Haverá
futuro para os camponeses?
Em
2007, as Nações Unidas divulgaram um relatório sobre a Situação da População
Mundial. O documento assinalava que a vida humana na Terra estava ultrapassando
silenciosamente a ultrapassar uma marca histórica. Em 2008, a proporção de
pessoas residentes no campo caía – pela primeira vez na história – para menos
de 50%. Hoje, apenas 42% da humanidade vivem no campo. Para muitos moradores
das cidades, a urbanização das sociedades é natural e inexorável. Extrapolando
a partir de tendências passadas, eles imaginam um futuro no qual a grande
maioria terá abandonado a terra, deixando-a bucólica, automatizada e vazia. No
processo, preveem – com certo alívio! – a extinção iminente de uma figura
antiga: o camponês.
Essa
palavra é evitada em conversas polidas; em muitos idiomas, é usada como um
termo de insulto ou desprezo. Os próprios camponeses são vistos como um
vestígio constrangedor, a antítese do “progresso”. Seja à ireita ou esquerda,
os pensadores ocidentais ensinaram que, para se tornarem modernas, as
sociedades precisam livrar-se de seus camponeses. Enquanto Adam Smith ansiava
pela substituição dos camponeses por proprietários de terras (pois então “a
terra… seria muito melhor aproveitada”), Karl Marx previu sua substituição pela
gestão socialista moderna. Tornou-se lugar-comum que a agricultura acabaria por
ser monopolizada por grandes capitais e maquinário, e que as cidades
absorveriam a maior parte da população humana. Mesmo na Europa em
industrialização, o processo não foi exatamente assim. Sim, o campo tradicional
foi largamente destruído entre os séculos XVIII e XX – mas o êxodo resultante
foi muito maior do que poderia ser absorvido pelas fábricas urbanas. Sessenta
milhões de europeus tiveram de escapar, em vez disso, para o Novo Mundo. Mas,
de qualquer forma, a Europa desempenha um papel único na história capitalista,
e seria tolo extrapolar a partir dela. Outras regiões seguiram outros caminhos.
Em grandes partes da África, América Latina e Ásia, a urbanização está
desacelerarando. A maioria daqueles que entrariam em fábricas já o fez. Aqueles
que valorizam a segurança da vida na aldeia, por sua vez, têm pouca apetência
por favelas urbanas, isolamento e hipercompetição. Por isso, enquanto a
humanidade se urbanizava a uma taxa de 1,06% ao ano entre 1950 e 1970, essa
taxa caiu agora para 0,74% e ficará em pouco mais de 0,6% até 2030. Como a
população mundial triplicou desde 1950, os números absolutos da população rural
são hoje maiores do que nunca. Pelos meus cálculos, até 2 bilhões de pessoas
vivem no campo na África, América Latina e Ásia, onde as pequenas propriedades
familiares dominam. Após 300 anos de “modernização”, os camponeses ainda
constituem cerca de um quarto da nossa espécie, superando amplamente os
trabalhadores de linha de montagem, mineiros, funcionários de escritório ou
taxistas.
