A
economia da ditadura militar no Brasil
Mais
do que uma análise econômica, o livro de Wilson do Nascimento
Barbosa é um ato de desinfecção de uma ferida histórica mal cicatrizada,
rasgando a névoa do esquecimento para expor as estruturas de poder que moldaram
um Brasil cujas sequelas ainda carregamos...
A obra
em questão insere-se no vasto e consistente percurso intelectual de Wilson do
Nascimento Barbosa, cuja trajetória, por si só, confere densidade e
legitimidade ao debate que propõe. Historiador, economista e estatístico,
Wilson do Nascimento Barbosa alia a erudição acadêmica à experiência histórica
vivida, sendo reconhecido também como combatente em duas guerras de libertação
popular, o que o coloca em uma posição singular para analisar criticamente os
vínculos entre economia, política e sociedade.
Nesse
sentido, não se trata apenas de mais um livro em sua já significativa produção,
mas de um trabalho que condensa maturidade intelectual, rigor metodológico e
compromisso pedagógico com a memória histórica. Pela contundência da análise e
pela forma como enfrenta temas ainda cercados de silêncio e distorções, pode-se
afirmar que este talvez seja seu livro mais impactante até o momento, embora
seja plausível esperar que novos projetos mantenham ou até ultrapassem esse
nível de profundidade e ousadia crítica.
A
economia da ditadura militar no Brasil (1964-1990) se apresenta
como uma provocação direta a um impasse histórico que a sociedade brasileira
insiste em contornar desde a Constituição de 1988. Estamos diante de uma
encruzilhada: seguir em frente fingindo que nada aconteceu ou olhar em volta e
para trás, reconhecendo o que se passou sob o regime militar. É precisamente
nessa encruzilhada que Wilson do Nascimento Barbosa nos encontra e, ao
contrário da lógica da conciliação que dominou a transição, nos convida a
enfrentar a memória incômoda.
Ao
estender o marco temporal até 1990, incorporando o governo de José Sarney –
fruto da eleição indireta de Tancredo Neves – o autor sublinha que não se trata
apenas de ajustar datas, mas de reconhecer a continuidade de um crime histórico
que não se encerrou com a abertura política. Em nome da promessa de democracia,
criminosos e vítimas foram colocados no mesmo plano, sob a retórica do
esquecimento necessário.
Nesse
ponto, Wilson Barbosa age como quem retira um curativo mal colocado sobre uma
ferida profunda: expõe a chaga ainda infeccionada, mostra sua gravidade e nos
convoca, como sociedade, a examiná-la e desinfetá-la, em vez de escondê-la sob
bandagens ilusórias. Sua análise não admite neutralidade: a vergonha recai
sobre cúmplices e coniventes, a honra cabe aos que resistiram, e aqueles que,
em nome de uma pretensa “imparcialidade”, equiparam opressores e oprimidos,
acabam inevitavelmente se alinhando ao lado errado da história.
Um
aspecto de destaque é o próprio título da obra e, sobretudo, seu
subtítulo: A Economia da Ditadura Militar no Brasil: uma abordagem
pedagógica. A escolha não é meramente descritiva, mas orienta a leitura em
direção a um horizonte formativo. Ao optar pelo termo “pedagógica”, o autor
sinaliza que seu objetivo vai além da análise acadêmica ou da exposição crítica
dos fatos; trata-se de construir um instrumento de ensino, que permita aos
leitores compreenderem os nexos entre economia, política e sociedade durante o
regime militar.
Nesse
sentido, a pedagogia não se limita ao campo escolar, mas se projeta como
prática de memória coletiva, capaz de iluminar as permanências e rupturas
estruturais que o golpe de 1964 produziu no desenvolvimento brasileiro. Estudar
a economia da ditadura, portanto, adquire valor didático no sentido mais amplo:
formar uma consciência histórica crítica, capaz de identificar como as
políticas autoritárias moldaram desigualdades, redefiniram prioridades do
Estado e deixaram marcas institucionais que persistem até hoje.
Outra
estratégia que contribuiu para a invisibilização crítica da economia da
ditadura foi a criação de verdadeiras cortinas de fumaça em torno do próprio
regime. Uma delas consiste na proliferação de hífens qualificativos – “ditadura
civil-militar”, “empresarial-militar”, “midiática-militar” – que, embora
revelem traços das articulações sociais do regime, acabam por diluir o núcleo
central do poder, isto é, o predomínio político do aparelho repressivo, do
comando das Forças Armadas e de sua máquina de coerção.
