Condenação
de Bolsonaro por golpe é avanço da democracia e recado ao mundo
A
história registra um feito inédito: pela primeira vez, um ex-presidente, Jair
Bolsonaro, e generais de alta patente das Forças Armadas são julgados e
condenados por atentar contra o Estado democrático de direito. Esse marco não
se explica isoladamente, mas se insere na longa e trágica tradição
latino-americana de instabilidade institucional, em que golpes de Estado foram
instrumentos recorrentes da classe dominante para barrar avanços populares e
atender a interesses de potências estrangeiras.
Do
Brasil de 1964 ao Chile de 1973, da Guatemala às ditaduras do Cone Sul, nossos
povos enfrentaram sucessivos projetos de ruptura autoritária que buscaram
interromper o desenvolvimento nacional e abrir caminho ao entreguismo.
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Condenação de Bolsonaro rompe tradição de impunidade
A
condenação por tentativa de golpe, após julgamento em tribunal civil, cria um
marco na história do Brasil e da nossa ainda frágil democracia. Em um mundo em
que governos e discursos autoritários seguem inflamando contra as instituições,
nosso país dá um passo na direção oposta, reforçando que a vontade popular deve
prevalecer.
Desde a
Primeira República, as Forças Armadas ocuparam o papel de “poder moderador”,
intervindo de maneira recorrente na vida política. Essa perspectiva se
consolidou em 1964 e deixou marcas profundas na sociedade brasileira.
Com a
anistia irrestrita aos agentes da ditadura, consolidou-se uma lógica de
impunidade que parecia permanente. A responsabilização de autoridades de alto
escalão pelo ataque mostra que as instituições se fortalecem e que o país
avança rumo a uma prática política mais estável, baseada no respeito à
soberania popular e ao Estado de direito.
A
ingerência estadunidense na América Latina, por outro lado, está presente desde
o fim da colonização. Trata-se da dura realidade de países submetidos à
dominação externa: a transferência do jugo de um império para outro. O
imperialismo dos Estados Unidos sempre manteve um apetite especial pela América
Latina; afinal, fazemos parte do mesmo continente e, no caso do México, até
dividimos fronteiras.
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Doutrina Monroe e o controle geopolítico da América Latina
Os
colonizadores transformaram a América em extensão da Europa, padrão herdado
pelos Estados Unidos. A expansão imperialista se desdobra em dimensões
econômicas, ideológicas, culturais e sociais. Impuseram às colônias um processo
de ocidentalização, moldando elites políticas, intelectuais e artísticas
voltadas para seus padrões. As classes dirigentes se mantiveram nessa lógica de
dependência a fim de garantir seus privilégios.
Exemplos
clássicos dessa dominação são a Emenda Platt e a Doutrina Monroe, que
consolidaram a pretensão de ter a América Latina como quintal estratégico.
Durante séculos, seguimos sob governos subservientes aos interesses
estadunidenses, entregando riquezas nacionais para assegurar o lucro do capital
estrangeiro.
A
ingerência política permanece constante, seja pelo apoio explícito das
embaixadas estadunidenses, seja pelo financiamento de políticos alinhados à sua
agenda de exploração econômica, controle de recursos naturais e mercados, ou
até mesmo pelo treinamento de forças armadas locais.
Embora
séculos tenham se passado desde a formulação dessas doutrinas, o imperialismo
em nosso continente segue vivo. No século 20 e no presente, os Estados Unidos
foram protagonistas no patrocínio de golpes — militares, no passado;
parlamentares e judiciais, no presente.
No
Brasil, tanto em 1964 quanto em 2016, o apoio estadunidense fez parte da trama
golpista. Para nós, latino-americanos, a palavra “golpe” evoca lembranças
amargas: tempos sombrios que não foram reparados, crimes que não foram
julgados, desaparecidos que nunca tiveram justiça. No Brasil, militares seguem
impunes pelas torturas e assassinatos cometidos.
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Bolsonarismo, imperialismo e extrema-direita caminham juntos
Por
isso, não causa espanto o apoio estadunidense à tentativa de golpe dos
bolsonaristas, os maiores vendilhões da pátria da nossa história. Mais uma vez,
imperialismo, golpismo e extrema-direita caminharam juntos.
A
condenação de Bolsonaro por atentar contra o Estado democrático de direito —
com amplo direito de defesa, direito este negado outrora pelas ditaduras — é um
marco histórico para a região em dois sentidos.
Primeiro,
reafirma que conquistamos de volta a democracia, ainda que com contradições e
limitações, garantindo o direito de existir e de se manifestar politicamente.
Por
décadas, a luta por uma pátria justa foi violentamente silenciada; hoje, a
punição de uma tentativa de golpe é resposta simbólica a tantas rupturas
institucionais impostas ao continente.
O fato
de a sentença ter sido proferida em um 11 de setembro, data do golpe contra
Salvador Allende (Chile, 1970-1973), demarca uma ruptura simbólica: meio século
depois, não foi um presidente democrático que caiu por ação imperialista, mas
um golpista que foi condenado com todos seus direitos garantidos.
Segundo,
representa o rechaço à extrema-direita em ascensão na América Latina. O
julgamento sinaliza que, apesar dos avanços do golpismo e da extrema-direita —
do Brasil, passando pelos golpes na Bolívia e no Peru, aos governos nefastos do
Equador e da Argentina — nossas sociedades são capazes de responder.