A vida
ainda depende do campesinato. Todos nós somos afetados, portanto, pelo fato de
esta classe social se encontrar hoje numa crise aguda. Uma crise que raramente
recebe atenção adequada na discussão pública. Em raras ocasiões, o campo
consegue chegar à primeira página. Em setembro de 2020, protestos de grande
escala de agricultores eclodiram na Índia após a aprovação de novas leis que
davam às corporações um papel maior nos mercados agrícolas. Agricultores em
vários estados indianos – especialmente Punjab e Haryana, onde muitos dependiam
do Estado para comprar o seu trigo e arroz – realizaram manifestações e
bloquearam as autoestradas para Délhi. A capital é um centro mediático global;
naturalmente, houve uma cobertura generalizada. Essa cobertura é rara; os
protestos dos agricultores, no entanto, são endêmicos. Em novembro e dezembro
de 2020 – enquanto as estradas para Délhi estavam bloqueadas por tratores –
soldados no Peru disparavam contra agricultores que protestavam contra uma lei
que isentava o agronegócio de obrigações para com os trabalhadores. No
Uzbequistão, também em 2020, agricultores protestaram contra o sistema de
clusters, pelo qual a terra era forçosamente entregue a clusters corporativos,
geralmente geridos por indivíduos próximos da elite política. Nos últimos cinco
anos, protestos sérios de agricultores ocorreram na Argentina, Brasil,
Colômbia, Equador, Gana, Quénia, Indonésia, Nepal, Irã, Paquistão, Filipinas,
Uganda – e a lista continua. Por detrás dos protestos encontra-se uma vaga ainda
maior de descontentamento invisível. Nas minhas viagens por redutos camponeses
da América Latina, África e Ásia, encontrei por toda parte a fúria dos
agricultores em resposta aos ataques às suas terras e a políticas concebidas
para permitir que o agronegócio e os processadores industriais capturem cada
vez mais do seu rendimento. “Não adianta o governo oferecer alívio da pobreza
aos agricultores”, disse-me um organizador agrícola na Índia, “quando as suas
políticas os mantêm na escravidão. Primeiro é preciso libertar os braços e as
pernas dos agricultores.” Às vezes, a crise camponesa chega aos meios de
comunicação por outras razões. Os levantes da Primavera Árabe, no início da
década de 2010, acumularam força a partir dos protestos agrários no Oriente Médio
e Norte de África – mesmo que os agricultores tenham sido rapidamente
marginalizados depois. Muito do que é geralmente noticiado como “terrorismo”
também tem as suas raízes no colapso do campo. O Boko Haram e outros grupos
militantes que operam ao longo da margem sul do Saara recrutam suas forças
entre agricultores e pastores deslocados pela desertificação, alterações
climáticas e pelo fechamento de rotas nômades tradicionais. “Grupos
jihadistas”, escreve um perito, “perceberam que certas populações foram
obrigadas a enfrentar sozinhas os impactos devastadores das alterações
climáticas nos seus meios de subsistência tradicionais”, o que “criou terreno
fértil para o recrutamento.” A migração em massa é outro sintoma a crise. A
maioria dos refugiados rurais dirige-se à metrópole mais próxima, mas dezenas
de milhões são levados a cruzar as fronteiras internacionais. As caravanas de
migrantes que saem da Guatemala, El Salvador e Honduras em direção ao México e
aos Estados Unidos são largamente compostas por tais refugiados. Outras rotas
levam do Burkina Faso, Mali, Níger e Chade através do Norte de África, para a
Europa; e da África Oriental para a Ásia Ocidental. O suicídio é uma chaga. De
acordo com defensores dos agricultores que entrevistei, mais de 400 mil
agricultores indianos tiraram a própria vida. A maior concentração tem sido nas
regiões produtoras de algodão de Maharashtra. O algodão é um recurso global
crítico, cujo preço tem impacto político agudo. Uma malha sofisticada de leis e
mercados induz os produtores a vender continuamente abaixo do custo de produção
– e assim a entrar numa espiral de dívida da qual muitas vezes só encontram
saída mortal. Estes são alguns dos sintomas da crise do campesinato global na
era neoliberal. Não devemos ter dúvidas: é uma crise política. Por toda a
parte, os Estados estão quebrando seu contrato com os camponeses e voltando-se,
em vez disso, para alianças antiagrárias com corporações globais, figurões
locais, crime organizado e gangsterismo. Se não for freada, esta crise trará
consequências aterradoras; pode mesmo ameaçar a nossa sobrevivência como
espécie. É, talvez, a história mais importante do século XXI.