A mesma
operação ocorre na divisão artificial em subperíodos de “abertura” ou
“endurecimento”, como se o regime tivesse deixado de ser ditadura em
determinados intervalos, quando na realidade se perpetuou como tal de 1964 a
1985. Abominações semânticas ainda mais graves surgiram em tempos recentes,
como a invenção do termo “ditabranda”, não por acaso publicada em um veículo de
imprensa que, no passado, deu suporte material e ideológico à repressão. Todas
essas tentativas de relativização cumprem o objetivo de lançar névoa sobre um
passado incômodo, que não interessa a certos setores deslindar.
O
mérito de Wilson do Nascimento Barbosa, nesse contexto, é precisamente o de
rasgar essa névoa, trazendo luz e definição às formas, ao insistir na
materialidade dos processos econômicos e na centralidade da dominação política
durante a ditadura.
O
livro, assim, nos tira da indiferença e da apatia, resultantes dessa
insuficiência de massa crítica qualificada sobre o tema. Ele oferece uma
leitura que desafia quem minimiza ou tenta apagar os problemas do período
militar, e suas sequelas. Em vez de adotar a retórica conciliatória ou a
pusilanimidade que muitas vezes prevalece na oficialidade e na mídia cúmplice
do golpe – seja daquele ou de outros mais recentes – a obra exige que
enfrentemos os impactos do regime. Ao contrário da “imparcialidade” que coloca
em um mesmo nível opressores e oprimidos, o livro estimula uma reflexão sobre
as relações de poder, violência e resistência que marcaram não só o golpe de
1964, mas também os anos seguintes, quando as estruturas de dominação
continuaram.
O autor
destaca que a luta pela democracia no Brasil está ligada às tensões econômicas
e sociais do período, cujos efeitos ainda são sentidos hoje. A obra não é
apenas um relato ou análise histórica, mas um convite a reconsiderar a nossa
trajetória como país, com foco nos que resistiram e naqueles que se acomodaram
durante o regime.
Em
sentido estrito, a obra é uma aula aplicada de metodologia em história
econômica. O autor mobiliza, de modo extensivo e intensivo, praticamente todo
tipo de fonte ao alcance do historiador econômico. A esse quadro soma-se o uso
de uma variedade de exercícios quantitativos, próprios da chamada econometria
histórica, isto é, da aplicação de métodos estatísticos e modelos quantitativos
ao estudo de fenômenos econômicos do passado.
Diferentemente
das abordagens que privilegiam apenas os gabinetes fechados e as decisões
oficiais, Wilson do Nascimento Barbosa utiliza esses instrumentos para revelar
problemas e contradições a partir da perspectiva do interesse popular,
mostrando como políticas macroeconômicas afetaram diretamente o cotidiano da
população. O mérito reside em sua capacidade de extrair das fontes mais
reticentes – desde relatórios governamentais até notícias de jornal –
informações essenciais que, embora inicialmente desconcertantes, despertam a
curiosidade crítica do leitor.
Ao
submeter todo material ao escrutínio máximo de sua finalidade, o professor
Wilson do Nascimento Barbosa reafirma sua faceta de historiador econômico de
rara riqueza e originalidade, contribuindo para uma historiografia que não se
limita a repetir narrativas consagradas, mas busca iluminar dimensões
esquecidas ou obscurecidas pela retórica oficial.
Como o
uso é abundante, vamos citar alguns exemplos, sem o risco de atenuar o impacto
aos leitores. A partir dos dados do IBGE, CEPAL e ONU, são construídas
preciosidades como: um modelo empírico de crescimento da renda nacional (p.
48-51), um cálculo da tendência exponencial da dívida externa (p. 99-105), uma
curva da remuneração dos empregados (conceituada como o montante de salários e
vencimentos pagos, páginas 189 e 190), taxas de crescimento comparadas entre o
mundo e a América Latina (p. 191), e um gráfico da evolução do produto interno
a custo de fatores entre 1970 e 1990, mostrando os dois afundamentos de nosso
desenvolvimento promovidos nos anos 1980 e 1990, o que transforma o conceito de
“décadas perdidas” em um eufemismo para o que teria, com um pouco mais de
sinceridade, tipificação no Código Penal.
Quando
encontro um desses elementos em um texto de história econômica, sinto meu dia
ganho. Um quentinho no coração. Pois o livro de Wilson do Nascimento Barbosa
tem dezenas deles…
E
quando o leitor se dá por satisfeito com a riqueza metodológica dos
instrumentos de análise quantitativa, eis uma sólida análise do período sob a
perspectiva materialista histórica das lutas de classe, fundamentada nas
relações sociais produtivas. Não se trata de exercícios vazios, estéreis de
propósito: eles caminham para a formação de uma consciência crítica baseada no
conhecimento histórico. Wilson Barbosa usa a história econômica para denunciar
não apenas a exploração de uma classe sobre outra, em um modo de produção. Ele
também denuncia o racismo entranhado em nossa formação histórica, e a amálgama
dessas duas substâncias que nos cabe cauterizar em nosso âmago como tarefa
civilizacional.
