Cruzeiro
do Sul passou de guia indígena a símbolo nacional
Estampado
na bandeira, no brasão e no hino nacional, o Cruzeiro do Sul brilha na formação
histórica de uma identidade nacional e política brasileira que remonta a
tradições milenares dos povos originários do Hemisfério Sul.
É
conhecido por ter guiado os navegadores europeus durante suas expedições em
direção ao Hemisfério Sul a partir do século 15 – mas, ao contrário do que
pensavam os colonizadores, já era registrado por diversas cosmologias indígenas
do Sul Global antes da chegada dos europeus.
O
pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) André Miloni
explica que o Cruzeiro do Sul desempenha um papel essencial na localização
geográfica. "Para a gente, que mora no Hemisfério Sul, ele nos ajuda a
encontrar um ponto imaginário na esfera celeste e localizar o polo celeste
sul", informa.
Historicamente,
as aglomerações de estrelas representam histórias e lendas dos povos, sobretudo
para fins de marcação do tempo e divisão do ano em estações, já que cada uma é
observada em determinado período. O Cruzeiro do Sul, por exemplo, é observável no
outono e no inverno do Brasil. "É uma constelação muito brilhante e fácil
de ser identificada no céu", destaca.
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Menor constelação moderna é símbolo político no Sul Global
O
Cruzeiro do Sul é composto por cinco estrelas: quatro que formam o eixo de uma
cruz – de onde deriva seu nome –, e uma quinta que foi apelidada de
"intrometida". É considerado, ainda, a menor das 88 constelações
catalogadas em 1922 pela União Astronômica Internacional.
Outros
países também refletem a significação histórica do Cruzeiro do Sul em seus
símbolos políticos. Ele estampa as bandeiras da Austrália, Nova Zelândia,
Papua-Nova Guiné e Samoa. A bandeira do Mercosul também o ostenta, celebrando a
integração do bloco econômico. Nesse símbolo, ele é mostrado apenas com quatro
estrelas – sem a "intrometida" –, representando os quatro países
fundadores: Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina.
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A primeira constelação "cristã"
No céu
formoso e límpido, a imagem do Cruzeiro, como diz o hino nacional,
"resplandeceu" – e foi interpretada pelos portugueses e espanhóis a
caminho do Hemisfério Sul como confirmação celeste do sucesso da empreitada,
segundo o pesquisador do Observatório Nacional Vladimir Jearim Peña Suárez.
"O
achado da constelação, para os portugueses, foi como uma bênção divina, e eles
imediatamente associaram com a cosmovisão cristã que traziam", pontua.
"Para outros povos, o Cruzeiro também representava aspectos relevantes,
até porque sempre se desenvolveu um vínculo místico e filosófico com o
céu", complementa Suárez.
O
primeiro registro da observação europeia do Cruzeiro do Sul data de 1500, em
carta enviada ao rei de Portugal, D. Manuel 1º, por João Faras, que integrava a
expedição de Pedro Álvares Cabral. Na missiva, o médico, físico e astrônomo
espanhol conhecido como Mestre João descreve a constelação que, mais tarde, foi
batizada de Crux (cruz, em latim).
Em Os
Lusíadas, obra de Luís de Camões, a descoberta das novas estrelas também é
registrada: "Já descoberto tínhamos diante / Lá no novo Hemisfério, nova
estrela, / Não vista de outra gente, que, ignorante, / Alguns tempos esteve
incerta dela."
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Âncora, ponte celeste, gambá sentado e ema
Para os
europeus, os povos que viviam no Brasil não tinham notado as estrelas que
formam o Cruzeiro do Sul – interpretação equivocada, segundo pesquisadores, uma
vez que a cosmovisão indígena já a registrava.
"Povos
na Austrália e na Nova Zelândia também observaram o Cruzeiro do Sul e os
definiram como imagens associadas a seu cotidiano", define Suárez. Os
aborígenes australianos viam um gambá sentado, representando o deus celeste
Mirrabooka. Para os Incas, a constelação se chamava Chakana, ou ponte celeste.
Os maoris da Nova Zelândia a denominavam de Te Punga e a interpretavam como uma
âncora que mantinha a Via Láctea na sua posição.
Na
cosmologia indígena brasileira, há interpretações em que o Cruzeiro do Sul
integra outra constelação e revela a imagem de uma ema.
Para os
europeus cristãos, a associação com o cristianismo acabou sendo oportuna, pois
as demais constelações faziam referência a mitologias mais antigas. "Então
ela foi, por assim dizer, a primeira constelação cristã", pontua Suárez.
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O significado da quinta estrela para indígenas guarani
Na
cosmovisão indígena guarani, a quinta estrela do Cruzeiro do Sul não é uma
"intrometida", mas representa Yamandu, a divindade máxima da
espiritualidade do povo. De acordo com essa leitura, é Yamandu quem segura e
aglutina os outros quatro pontos, que representam atributos com os quais se
deveria guiar a vida: fortitude, prudência, temperança e sabedoria. Cada
estrela que compõe o Cruzeiro do Sul é, portanto, uma manifestação divina.
Vanessa
Brandalise é descendente de guaranis e trabalha no resgate da cultura de seu
povo, oferecendo visitas guiadas e aulas em seu sítio, localizado em Quatro
Barras, no Paraná. "Toda a mitologia guarani está organizada por meio
dessa constelação. É dessas estrelas que os espíritos migram para estarem aqui
na Terra, fazendo a conexão do divino com a natureza por meio da
agricultura", explica Vanessa.
Segundo
ela, em contrapartida, para os charruas que habitam a parte mais ao sul do
Hemisfério, na região do Uruguai, do pampa gaúcho e de parte da Argentina, o
Cruzeiro do Sul é a pata de uma ema. Ou seja, integra uma constelação maior que
desvela um animal sagrado para os nativos da região. Atualmente, os charruas
estão praticamente extintos.
"Eles
viam a pata do ñandú (ema), um animal que vive naquela região. Se você for ver,
o Cruzeiro do Sul tem o formato da pisada desse animal", explica Vanessa.
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Resgate do olhar para o céu
Se
antigamente os europeus miravam o céu e utilizavam o Cruzeiro do Sul como
bússola e confirmação divina, e os indígenas ainda hoje o utilizam como
calendário e referencial de origem, a poluição luminosa (uso excessivo e
mal-direcionado de luzes artificiais em centros urbanos) tende a reduzir a
relação das pessoas com o céu.
Para
Suárez, a observação celeste deveria ser entendida como direito. "Parece
uma reivindicação um pouco oca, mas não é. À medida que as cidades têm crescido
e que a noite foi derrotada pela luz elétrica, se perdeu a percepção do céu e a
relação com o céu", defende.
Ele
também trabalha com educação e com visitas guiadas a escolas em museus e afirma
que, hoje, as crianças não conseguem observar as estrelas porque o céu não está
"limpo". "Os nossos avós, tanto os brasileiros quanto os de
outras latitudes, tinham uma relação muito mais direta com a observação do
céu", complementa.
Vanessa
afirma que olhar para o céu é resgatar uma visão poética sobre a vida –
reforçada pela constelação do Cruzeiro do Sul. "Sempre digo que a gente
precisa olhar para o céu. Em todas as cosmovisões, estamos olhando para baixo,
para o cotidiano imediato", constata.
Fonte:
DW Brasil

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