Durante
a maior parte da história, os camponeses forneciam o recurso económico básico:
sem eles, não havia Estado. Existia, portanto, um vínculo especial entre
camponeses e reis. Governantes bem-sucedidos – por exemplo, na China, Pérsia,
Índia, Egito, Arábia, Etiópia, África Ocidental, nos Andes – nutriam a economia
agrária ao lançar obras de irrigação, proteger as posses de terra dos
camponeses, garantir os preços dos cultivos, alimentar as populações quando as
colheitas falhavam e controlar comerciantes, intermediários e especuladores de
terras. Muitos desses sistemas foram destruídos pelo colonialismo europeu;
restaurá-los foi um objetivo principal dos governos pós-coloniais asiáticos e
africanos. Questões semelhantes assolaram a América Latina do século XX, onde
os movimentos democráticos agrários foram continuamente confrontados com
oligarquias latifundiárias e alianças anticomunistas. Nas décadas anteriores a
1980, alguns países em desenvolvimento testemunharam uma reforma agrária
radical e dramática. Os governos redistribuíram terras, garantiram que os
agricultores tivessem títulos firmes e protegeram-nos da necessidade de vender
estas posses em tempos de dificuldade. As sementes tornaram-se um recurso
nacional crítico; os Estados criaram bancos de sementes e centros de
investigação para preservar o património, desenvolver variedades de alto
rendimento e garantir o fornecimento de comida. Os Estados também formalizaram
os mercados agrícolas, estabeleceram preços mínimos e frequentemente
tornaram-se eles próprios compradores de última instância. Nos melhores casos –
por exemplo, na Coreia do Sul ou no México – tais estratégias melhoraram tanto
os padrões de vida quanto a produção agrícola.
Muitas
dessas reformas foram revertidas durante a reestruturação neoliberal das
décadas de 1980 e 90. Projetado por agências como o Banco Mundial, o Fundo
Monetário Internacional e a Organização Mundial do Comércio, este processo
forçou os Estados a reorganizarem-se em torno da competição pelo capital
global. Estabeleceram novas alianças, não apenas com essas agências, mas
crucialmente com o agronegócio global. Como resultado, um controle
significativo dos assuntos rurais foi entregue a bancos e corporações
internacionais. A crise camponesa atual origina-se aí. Isto não quer dizer que
os mercados globais estejam substituindo a agricultura camponesa por técnicas
mais “modernas”. É verdade que, em alguns grupos de cultivos, grandes
plantações substituíram as pequenas propriedades. A produção de trigo, por
exemplo, pode ser realizada em larga escala com pouca mão-de-obra humana,
usando mecanização e tipicamente altos insumos de combustíveis fósseis e
fertilizantes. Tais técnicas foram generalizadas do México e da Ucrânia ao
Cazaquistão e à Índia. As palmeirs produtoras de óleo também: em partes do
sudeste asiático, os pequenos agricultores foram despossuídos à força e depois
trazidos de volta como trabalhadores assalariados em plantações corporativas de
dendezeiros. E as galinhas: megazonas avícolas no sul da China – onde a
avicultura era anteriormente um domínio camponês – concentram agora perto de um
bilhão de galinhas em condições semelhantes às de fábrica.
Nem
toda a agricultura, no entanto, pode ser industrializada. O arroz, que é o
alimento básico para metade do planeta, é pouco adequado a grandes plantações;
requer intervenção humana intensiva e é melhor cultivado em pequenas
propriedades familiares. Apesar de décadas de influência corporativa, ainda é
produzido por cerca de 500 milhões de camponeses. O mesmo se aplica a outras
culturas essenciais. A produção de algodão foi mecanizada nos EUA e na Europa,
mas a qualidade sai prejudicada, razão pela qual a produção camponesa continua
a dominar; as pequenas propriedades familiares na Índia e na China contribuem,
de longe, com a maior proporção do fornecimento global. Os camponeses não só
têm habilidades essenciais, como também são, da perspetiva corporativa,
parceiros desejáveis – precisamente porque são pequenos, politicamente fracos e
fáceis de coagir. Em alguns setores, as corporações chegaram até a fazer a
descoberta lucrativa de que os camponeses – cujo primeiro compromisso é com a
terra – continuarão a cultivar com prejuízo. A reorganização neoliberal do
campo não erradicou, portanto, o campesinato. Em vez disso, os camponeses foram
legalmente reconstituídos de forma a maximizar a eficiência e o lucro. No
processo, os Estados que anteriormente estavam ao lado das suas populações
contra as multinacionais – vistas muitas vezes como uma influência neocolonial
– mudaram de lado, alinhando-se com o grande capital contra as suas massas
agrárias.
