A
sedução da espoliação
Mesmo
não sendo fenômeno raro, pelo contrário, ocorre numa frequência perturbadora,
não deixa de causar algum espanto testemunhar grupos subalternizados aderindo a
posições da direita radical. Afinal, é um tanto contraintuitivo o apoio a
políticas que, ao fim, prejudicam a eles próprios. Escapando a uma lógica
racional pragmática, parece haver algo como uma “sedução da espoliação”, onde
mais do que alienar sobre os mecanismos de exploração, os atrai para uma
mobilização política voluntária e ativa que, invariavelmente, acaba por
conduzi-los a serem vítimas de novas (e velhas) formas de espoliação.
A
metáfora da “sedução da espoliação” busca sintetizar o paradoxo central da
adesão de setores populares a projetos neoliberais e de extrema direita que
aprofundam a precarização material desses mesmos grupos. A compreensão dos
processos e condições sociais que possibilitam a ocorrência de táticas
políticas exitosas para a cooptação de apoio popular a projetos antipopulares é
de importância estratégica. Partindo de uma análise histórica atenta ao fato de
que novas condições de dominação emergem em uma dialética onde formas
pretéritas podem persistir e concorrer ou ser ressignificadas e incorporadas.
Assim,
podemos perceber melhor em quais aspectos a sujeição se sustenta sob bases
historicamente desenvolvidas para a legitimação do sistema capitalista e quais
são particulares desta fase do capitalismo tardio sob hegemonia neoliberal.
A
“adesão” ao capitalismo, de forma geral, sempre buscou sua legitimidade
discursiva – aqui indiferente se manifesta no âmbito da política, religião,
etc. – amparada naquilo que Karl Marx apontava como ideologia, entendida como
uma forma de consciência social que reflete, de maneira distorcida, as relações
materiais da sociedade.
A
ideologia surge como uma representação invertida da realidade, apresentando as
relações sociais historicamente determinadas como se fossem naturais,
universais e imutáveis. Para além da dominação política objetiva dos
capitalistas, os processos de reificação obscurecem a percepção, o que torna
esta sujeição ainda mais plena e indispensável para o sistema. Como apontava
Theodor Adorno, “quanto mais completo o mundo como aparência, mais impenetrável
a aparência como ideologia” (2001, p. 28). Esta estrutura ideológica de
dominação tem mantido seus padrões básicos de funcionamento, de forma
relativamente estável, nestes últimos dois séculos e meio, pelo menos.
As
últimas quatro décadas foram marcadas pelo avanço e consolidação de uma
hegemonia do neoliberalismo em boa parte do mundo. A ascensão do neoliberalismo
não se deu pela persuasão democrática, mas pela exploração estratégica de
crises, conforme Naomi Klein expõe em A doutrina do choque. Catástrofes
naturais, conflitos bélicos ou instabilidades políticas são instrumentalizados
para impor políticas de austeridade, privatizações e desregulamentação, sob o
pretexto de “reconstrução” ou “modernização”.
Essas
medidas, formuladas por ideólogos como Milton Friedman, aproveitam o estado de
confusão e medo pós-traumático para implementar agendas que, em contextos
estáveis, enfrentariam resistência popular massiva. O resultado é o
“capitalismo de desastre”: um sistema que lucra com o caos, transferindo
recursos públicos para corporações enquanto as populações vulneráveis,
fragilizadas pela crise, veem direitos sociais e condições de vida serem
drasticamente reduzidos.
Políticas
como privatizações, desregulamentação laboral e cortes em direitos sociais
transferem riqueza para elites econômicas, intensificando desigualdades. Essa
espoliação é facilitada por crises (econômicas, políticas ou sanitárias), que
desorientam as vítimas e neutralizam resistências.
A
instabilidade das crises permanentes e variadas, turvam ou bloqueiam, para
muitos, as possibilidades cognitivas de compreensão da sociedade que os cerca.
Isso ajuda a explicar porque, mesmo ostentando resultados frágeis ou pífios
quando implementadas, as ideias neoliberais ainda apresentam adesão. Isto
ocorre, entre outros motivos, por operarem em um nível de sedução simbólica.
Para
garantir adesão popular, o neoliberalismo alia-se a pautas da extrema direita
que oferta compensações identitárias. A análise de Nancy Fraser sobre a tensão
entre redistribuição e reconhecimento nos ajuda a elucidar este ponto. Em sua
crítica ao “neoliberalismo progressista”, ela demonstra que setores populares
são seduzidos por um “falso pacto”: enquanto minorias recebem um limitado
“reconhecimento” identitário (como representação simbólica em discursos ou
políticas superficiais de diversidade), a redistribuição de riqueza é
sistematicamente negada.
