segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Condenação de Bolsonaro por golpe é avanço da democracia e recado ao mundo

A história registra um feito inédito: pela primeira vez, um ex-presidente, Jair Bolsonaro, e generais de alta patente das Forças Armadas são julgados e condenados por atentar contra o Estado democrático de direito. Esse marco não se explica isoladamente, mas se insere na longa e trágica tradição latino-americana de instabilidade institucional, em que golpes de Estado foram instrumentos recorrentes da classe dominante para barrar avanços populares e atender a interesses de potências estrangeiras.

Do Brasil de 1964 ao Chile de 1973, da Guatemala às ditaduras do Cone Sul, nossos povos enfrentaram sucessivos projetos de ruptura autoritária que buscaram interromper o desenvolvimento nacional e abrir caminho ao entreguismo.

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<><> Condenação de Bolsonaro rompe tradição de impunidade

A condenação por tentativa de golpe, após julgamento em tribunal civil, cria um marco na história do Brasil e da nossa ainda frágil democracia. Em um mundo em que governos e discursos autoritários seguem inflamando contra as instituições, nosso país dá um passo na direção oposta, reforçando que a vontade popular deve prevalecer.

Desde a Primeira República, as Forças Armadas ocuparam o papel de “poder moderador”, intervindo de maneira recorrente na vida política. Essa perspectiva se consolidou em 1964 e deixou marcas profundas na sociedade brasileira.

Com a anistia irrestrita aos agentes da ditadura, consolidou-se uma lógica de impunidade que parecia permanente. A responsabilização de autoridades de alto escalão pelo ataque mostra que as instituições se fortalecem e que o país avança rumo a uma prática política mais estável, baseada no respeito à soberania popular e ao Estado de direito.

A ingerência estadunidense na América Latina, por outro lado, está presente desde o fim da colonização. Trata-se da dura realidade de países submetidos à dominação externa: a transferência do jugo de um império para outro. O imperialismo dos Estados Unidos sempre manteve um apetite especial pela América Latina; afinal, fazemos parte do mesmo continente e, no caso do México, até dividimos fronteiras.

<><> Doutrina Monroe e o controle geopolítico da América Latina

Os colonizadores transformaram a América em extensão da Europa, padrão herdado pelos Estados Unidos. A expansão imperialista se desdobra em dimensões econômicas, ideológicas, culturais e sociais. Impuseram às colônias um processo de ocidentalização, moldando elites políticas, intelectuais e artísticas voltadas para seus padrões. As classes dirigentes se mantiveram nessa lógica de dependência a fim de garantir seus privilégios.

Exemplos clássicos dessa dominação são a Emenda Platt e a Doutrina Monroe, que consolidaram a pretensão de ter a América Latina como quintal estratégico. Durante séculos, seguimos sob governos subservientes aos interesses estadunidenses, entregando riquezas nacionais para assegurar o lucro do capital estrangeiro.

A ingerência política permanece constante, seja pelo apoio explícito das embaixadas estadunidenses, seja pelo financiamento de políticos alinhados à sua agenda de exploração econômica, controle de recursos naturais e mercados, ou até mesmo pelo treinamento de forças armadas locais.

Embora séculos tenham se passado desde a formulação dessas doutrinas, o imperialismo em nosso continente segue vivo. No século 20 e no presente, os Estados Unidos foram protagonistas no patrocínio de golpes — militares, no passado; parlamentares e judiciais, no presente.

No Brasil, tanto em 1964 quanto em 2016, o apoio estadunidense fez parte da trama golpista. Para nós, latino-americanos, a palavra “golpe” evoca lembranças amargas: tempos sombrios que não foram reparados, crimes que não foram julgados, desaparecidos que nunca tiveram justiça. No Brasil, militares seguem impunes pelas torturas e assassinatos cometidos.

<><> Bolsonarismo, imperialismo e extrema-direita caminham juntos

Por isso, não causa espanto o apoio estadunidense à tentativa de golpe dos bolsonaristas, os maiores vendilhões da pátria da nossa história. Mais uma vez, imperialismo, golpismo e extrema-direita caminharam juntos.

A condenação de Bolsonaro por atentar contra o Estado democrático de direito — com amplo direito de defesa, direito este negado outrora pelas ditaduras — é um marco histórico para a região em dois sentidos.

Primeiro, reafirma que conquistamos de volta a democracia, ainda que com contradições e limitações, garantindo o direito de existir e de se manifestar politicamente.

Por décadas, a luta por uma pátria justa foi violentamente silenciada; hoje, a punição de uma tentativa de golpe é resposta simbólica a tantas rupturas institucionais impostas ao continente.

O fato de a sentença ter sido proferida em um 11 de setembro, data do golpe contra Salvador Allende (Chile, 1970-1973), demarca uma ruptura simbólica: meio século depois, não foi um presidente democrático que caiu por ação imperialista, mas um golpista que foi condenado com todos seus direitos garantidos.

Segundo, representa o rechaço à extrema-direita em ascensão na América Latina. O julgamento sinaliza que, apesar dos avanços do golpismo e da extrema-direita — do Brasil, passando pelos golpes na Bolívia e no Peru, aos governos nefastos do Equador e da Argentina — nossas sociedades são capazes de responder.