O
primeiro foco da reforma neoliberal no campo tem sido transformar o campesinato
global em consumidor do agronegócio. As sementes estiveram no centro deste
processo: sob a bandeira das proteções à propriedade intelectual, da
Organização Mundial do Comércio (OMC), fundações internacionais e agências de
financiamento persuadiram os países em desenvolvimento a ilegalizar a guarda e
troca tradicional de sementes e a desmantelar os bancos estatais de sementes.
Os agricultores tornaram-se dependentes de produtos corporativos – que muitas
vezes duravam apenas uma estação e, portanto, não podiam ser guardados.
Pequenos agricultores protestaram, em muitos países, contra a consequente perda
de “soberania das sementes” e biodiversidade. Milhares de agricultores ganenses,
por exemplo, protestaram contra a Lei das Melhorias Vegetais de 2013, que
avançava com os interesses do agronegócio ao criminalizar os agricultores que
guardavam sementes para plantar no ano seguinte; o projeto de lei foi retirado
sob pressão, mas reintroduzido em 2020 sob um nome diferente. Os defensores das
sementes corporativas frequentemente apontam para a Revolução Verde, um triunfo
dos laboratórios e fundações norte-americanas da década de 1970. Ela foi
construída a partir de variedades de sementes geneticamente modificadas de alto
rendimento, aliadas à irrigação intensiva e fertilizantes. Seu legado é
duvidoso: no estado de Punjab, o berço da Revolução Verde da Índia, as terras
agrícolas estão saturadas de químicos, os aquíferos estão desastrosamente
esgotados, e os agricultores estão presos num ciclo de custos sempre
crescentes. Na era da crise climática, no entanto, os próprios camponeses estão
desesperados para encontrar sementes mais resilientes e de maior rendimento.
Com as fontes alternativas de sementes removidas, as corporações desfrutaram de
uma bonança. A Bayer (Alemanha) e a Corteva (EUA) controlam 80% das patentes de
sementes geneticamente modificadas. Aliadas às sementes estão os fertilizantes
e agrotóxicos corporativos; juntamente com a ChemChina e a Sinochem (China) e a
BASF (Alemanha), por exemplo, essas mesmas empresas controlam cerca de 60% do
mercado global de pesticidas.
Agora,
o campesinato global gasta centenas de bilhões de dólares por ano em sementes e
químicos industriais. Embora a produção agrícola seja inquestionavelmente maior
como resultado, esta despesa está perigosamente desfasada do rendimento dos
camponeses. Tradicionalmente, os camponeses tentavam, tanto quanto possível,
sobreviver sem dinheiro, que geralmente chegava em quantidade apenas na época
da colheita. Eles gastavam pouco em sementes e fertilizantes e alimentavam-se,
tanto quanto possível, com os seus próprios recursos. Hoje, precisam dispor de
quantias significativas de dinheiro na época da semeadura e ao longo da estação
de crescimento das plantas, para conseguirem chegar à colheita. As mudanças
climáticas também forçam muitos camponeses a ressemearem várias vezes, elevando
em muito o custo do cultivo. Eles também gastam quantias muito maiores em
despesas regulares como a educação dos filhos. A maior parte deste dinheiro
precisa ser emprestada. A maioria dos governos tem esquemas de crédito agrícola,
mas alguns camponeses carecem da garantia e da documentação para cobrir as suas
necessidades desta forma. Outros esgotam rapidamente o seu potencial e devem
procurar empréstimos noutros lugares. Daí o enorme espaço ocupado,
especialmente na Ásia e na África, pelos agiotas rurais. Cobrando
frequentemente 10% de juros ou mais por mês, eles podem deixar uma imensa
destruição humana no seu rastro. Em segundo lugar, as políticas neoliberais
transformaram os mercados agrícolas. Nas últimas décadas, os agricultores têm
sido cada vez mais excluídos das receitas resultantes da sua produção. Os meios
pelos quais esta exclusão foi alcançada são, no entanto, variados e complexos.
