Como
o Legislativo capturou o Orçamento, no Brasil
O
fortalecimento do Legislativo diante dos outros dois Poderes nos últimos anos,
e a captura do Orçamento Público que ele promove, quase nunca são tratados da
forma como merecem. Em geral, são banalizados como se fossem apenas uma
expressão do jogo de poder político. Ou então, como mais um dado da paisagem de
Brasília, em que personagens se sucedem num enredo no qual se discute se o
governo perdeu ou não, ou se os parlamentares estão “insatisfeitos” com
determinada medida do Judiciário. O quadro é bem mais grave do que sugerem os
comentaristas da mídia corporativa e traçar o caminho que nos trouxe até aqui é
essencial para compreender o grau de deformação do nosso sistema político.
Por
isso, é tão importante o relatório “As emendas parlamentares no Brasil e no
Mundo”, elaborado pelo Laboratório de eleições, Partidos e Política Comparada
(Lappcom) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A partir de vasta
pesquisa, o estudo recupera a trajetória do principal instrumento que tornou o
Congresso Nacional capaz de renegar o diálogo com o Executivo para avançar em
suas prerrogativas orçamentárias.
“Mais
do que simples instrumentos de alocação de recursos, as emendas se tornaram
expressão de um conflito federativo: de um lado, o Executivo busca preservar
sua capacidade de conduzir a política econômica e coordenar prioridades
nacionais; de outro, o Legislativo amplia sua autonomia e fragmenta o orçamento
em múltiplos interesses locais”, destaca a coordenadora do Lappcom, Mayra
Goulart.
Ela
pontua ainda que não se trata de um simples embate entre Executivo e
Legislativo, mas algo que reconfigura o arranjo institucional concebido pela
Constituição de 1988. Seu sentido é de uma “uma ameaça republicana”, já que
“corrói a lógica universalista de provisão de direitos e aprofunda um
afastamento entre representantes e representados”, aponta Mayra. “O resultado é
um fechamento do Congresso em torno de suas próprias lógicas de
autopreservação, desconectando-se das preferências populares.”
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O ocaso de um modelo
Desde a
redemocratização, o modelo de presidencialismo de coalizão no Brasil funcionou
basicamente de dois modos na relação Executivo-Legislativo. O governo tentava
garantir um apoio parlamentar mais fiel e perene, negociando com os partidos
cargos nos ministérios e em outros escalões do aparelho estatal. Em votações
mais problemáticas, nas quais era necessário um esforço maior para obter a
maioria, também eram acionadas negociações pontuais de forma individual com
parlamentares, mesmo aqueles que não faziam parte da base governista. Neste
caso, a moeda de troca era o destravamento de emendas e a liberação de
recursos.
Este
cenário começa a mudar em 2015. A Emenda Constitucional 86 tornou
impositivas as emendas individuais dos parlamentares, garantindo a elas ainda
uma reserva de 1,2% da Receita Corrente Líquida (RCL) da União. Estas emendas
também passaram a ter uma espécie de salvaguarda em relação ao
contingenciamento de recursos, um artifício usado pelo Executivo para
restringir a execução do Orçamento. Elas somente podem ser contingenciadas de
forma proporcional às despesas discricionárias.
Assim,
mesmo o chamado “baixo clero”, aquela parcela do Congresso Nacional apartada
das lideranças políticas da Casa e das direções dos partidos, passou a ter em
mãos um instrumento poderoso de articulação política local, aumentando ainda
seu poder de barganha com o Executivo. À época, um deputado que fazia parte do
segmento celebrou a decisão.
Em
entrevista à jornalista Mariana Godoy, na RedeTV!, o então deputado federal
fluminense do PP, Jair Bolsonaro, afirmava que, com a mudança promovida pela
Emenda Constitucional 86, o governo não poderia mais “chantagear” o
Legislativo. “O que um parlamentar tem para negociar em Brasília? É seu voto.
Esse Congresso melhorou muito em relação ao do passado, em especial, graças ao
atual presidente, Eduardo Cunha, que aprovou uma PEC, proposta de emenda à
Constituição, que trata do Orçamento impositivo”, disse. Questionado sobre o
governo ficar refém do Congresso Nacional, Bolsonaro respondeu: “Não fica
refém. O governo não está refém, o governo tem de respeitar. Somos três Poderes
aqui”.
As
declarações do parlamentar foram resgatadas por deputados em fevereiro de 2020 quando ele,
agora na condição de presidente da República, resistia em negociar com o
Legislativo um pacto que permitia ao Congresso indicar a prioridade de execução
de todos os R$ 16 bilhões de emendas parlamentares e de R$ 15 bilhões dos R$ 30
bilhões aprovados no Orçamento como emendas de relator. Mais adiante, Bolsonaro
cederia bem mais do que isso.
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A evolução das emendas
O
confronto entre o deputado Bolsonaro e o presidente Bolsonaro evidencia como
alterações casuísticas, tomadas diante de certa indiferença da sociedade em
função de disputas políticas de momento, podem resultar em grandes distorções e
conflitos no âmbito institucional.