A
extrema direita, por sua vez, inverte essa lógica: oferece uma ilusão de
restauração de status (via nacionalismo, moral religiosa ou supremacia racial)
a grupos despossuídos pela globalização, sem questionar a concentração de
capital. Nancy Fraser argumenta que ambas as estratégias fragmentam as lutas
sociais: ao separar demandas por equidade econômica de pautas culturais, criam
rivalidades entre vítimas do mesmo sistema – como trabalhadores brancos pobres
e minorias racializadas –, desviando a atenção da verdadeira raiz da opressão.
Quando
as vítimas desses modelos neoliberais passam a se reconhecer antes como
“protetoras” de valores tradicionais do que como exploradas pelo sistema,
abre-se uma cisão entre movimentos populares e seu próprio interesse material.
Essa dinâmica fragmenta lutas sociais, convertendo o ressentimento em ódio
contra bodes expiatórios (imigrantes, minorias, elites cosmopolitas, etc.) em
vez do sistema econômico.
O
resultado, como aponta Wendy Brown, é uma política do ressentimento nascida das
“ruínas do neoliberalismo”: diante do fracasso do projeto neoliberal em
garantir bem-estar, a extrema-direita oferece um passado mítico de ordem e
segurança, que nada mais é que um simulacro de pertencimento que mascara a
espoliação em curso.
Um
exemplo concreto dessa dinâmica pode ser observado no Brasil recente. No país,
essa sedução operou pela combinação entre o autoritarismo moral de Jair
Bolsonaro e uma agenda econômica ultraliberal, demonstrando como a metáfora da
sedução da espoliação é uma maneira de decifrar as alianças perversas do
capitalismo contemporâneo.
Ao
buscar debater aqui sobre as formas gerais do processo social da adesão popular
aos ideários neoliberais e da extrema-direita, não poderia deixar de mencionar
o papel desempenhado pelas chamadas Big Techs no século XXI. Talvez aqui seja
interessante recorrer mais uma vez a Theodor Adorno, que junto com Max
Horkheimer, cunharam o conceito de “indústria cultural”, onde alertavam como a
cultura, sob o capitalismo avançado, transforma-se em instrumento de dominação
ideológica. Banalizando a violência política, auxiliando na normalização da
lógica mercantil e apresentando o capitalismo como força natural e inevitável,
para Theodor Adorno e Max Horkheimer, essa máquina não apenas distrai, mas
modela subjetividades.
Herdeiras
da indústria cultural, as Big Techs não são apenas empresas, mas agentes que
transformam dados e atenção em capital, enquanto moldam subjetividades. Elas
aprimoraram a sedução simbólica ao colonizar a subjetividade: filtros bolha,
microtargeting e agora Inteligências artificiais criam realidades paralelas que
naturalizam a barbárie neoliberal, fazendo com que vítimas da espoliação
defendam, como “liberdade”, a própria lógica que as destrói.
Ao
monetizar o ressentimento e a polarização, plataformas como as da Meta ou do
Google, convertem a sedução simbólica em um modelo de negócios. Algoritmos
promovem conteúdos extremistas que mantêm usuários cativos, transformando o
caos social em capital para acionistas – um processo onde a espoliação digital
e a alienação ideológica reforçam-se mutuamente.
As Big
Techs operam como arquitetas da sedução simbólica: ao transformar identidades e
conflitos sociais em dados rentáveis, elas alimentam algoritmos que amplificam
narrativas tóxicas (como o ódio a minorias ou o negacionismo), fragmentam a
consciência coletiva e convertem o descontentamento popular em engajamento
lucrativo; tudo enquanto ocultam sua própria espoliação via vigilância digital
e precarização do trabalho. Em outras palavras, as redes sociais de massa não
são apenas o “meio” onde discursos neofacistas ganham ressonância, elas são, em
si, ferramentas políticas.
A
regulação democrática das Big Techs revela-se, assim, uma trincheira decisiva
contra o avanço do neofascismo e da espoliação neoliberal. Sem controle público
sobre algoritmos que monetizam o ódio e fragmentam o tecido social –
convertendo demandas por justiça em verdadeiras commodities digitais –, a
sedução simbólica seguirá operando como máquina de dominação em escala
industrial. Regular as Big Techs é desarmar esta engrenagem e iniciar uma
recuperação democrática do discurso público em novas bases, passo fundamental,
mas não o único.
Como se
buscou demonstrar, a adesão popular a projetos que a destroem não é irracional:
é fruto de uma guerra ideológica que instrumentaliza traumas, medos e
esperanças. Reverter essa adesão exige mais que denúncias: é preciso construir
contranarrativas que reconectem as diferentes lutas, sejam elas identitárias ou
econômicas, e que seja capaz, como sugere Nancy Fraser, de desvelar as “moradas
escondidas” do capital.
Indispensável
para isto é avançarmos a organização popular, de uma forma que seja capaz de
traduzir indignação em projeto coletivo e, principalmente, anticapitalista.
Fonte:
Por Erick Kayser, em A Terra é Redonda

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