Obviamente, as grandes corporações têm o poder de ditar os preços de mercado,
em detrimento de milhões de pequenos produtores. Nesse sentido, os mercados
“livres” parecem atuar contra os agricultores. Mas a história completa é mais
matizada. Os agricultores do cacau, da cana-de-açúcar ou do algodão do mundo em
desenvolvimento raramente obtêm os preços de mercado pelo seu produto. Entre
eles e esses preços estão, frequentemente, as mesmas instituições estatais que
foram criadas no século XX para proteger seu rendimento. Estas instituições
derivaram para uma função quase oposta.
Em
1947, por exemplo, Gana criou monopólios de mercado para garantir que preços
justos fossem pagos aos produtores de cacau. Agora, essas instituições
interpretam o “interesse nacional” de forma oposta. Elas atuam para manter os
preços baixos e, assim, gerar um subsídio, não apenas para o Estado, mas também
para exportadores, processadores e consumidores de chocolate. Em 2023-24, os
preços internacionais do cacau dispararam para até 12 mil dólares por tonelada,
mas o rendimento dos agricultores foi limitado ao preço do governo, que oscilou
entre US$ 1,8 mil e 3 mil por tonelada. As interações entre os gigantes
internacionais da produção de doces e as agências governamentais da África
Ocidental são complexas, mas os resultados não o são. Na década de 1970, os
produtores de cacau ganhavam até 50% do valor do chocolate acabado; isso caiu
para 16% na década de 1980 e é provavelmente para cerca de 6% agora. Enquanto o
valor da indústria do chocolate ultrapassou os 100 bilhões de dólares, alguns
produtores de cacau nesses países ganham menos de 300 dólares por ano. Gana e
Costa do Marfim, cujas indústrias de cacau costumavam assegurar empregos a
migrantes de toda a África Ocidental, são agora fontes significativas de
migração para a Europa. Grande parte do campesinato mundial é agora vítima
tanto dos mercados livres quanto dos resquícios socialistas regredidos e
controlados pelo Estado. A política camponesa é, portanto, mais complexa do que
geralmente se imagina. Muitos camponeses seguem o movimento de esquerda Via Campesina,
que procura restaurar os sistemas camponeses tradicionais e, assim, opor-se às
sementes geneticamente modificadas e à tomada corporativa da agricultura. Mas
há também gente comprometida com uma posição quase oposta. Em lugares onde as
antigas proteções socialistas se transformaram em instrumentos de compressão de
preços, muitos agricultores sonham com mercados “livres”. O terceiro alvo da
reforma neoliberal do campo é a terra camponesa. Ao contrário da sabedoria
convencional – urbana –, a maioria dos camponeses deseja manter a sua terra.
Recentemente perguntei a um agricultor de algodão indiano por que continuava o
seu trabalho árduo, quando mal cobria o custo de cultivo e tinha de trabalhar
noutros empregos para financiar sua pequena propriedade deficitária. Por que
ele simplesmente não vendia a sua terra e se concentrava nessas atividades mais
lucrativas? “A terra é a nossa mãe”, respondeu ele. “Você vende a sua mãe?” O
seu sentimento é partilhado por muitos camponeses, para quem a terra representa
não apenas segurança econômica, mas também herança, os antepassados e as
gerações futuras.
Em
muitos países, além disso, vender terras agrícolas não é apenas indesejável, é
também difícil. As políticas pró-camponesas adotadas pelo Egito, Índia, México
e tantos outros países nas décadas de 1950 e 60 – que ilegalizaram os grandes
latifúndios e impediram que terras agrícolas fossem adquiridas para outros usos
– agora garantem que os mercados de terras rurais permanecem fracos e os preços
baixos. Vender a terra pode nem sequer fornecer aos agricultores capital
suficiente para começar uma nova vida noutro lugar. Muito frequentemente,
portanto, eles continuam a cultivar. Mesmo que as suas terras tenham encolhido,
após gerações de partilha herança, e ficado abaixo do limiar de viabilidade;
mesmo que tenham se degradado devido a uma falta perene de investimento; mesmo
que as receitas se tornem negativas – eles continuam a cultivá-lo, em vez de
permitir que retorne ao estado selvagem. A pequena propriedade não é, portanto,
uma fonte de rendimento: fornece apenas estabilidade, uma base familiar, uma
sensação de lar. Para mantê-lo, os camponeses envolvem-se de modo subalterno em
atividades hipermodernas. Fazem turnos em fábricas para subsidiar o cultivo,
enviam familiares para trabalhar na construção no exterior, gerem transportes e
serviços locais. Grande parte da produção camponesa é hoje financiada a partir
de outras fontes e funciona como um serviço público deficitário. As novas
fachadas brilhantemente pintadas nas aldeias cambojanas são pagas não com os
lucros inexistentes do arroz, mas com as remessas de familiares que migraram e
trabalham em fábricas sul-coreanas.
