão. Você pode medir essa distância talvez por
graus centígrados de aumento. Nós estamos a meio grau do muro energético. Se
chegar a dois graus, vamos ter uma catástrofe difícil de sair. Se chegar a
quatro graus, literalmente, metade da vida no planeta acaba. E ao mesmo tempo,
você pensa: há 150 anos, não tinha petróleo. Sei lá, em 1880 não tinha
plástico. Imagina um mundo sem plástico? Não tinha plástico. Não tinha
gasolina. Não tinha carro. Tinha outros problemas, claro. Não é uma coisa tão
absurda imaginar? Se a gente bater no muro, bateu no muro. Vai pegar todo
mundo. Então, assim, me foge mesmo a compreensão do mundo, das pessoas, de não
entenderem que a gente está num beco sem saída real. E que grana, poder, nada
disso vai aportar na hora do fim. Eu vou entrar em modo conspiracionista total
agora.
• Thiago Domenici – Vamos lá.
Viveiros
de Castro – Aquilo que o Bolsonaro fez com a população brasileira durante a
Covid é uma política de deixar morrer. E é de deixar morrerem porque tem gente
demais no planeta do ponto de vista dessa elite. Então, eu acho que existe uma
política deliberada que nunca, evidentemente, será confessada. Eu sei que eu
estou em modo conspiracionista, relevem isso como parte do pesadelo, mas existe
uma necropolítica no sentido literal. Não de matar, mas de deixar morrer. Parar
com a vacina. Corta a ajuda humanitária. É uma política de deixar morrer. E
essa política de deixar morrer não é só porque acha errado ajudar. É porque
sabe que isso vai fazer as pessoas morrer e é isso que se pretende. Basta ver o
genocídio palestino e quase todo mundo está quieto. Se fosse genocídio francês,
o que estaria acontecendo hoje?
Fonte:
Por Thiago Domenici, da Agencia Pública

Nenhum comentário:
Postar um comentário