Esses
recursos metodológicos denunciam, também, outra encarnação de Wilson do
Nascimento Barbosa: a de docente do Departamento de História da FFLCH-USP,
onde, por mais de três décadas, consolidou-se como uma das maiores referências
do Programa de Pós-Graduação em História Econômica, um dos primeiros criados no
país. Sua atuação como professor não se limitou à transmissão de conteúdos, mas
constituiu um verdadeiro espaço de formação intelectual e política, marcado
pela exigência crítica, pelo rigor metodológico e pela abertura ao diálogo
interdisciplinar.
Entre
gerações de estudantes, Wilson do Nascimento Barbosa permanece como lembrança
viva de uma prática pedagógica que unia erudição acadêmica e compromisso
social, orientando trabalhos que ajudaram a dar densidade e legitimidade à
historiografia econômica brasileira. Não é à toa que ele é celebrado por seus
alunos sempre que abre um flanco, como este livro.
O livro
também nos revela, de múltiplas maneiras, como a análise do contexto das
chamadas “décadas perdidas” de 1980 e 1990 é imprescindível para compreendermos
não apenas o Brasil do terceiro quartil do século XX, mas igualmente o Brasil
contemporâneo. A obra evidencia a urgência de enfrentarmos o passivo histórico
acumulado, cujo ponto de ruptura decisivo foi o golpe militar de 1964.
A raiz
desse golpe, o conflito distributivo secular que atravessa a formação econômica
e social brasileira, permanece viva e atuante, condicionando nossos limites e
nossas contradições. Sem encarar de frente esse problema estrutural, o
subdesenvolvimento seguirá sendo um fardo difícil de carregar. Não há atalhos,
eis a lição fundamental transmitida por A Economia da Ditadura Militar
no Brasil, uma história econômica do país recente que alcança a atualidade
com potência crítica. Quem tiver a pretensão de compreender o Brasil de hoje
precisa, inevitavelmente, passar por esse livro.
A
leitura da obra também dialoga diretamente com os limites e contradições
revelados pela Comissão Nacional da Verdade (2011–2014). Embora tenha cumprido
um papel fundamental ao sistematizar informações, documentar violações e
oferecer um retrato contundente da violência estatal, a Comissão deixou em
aberto a dimensão econômica do regime militar, isto é, a rede de interesses
empresariais, financeiros e políticos que sustentaram a ditadura. Ao não
avançar suficientemente sobre esses aspectos, preservou-se, em grande medida, o
silêncio em torno das estruturas de poder que se beneficiaram do autoritarismo.
É nesse
ponto que o trabalho de Wilson do Nascimento Barbosa se destaca: ao expor a
economia política da repressão e mostrar como o modelo de desenvolvimento
imposto perpetuou desigualdades, sua análise complementa e aprofunda o que a
Comissão deixou de evidenciar. Mais do que nunca, torna-se necessário que o
Estado brasileiro retome os trabalhos da Comissão, reabra seus caminhos e,
sobretudo, transforme suas deliberações em políticas públicas concretas – de
reparação, de memória e de responsabilização – capazes de enfrentar a herança
autoritária e de consolidar uma democracia fundada na verdade histórica e na
justiça social.
Nessa
trajetória interpretativa, o professor Wilson do Nascimento Barbosa transmite a
integralidade de sua leitura da história, convocando as gerações posteriores –
algumas delas suas próprias alunas – a engrossar o coro da necessidade de
curarmos a ferida ainda aberta de nossa trajetória como sociedade. Sua obra se
coloca como convite e desafio: não basta contemplar o passado, é preciso
revisitar suas marcas, enfrentá-las e elaborar, coletivamente, uma resposta que
rompa com a lógica de esquecimento que ainda predomina.
Estamos
diante do melhor livro do professor Wilson até o momento. Mas esse
reconhecimento não o isenta de continuar escrevendo: pelo contrário, reforça a
expectativa de que prossiga, pois sua produção segue sendo necessária para
iluminar os caminhos da historiografia econômica crítica. Esperamos os
próximos, certos de que ainda há muito a receber de sua pena e de seu
magistério.
Fonte:
Por Luiz Eduardo Simões de Souza, em a Terra é Redonda

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