Quando
a terra agrícola é desviada para outros usos, o processo é frequentemente
violento. No Brasil, Camboja, Gana, Índia, Filipinas e muitos outros países, os
agricultores foram expropriados à força para que as suas terras possam ser
reutilizadas para plantações, minas e projetos turísticos. Frequentemente,
estes despejos são executados por agências estatais. Na Etiópia, Honduras e
noutros lugares, as forças policiais prenderam ou até dispararam contra
agricultores por protestarem. Mas grandes áreas do campo global também estão
sendo criminalizadas, e os agricultores encontram-se em competição com forças
não estatais violentas. Os camponeses são as principais vítimas, por exemplo,
dos mineiros de ouro ilegais no Peru e na Colômbia; dos traficantes de madeira
e mineração em Myanmar; de grupos paramilitares ligados à Rússia que ocupam
depósitos minerais no Mali e na República Centro-Africana. As minas que tantas
vezes emergem de tal turbulência poluem as terras agrícolas restantes com
cianeto e outros químicos, destruindo ainda mais a economia camponesa. Dois
bilhões de pessoas não podem ser realocadas para as cidades. Sim, a população
rural da China caiu de 80% em 1980 para 35% – mas a China é única. Mesmo na
vizinha Índia, a população rural permanece em 65%, ou 900 milhões de pessoas.
Toda a indústria transformadora, construção e mineração do mundo emprega
atualmente apenas 800 milhões de pessoas: claramente, o campesinato global não
pode ser absorvido pela indústria. É preciso perceber que, na ausência de níveis
excepcionais de industrialização, nada pode sustentar grandes populações tão
bem quanto a terra. Precisamos parar de ver a urbanização como o principal
índice de progresso desenvolvimentista e perceber que ela é, em muitos casos, o
sinal de um grande desastre: a destruição da vida rural pela grande agricultura
e indústria, e a perda de sistemas humanos e ecológicos irreparáveis.
O
inimigo quotidiano do campesinato é o mesmo que o de todos nós: as alterações
climáticas. Elas trazem temperaturas crescentes, secas, tempestades mais
violentas e muitas irregularidades sazonais. As chuvas não chegam no momento em
que as sementes precisam de ser plantadas; chuvas fora de época arruínam as
colheitas e incentivam a propagação de pragas. O que os camponeses realmente
precisam é de um vasto programa de adaptação às alterações climáticas, que
envolverá principalmente a mudança para outras variedades e culturas. Tal
adaptação, no entanto, requer capital. As pequenas propriedades precisam ser
refeitas; um novo repertório botânico é necessário; tem de haver provisão, como
em qualquer experiência, para o fracasso. Dado o cenário descrito, não é surpreendente
que a maioria dos agricultores não consiga reunir o capital necessário.
Tradicionalmente, os camponeses devolviam os nutrientes ao solo sob a forma de
resíduos vegetais, excrementos humanos e animais, peles e fibras decompostas.
Como a maioria dos produtos agrícolas é agora consumida nas cidades, grande
parte desse material acumula-se como esgoto e lixo urbano – e a única forma de
os nutrientes poderem ser restaurados à terra é sob a forma de fertilizantes
químicos. Com o tempo, isto faz com que a fertilidade do solo decline. Na minha
própria pesquisa de campo, vi agricultores chorarem pelos danos que causaram às
terras agrícolas com insumos químicos. Ao contrário das corporações, os
camponeses não podem simplesmente dar de ombros diante do esgotamento de uma
determinada extensão e seguir em frente. A sua terra chegou-lhes dos seus
antepassados, que legaram também uma responsabilidade sagrada.