Essa decisão repercute além das fronteiras brasileiras: fortalece setores democráticos latino-americanos, inspira lutas populares e mostra que não estamos condenados a repetir indefinidamente o ciclo de golpes, autoritarismos e entreguismo: Há forças democráticas e populares organizadas para resistir e avançar.

<><> O Brasil e a resistência popular contra a extrema-direita

Julgamos Bolsonaro. As ruas mostraram que estamos organizados para combater a extrema-direita. Aqui, onde a exploração sempre se impõe com mais força, onde democracias podem cair em segundos e golpes se tornam laboratório de experiências autoritárias, mostramos que há dignidade.

Mostramos que nossa democracia precisa avançar, e não retroceder. E sabemos: o que acontece no Brasil reverbera em toda América Latina, porque o destino e as batalhas de nossos povos são compartilhados.

O bolsonarismo encarnou um projeto explícito de subordinação aos interesses geopolíticos dos países centrais do Ocidente, rompendo com a tradição brasileira de autonomia e multipolaridade.

Esse alinhamento incondicional significou, na prática, o apoio a sanções contra nações vizinhas, o abandono de fóruns de cooperação Sul-Sul e o enfraquecimento estratégico de mecanismos de integração regional.

O resultado foi um Brasil deliberadamente isolado, que abriu mão de sua capacidade de mediação internacional e de sua vocação de liderança entre os povos do Sul. Este caso demonstra que instituições democráticas fortalecidas podem ser trincheiras eficazes contra a desestabilização geopoliticamente orientada.

A derrota jurídica e política desse projeto envia uma mensagem crucial aos países do Sul: é possível conter a onda autoritária e rejeitar a dependência estratégica.

Ao frear o bolsonarismo, o Brasil reabre a possibilidade de retomar seu papel como articulador de uma nova geometria de poder global, baseada na soberania e na cooperação horizontal.

O recado é claro: o Sul Global não está condenado à submissão — e o Brasil, com seu peso econômico, territorial e diplomático, volta a ser protagonista na construção de um futuro multipolar escrito com base em suas próprias escolhas soberanas.

Hoje, ao ver Bolsonaro e seus cúmplices condenados pela Justiça brasileira, celebramos não apenas uma decisão judicial, mas a primeira vez em que encaramos de frente.

•        A Democracia em jogo: Um alerta a partir da experiência do regime bolsonarista. Por Damiel Samam

A democracia, para muitos de nós, parece um dado adquirido. Nascemos e crescemos sob a sua promessa: o direito de escolher nossos governantes, a liberdade de expressar nossas opiniões e a garantia de que a lei vale para todos. No entanto, os recentes acontecimentos no Brasil, a partir da experiência bolsonarista, servem como um alarme estridente. A democracia não é um estado permanente; é uma construção diária, frágil e que exige vigilância constante.

O que as investigações sobre o governo Bolsonaro revelam é um retrato assustador de como o poder pode ser usado para minar as próprias fundações do sistema democrático. Não estamos falando de meras disputas políticas ou de divergências ideológicas, que são saudáveis e esperadas em uma sociedade plural. Estamos falando de um suposto plano meticuloso para anular o resultado de uma eleição legítima. Falamos de alegações sobre o envolvimento de altas patentes militares em tramas para se manter no poder a qualquer custo e de planos para perseguir e até mesmo eliminar opositores políticos e membros do judiciário.

Quando a contestação de uma eleição deixa o campo dos recursos legais e passa para a articulação de um golpe, com propostas de decretos de estado de emergência e discussões sobre o uso da força, a linha vermelha da democracia é cruzada. A defesa de Bolsonaro, que alega estar explorando “vias dentro da Constituição”, soa como um eufemismo perigoso. A Constituição não é um cardápio do qual se escolhem apenas as partes que interessam, ignorando os seus princípios fundamentais, como o respeito ao voto e à alternância de poder. Usar a Carta Magna como pretexto para justificar ações que visam destruí-la é a mais cínica das estratégias.

O episódio que culminou na invasão e depredação das sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023 não foi um ato isolado de vândalos. Foi o clímax de um longo processo de deslegitimação das instituições, de ataques à imprensa, de flertes com a ditadura e de um discurso de ódio que envenenou o debate público. A responsabilidade por esses atos não pode ser diluída. Ela recai sobre aqueles que, do mais alto cargo da República, insuflaram seus apoiadores contra o próprio sistema que os elegeu.

A defesa da democracia, portanto, não é uma bandeira de um partido ou de uma ideologia. É uma obrigação de todos e todas. Exige que a justiça seja firme e exemplar na punição daqueles que atentam contra o Estado de Direito, independentemente de seu cargo ou popularidade. A impunidade é o adubo que alimenta futuras tentativas golpistas.

O caso Bolsonaro é um estudo de caso que deveria ser ensinado a todas as gerações. Ele nos mostra que a democracia morre não apenas com tanques nas ruas, mas também com mentiras repetidas nas redes sociais, com o descrédito das urnas eletrônicas sem provas, com a intimidação de juízes e jornalistas e com a normalização do absurdo.

Defender a democracia é defender a verdade, o diálogo, o respeito às regras do jogo e, acima de tudo, o poder do voto. Não podemos, jamais, nos dar ao luxo de esquecer essa lição.

 

Fonte:  Diálogos do Sul Global

 

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