A
transformação iniciada em 2015 foi aprofundada em 2019, quando a Emenda Constitucional nº 100 determinou a
execução obrigatória das emendas das bancadas estaduais no Congresso,
conferindo maior poder coletivo a elas e ampliando o alcance da influência
direta dos parlamentares no destino dos recursos. No mesmo ano, surgiu um novo
instrumento, a “transferência especial”, instituída pela Emenda Constitucional nº 105, conhecida mais
tarde como “emenda Pix” (RP 7). Essa modalidade permitiu repasses diretos da
União a estados e municípios sem nenhuma necessidade de convênios ou planos de
trabalho, sob o argumento de agilizar a execução e reduzir a burocracia.
A
opacidade era tal que a medida que acabou provocando, mais tarde, um debate
sobre transparência e controle, culminando na suspensão temporária pelo STF, em
2024 e, posteriormente, na imposição de regras mais rígidas por meio da Lei Complementar nº 210/2024.
Em seu
conjunto, estas medidas produziram um aumento exponencial do volume de recursos
públicos controlado de forma fragmentada pelos parlamentares — e subtraído,
portanto do planejamento da União. relatório do Lappi-UFRJ descreve que, entre
2014 e 2016, no governo Dilma, o total empenhado em emendas foi de R$ 21,79
bilhões, enquanto no governo Temer, o valor saltou para R$ 37,35 bilhões. Já na
gestão Bolsonaro, o montante atingiu R$ 108,36 bilhões, consolidando as emendas
como peça central da política orçamentária. Posteriormente, no governo Lula 3,
até 2024, o volume chegou a R$ 80,19 bilhões, com autorização de mais R$ 50
bilhões para 2025.
Essa
curva de crescimento não se deu da mesma forma entre os diferentes tipos de
emenda. As individuais, por exemplo, tiveram aumentos sucessivos até dobrarem
de peso entre Bolsonaro e Lula, enquanto as de bancada avançaram em ritmo
acelerado a partir de 2016. As de comissão, por muito tempo coadjuvantes na
definição do orçamento já que não são impositivas, tiveram uma explosão, com um
crescimento de um crescimento de 2967,24% entre as gestões Bolsonaro e Lula.
O auge
de todo esse processo foi o uso, entre 2020 e 2022, das chamadas emendas de
relator (RP 9), núcleo do “orçamento secreto”, com poder discricionário de
distribuição de verbas. Nesse último ano, elas foram declaradas
inconstitucionais pelo STF, por falta de transparência e critérios específicos.
Na
prática, o que antes era um recurso acessório e importante em termos de
complementariedade de políticas públicas tornou-se um canal gigantesco de
drenagem orçamentária. O Legislativo conquistou poder sem precedentes sobre os
cofres públicos, em um movimento que reforça sua centralidade e impõe dilemas
como a ausência de transparência, a emergência de um novo tipo de clientelismo
e, sobretudo, a redefinição a governabilidade.
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O orçamento brasileiro diante das experiências internacionais
Com o
nítido cenário de crise permanente, resultante deste empoderamento do
Legislativo, fica a questão: o Brasil, mais uma vez, adotou um modelo que
poderia ser apelidado no jargão político como “jabuticaba”, por só existir
aqui? Nesse aspecto, o relatório traz uma análise comparativa para situar o
sistema brasileiro modificado a partir de 2015 em relação a outras experiências
internacionais.
O
estudo destaca que o constitucionalista britânico Philip Norton distinguiu três
tipos de Legislativos: os que efetivamente fazem políticas (policy-making),
os que apenas influenciam (policy-influencing) e os que pouco ou nada
decidem, limitando-se a ratificar a vontade do Executivo. Em 2021, o cientista
político alemão especialista em orçamento público Joachim Wehner aplicou essa
tipologia ao campo orçamentário, mostrando que alguns parlamentos elaboram e
substituem orçamentos inteiros, outros apenas os emendam, enquanto muitos
simplesmente se limitam a carimbar as decisões do Executivo.
No
Reino Unido, por exemplo, mesmo após a Revolução Gloriosa de 1688 o Parlamento
nunca assumiu o papel de formulador de políticas públicas. A ascensão dos
partidos no século XIX consolidou a primazia do Executivo, transformando o
Legislativo num espaço mais de controle e ritual do que de criação. “O modelo
inglês, conhecido como modelo de Westminster, enfatiza a supervisão ex
post, mas com influência limitada na fase de aprovação e uma quase
incapacidade de, na prática, usar poderes de emenda — pois isso seria
equiparado a um voto de desconfiança em relação ao governo”, pontuam os
pesquisadores.