Essa
decisão repercute além das fronteiras brasileiras: fortalece setores
democráticos latino-americanos, inspira lutas populares e mostra que não
estamos condenados a repetir indefinidamente o ciclo de golpes, autoritarismos
e entreguismo: Há forças democráticas e populares organizadas para resistir e
avançar.
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O Brasil e a resistência popular contra a extrema-direita
Julgamos
Bolsonaro. As ruas mostraram que estamos organizados para combater a
extrema-direita. Aqui, onde a exploração sempre se impõe com mais força, onde
democracias podem cair em segundos e golpes se tornam laboratório de
experiências autoritárias, mostramos que há dignidade.
Mostramos
que nossa democracia precisa avançar, e não retroceder. E sabemos: o que
acontece no Brasil reverbera em toda América Latina, porque o destino e as
batalhas de nossos povos são compartilhados.
O
bolsonarismo encarnou um projeto explícito de subordinação aos interesses
geopolíticos dos países centrais do Ocidente, rompendo com a tradição
brasileira de autonomia e multipolaridade.
Esse
alinhamento incondicional significou, na prática, o apoio a sanções contra
nações vizinhas, o abandono de fóruns de cooperação Sul-Sul e o enfraquecimento
estratégico de mecanismos de integração regional.
O
resultado foi um Brasil deliberadamente isolado, que abriu mão de sua
capacidade de mediação internacional e de sua vocação de liderança entre os
povos do Sul. Este caso demonstra que instituições democráticas fortalecidas
podem ser trincheiras eficazes contra a desestabilização geopoliticamente
orientada.
A
derrota jurídica e política desse projeto envia uma mensagem crucial aos países
do Sul: é possível conter a onda autoritária e rejeitar a dependência
estratégica.
Ao
frear o bolsonarismo, o Brasil reabre a possibilidade de retomar seu papel como
articulador de uma nova geometria de poder global, baseada na soberania e na
cooperação horizontal.
O
recado é claro: o Sul Global não está condenado à submissão — e o Brasil, com
seu peso econômico, territorial e diplomático, volta a ser protagonista na
construção de um futuro multipolar escrito com base em suas próprias escolhas
soberanas.
Hoje,
ao ver Bolsonaro e seus cúmplices condenados pela Justiça brasileira,
celebramos não apenas uma decisão judicial, mas a primeira vez em que encaramos
de frente.
• A Democracia em jogo: Um alerta a partir
da experiência do regime bolsonarista. Por Damiel Samam
A
democracia, para muitos de nós, parece um dado adquirido. Nascemos e crescemos
sob a sua promessa: o direito de escolher nossos governantes, a liberdade de
expressar nossas opiniões e a garantia de que a lei vale para todos. No
entanto, os recentes acontecimentos no Brasil, a partir da experiência
bolsonarista, servem como um alarme estridente. A democracia não é um estado
permanente; é uma construção diária, frágil e que exige vigilância constante.
O que
as investigações sobre o governo Bolsonaro revelam é um retrato assustador de
como o poder pode ser usado para minar as próprias fundações do sistema
democrático. Não estamos falando de meras disputas políticas ou de divergências
ideológicas, que são saudáveis e esperadas em uma sociedade plural. Estamos
falando de um suposto plano meticuloso para anular o resultado de uma eleição
legítima. Falamos de alegações sobre o envolvimento de altas patentes militares
em tramas para se manter no poder a qualquer custo e de planos para perseguir e
até mesmo eliminar opositores políticos e membros do judiciário.
Quando
a contestação de uma eleição deixa o campo dos recursos legais e passa para a
articulação de um golpe, com propostas de decretos de estado de emergência e
discussões sobre o uso da força, a linha vermelha da democracia é cruzada. A
defesa de Bolsonaro, que alega estar explorando “vias dentro da Constituição”,
soa como um eufemismo perigoso. A Constituição não é um cardápio do qual se
escolhem apenas as partes que interessam, ignorando os seus princípios
fundamentais, como o respeito ao voto e à alternância de poder. Usar a Carta
Magna como pretexto para justificar ações que visam destruí-la é a mais cínica
das estratégias.
O
episódio que culminou na invasão e depredação das sedes dos Três Poderes em 8
de janeiro de 2023 não foi um ato isolado de vândalos. Foi o clímax de um longo
processo de deslegitimação das instituições, de ataques à imprensa, de flertes
com a ditadura e de um discurso de ódio que envenenou o debate público. A
responsabilidade por esses atos não pode ser diluída. Ela recai sobre aqueles
que, do mais alto cargo da República, insuflaram seus apoiadores contra o
próprio sistema que os elegeu.
A
defesa da democracia, portanto, não é uma bandeira de um partido ou de uma
ideologia. É uma obrigação de todos e todas. Exige que a justiça seja firme e
exemplar na punição daqueles que atentam contra o Estado de Direito,
independentemente de seu cargo ou popularidade. A impunidade é o adubo que
alimenta futuras tentativas golpistas.
O caso
Bolsonaro é um estudo de caso que deveria ser ensinado a todas as gerações. Ele
nos mostra que a democracia morre não apenas com tanques nas ruas, mas também
com mentiras repetidas nas redes sociais, com o descrédito das urnas
eletrônicas sem provas, com a intimidação de juízes e jornalistas e com a
normalização do absurdo.
Defender
a democracia é defender a verdade, o diálogo, o respeito às regras do jogo e,
acima de tudo, o poder do voto. Não podemos, jamais, nos dar ao luxo de
esquecer essa lição.
Fonte: Diálogos do Sul Global

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