O fato
de o estoque de terras aráveis do mundo estar tão gravemente prejudicado deve
ser motivo de enorme alarme. Se as economias camponesas da América Latina,
África e Ásia forem destruídas, nosso sistema alimentar entrará em colapso.
Dados os vastos números envolvidos, entretanto, mesmo pequenas deteriorações
ecológicas podem forçar milhões de novos refugiados a sair da terra. Dependendo
de como as coisas progredirem, a Organização Internacional para as Migrações da
ONU prevê que haverá entre 25 milhões e 1 bilhão de refugiados climáticos até
2050. Essas pessoas provavelmente não encontrarão fábricas ou escritórios onde
trabalhar. A história sugere que alguns serão forçados a extrair um sustento
pela força, juntando-se a grupos criminosos ou terroristas financiados por
contrabando, sequestro e extorsão. O equilíbrio político global já é frágil.
Previsivelmente, o agronegócio tenta apresentar-se como a solução. Os websites
das grandes empresas alimentares retratam felizes trabalhadores de plantações
com uniformes corporativos. Eles orgulham-se do seu compromisso com uma
agricultura “sustentável” ou “regenerativa”. Empresas como McDonald’s, Bayer,
Mars e PepsiCo fazem parte de uma força-tarefa do agronegócio dentro da
Iniciativa de Mercados Sustentáveis, que declara como objetivo projetar um
sistema alimentar global mais sustentável e resiliente. “Só podemos alcançar
isto”, explicou o CEO da Bayer em 2022, “se nós, enquanto indústria,
intensificarmos coletivamente os nossos esforços para adotar práticas agrícolas
regenerativas.” Mesmo que tais declarações sejam feitas com sinceridade, os
últimos 40 anos devem torná-las suspeitas. A parceria entre as grandes
corporações e o campesinato global permitiu que as primeiras capturassem as
receitas do segundo e, assim, removessem muita liquidez do próprio campo
global. As pessoas que lá vivem, cujos bens mais preciosos lá se localizam e
cujos meios de subsistência estão lá, viram a sua capacidade de gestão e
investimento responsáveis diminuir catastroficamente. A única solução real é
entregar a responsabilidade às pessoas que têm um interesse de vida ou morte na
agricultura regenerativa.
O modo
de vida camponês é um amortecedor crítico contra as alterações climáticas. As
aldeias camponesas reciclam resíduos bioquímicos de volta para a terra; muitos
camponeses também suprem as suas necessidades nutricionais das suas próprias
propriedades. Os camponeses, que gerem diretamente cerca de 10% da terra no
planeta – uma área cinco vezes maior do que todas as vilas e cidades – fornecem
um contraponto ao extrativismo e ao curtoprazismo corporativos. Eles também
preservam conhecimentos locais críticos sobre os sistemas de terra e clima, e
as interações com plantas e animais. O campesinato é um dos recursos
econômicos, sociais e ecológicos mais cruciais da humanidade. Precisamos
investir nele se quisermos prosperar. Se for afluente e inovadora, esta classe
poderá protegern-nos de uma degradação mais extrema dos sistemas naturais.
Empobrecida e aterrorizada, será forçada, no final das contas, a deixar a terra
em massa, com múltiplas consequências catastróficas. Em 1979, quando escrevia
de uma aldeia remota no leste de França, John Berger observou que o objetivo do
camponês era transmitir os meios de sobrevivência (se possível tornados mais
seguros, em comparação com o que herdou) aos seus filhos. Os seus ideais estão
localizados no passado; as suas obrigações são para com o futuro, que ele
próprio não viverá para ver. Faríamos todos bem – e nossa sobrevivência pode
depender disso – em generalizar a caracterização sintética e elegante de Berger
da relação do camponês com a vida e a terra. A crise do campesinato global
situa-se no centro de todas as outras crises, e temos de resolvê-la. Temos de
recolocar os camponeses no centro da nossa visão do mundo. A sua luta para
manter o seu lugar e papel vitais é a nossa luta. Uma luta da espécie.
Fonte:
Por Maryam Aslany, na Aeon | Tradução: Antonio Martins, para Outras Palavras

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