Essa
mesma lógica se reproduz em boa parte do continente europeu, onde a capacidade
de intervenção parlamentar sobre os orçamentos é limitada, quase sempre
subordinada ao equilíbrio macroeconômico e às prioridades do governo. Na
França, o artigo 49.3 da Constituição permite que o Executivo imponha
orçamentos sem votação, sob risco apenas de censura parlamentar. Graças a este
instrumento, François Bayrou, então o quarto primeiro-ministro do atual mandato
do presidente Emmanuel Macron, impôs, em fevereiro, o orçamento para 2025.
Mesmo em países com maior abertura, como Portugal ou Bélgica, o peso das
emendas é residual, e sua execução depende da correlação política de forças.
Já na
África, conforme a pesquisa, observa-se uma diversidade maior. O Quênia, por
exemplo, fortaleceu seu Legislativo após a Constituição de 2010. O ciclo
orçamentário é iniciado com a formulação do orçamento pelo Executivo, que
estabelece uma proposta formal, o Budget Policy Statement (BPS). O Parlamento,
por meio de seu Comitê de Orçamento e Assuntos Fiscais, analisa o texto e pode
propor emendas, com alocações dentro de certos limites legais. Além disso há
audiências públicas para coletar contribuições da sociedade civil. Ainda assim,
a execução do orçamento aprovado fica a cargo do Executivo, que está sujeito à
fiscalização parlamentar.
Zâmbia
e Gana criaram fundos de desenvolvimento distrital, que territorializam
recursos públicos, o que também acabou gerando tensões locais. Os ganeses
contam com o Fundo Comum das Assembleias Distritais [District Assemblies Common
Fund (DACF)], que destina um mínimo de 5% das receitas nacionais para
transferências diretas aos distritos. Mas a destinação é feita por um
administrador nomeado pelo presidente da República, com aprovação do
Parlamento. “O mecanismo oficial de alocação de recursos destoa do Brasil pois
não há controle direto das emendas por parte dos parlamentares, visto que o
dinheiro vai diretamente para os distritos, ao invés de ser alocado pelos
deputados. Este modelo, assim como o de Zâmbia, é interessante na medida em que
a territorialização e descentralização orçamentária não é determinada
diretamente por lógicas personalistas e eleitorais”, aponta o estudo.
Na
América Latina, o que vale como regra geral também é a centralização no
Executivo, com algumas variações importantes conforme o país. No México e no
Chile, os parlamentos podem emendar orçamentos, mas a execução segue sob
controle quase exclusivo do governo. O Executivo chileno tem a prerrogativa de
apresentar a proposta orçamentária, e o Congresso pode revisá-la, mas as
emendas legislativas estão sujeitas a uma análise técnica rigorosa e, caso
afetem o montante global do gasto, alterem a estrutura de financiamento ou
infrinjam a política fiscal, podem ser rejeitadas pelo governo.
Argentina
e Colômbia mantêm mecanismos de revisão — entretanto, com forte limitação
técnica e legal. O Uruguai destaca-se pela transparência, com um sistema
político unitário baseado no planejamento de um orçamento plurianual de cinco
anos, respaldado pela atuação do Tribunal de Contas e pela participação cidadã
por meio de portal aberto de orçamento. O controle é essencialmente técnico e
posterior, sem atuação política durante o processo, aproximando o modelo
uruguaio do chileno quando se fala do poder do governo.
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Disfuncionalidade e democracia
A
análise comparativa mostra a singular realidade brasileira após 2015. Se por um
lado territorializa mais os recursos, o que em certo sentido poderia ser visto
como um fator positivo ao enxergar de uma outra forma a realidade local, por
outro fragmenta a execução de políticas públicas, reforça a lógica distributiva
e clientelista e impõe novos desafios à coordenação das políticas públicas.
“O
Brasil, portanto, é um caso-limite, um ponto extremo no qual o Legislativo
concentra poder orçamentário em escala inédita entre democracias, tensionando
os próprios fundamentos republicanos do regime”, concluem os pesquisadores.
Se o
modelo anterior era considerado problemático por muitos, em função de
concentrar muito poder nas mãos do Executivo, o que o substituiu torna o
sistema ainda mais errático, por distorcer a própria noção da atividade
política e parlamentar. Com um montante significativo de recursos em mãos,
deputados e senadores podem entregar obras e serviços localmente, em
articulações com prefeituras e organizações da sociedade civil reais ou
existentes apenas no papel, para assegurar suas próprias reeleições e também a
eleição de políticos aliados em seus territórios, em cargos distintos.
No
Parlamento, suas atuações tendem a se desvincular ainda mais da
responsabilização em temas nacionais, com um possível reforço de uma tendência
à espetacularização e exposição em mídias sociais que garante visibilidade para
alçar voos maiores, relegando questões próprias do debate nacional a um segundo
plano, já que o sucesso eleitoral estaria garantido por conta da execução de
emendas.
Mais do
que uma questão meramente política, as emendas e o poder hiperbólico do
Congresso Nacional remetem a que modelo de democracia queremos. E de que forma
o povo vai participar dele.
Fonte:
Por Glauco Faria, em Outras Palavras

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