Dos
postos de gasolina às fintechs: como facções se infiltraram no bilionário setor
de combustíveis
Era um
cenário bem distante daquele associado à atuação do crime organizado segundo o
imaginário da opinião pública do Brasil. Em seus pouco mais de 4,6 quilômetros
de extensão, os prédios modernos de alto padrão com fachadas de vidro abrigam
centenas de empresas e startups que fizeram da avenida Faria Lima o principal
centro financeiro de São Paulo — a região chegou a ganhar o apelido de
"Vale do Silício brasileira". Esse também foi o endereço de 42
mandados de busca e apreensão da operação Carbono Oculto, uma das três
iniciativas da Polícia Federal (PF), do Ministério Público do Estado de São
Paulo (MPSP) e da Receita Federal que investigaram o uso de fintechs para lavar
dinheiro do Primeiro Comando da Capital (PCC) em seus
empreendimentos ilegais
no setor de combustíveis.
O
sofisticado esquema usava fundos de investimento com o objetivo de ocultar a
origem ilícita dos recursos obtidos por uma das maiores facções do Brasil com
postos de gasolina, distribuição de combustíveis e até padarias e lojas de
conveniência. A estimativa da PF é que o esquema tenha movimentado pelo menos
R$ 52 bilhões entre 2020 e 2024. Só com a rede de postos, as investigações
apontam a existência de pelo menos mil unidades em dez estados, como Rio
de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Paraná.
Dias
após a operação, o ex-delegado Ruy Ferraz Fontes, considerado um dos pioneiros
no combate ao PCC em São Paulo, foi morto com mais de 12 tiros de fuzil em uma
das avenidas mais movimentadas de Praia Grande, no litoral do estado. Pelo
menos sete suspeitos já foram identificados, todos integrantes da facção.
Também há investigações em andamento para apurar se houve participação de
agentes de segurança no crime.
O
assessor de relações internas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP),
Nivio Nascimento, avalia à Sputnik Brasil que os resultados mostraram
apenas "a ponta do iceberg" de um problema crônico no país. O
especialista é um dos autores do estudo "Follow the products: rastreamento
de produtos e enfrentamento ao crime organizado no
Brasil", divulgado no início do ano pela organização, em que já apontava o
setor de combustíveis como o segundo maior negócio para o crime
organizado, à frente inclusive do tráfico de cocaína.
"O
que nós consideramos no estudo ia muito em direção ao que foi constatado pelas
operações da Polícia Federal, que mostraram justamente a inserção do PCC em
praticamente todos os elos da cadeia de valor do combustível, com uma estrutura
muito sofisticada de lavagem de dinheiro, usando as fintechs, mas também fundos
de investimento. Isso denota, na minha opinião, a ponta do iceberg, e só agora
começamos a ver o tamanho dessa infiltração das organizações criminosas
nesses setores da economia brasileira", enfatiza.
Conforme
a pesquisa do FBSP, a estimativa é que facções e milícias espalhadas por todo o
país faturem anualmente pelo menos R$ 61,4 bilhões no setor, muito
acima do rendimento com o tráfico de cocaína, que fica na casa dos R$ 15
bilhões — o valor é superior até ao lucro líquido registrado pela Petrobras no
ano passado, de US$ 7,5 bilhões (R$ 40 bilhões, na cotação atual). Os dados
ainda estimam que por ano são comercializados pelo menos 13 bilhões de litros
de combustíveis de forma ilegal, volume suficiente para abastecer toda a frota brasileira por três
semanas.
"Embora
os números sejam impressionantes, considerando o tamanho do PCC e o alcance das
ações dessa organização criminosa, é de se imaginar que ela não se restringe ao
mercado de combustíveis […]. E, pela mesma lógica de raciocínio e pelas
informações que levantamos, ficou bastante claro que essa atuação abrange
outras facções. Há várias notícias da presença do CV [Comando Vermelho] e de
milícias operando diversas modalidades criminais no Rio de Janeiro e em outros
estados, […] com uma sofisticação nos métodos de lavagem de dinheiro e
diversificação nas atividades", acrescenta.
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Setor ameaçado pelo crime no Rio de Janeiro
Um
proprietário de posto de combustível e dirigente do setor, que pediu anonimato
à reportagem por temer retaliações, garantiu que a presença das facções no
mercado de combustíveis é cada vez maior no Rio de Janeiro. "A situação
está muito grave, e vejo cada dia mais penetrando no estado, com bandidos de
facções envolvidos nisso, miliciano, bicheiro. Quem trabalha no setor está em
uma situação delicada. Muita gente deixando seus negócios para entregar para
esses caras", relata.
Conforme
a fonte, os postos ilegais "asfixiam" os demais estabelecimentos ao
abaixar os preços para um patamar difícil de concorrer. O modus operandi é
complexo: desde bombas de combustível adulteradas para informar um
volume maior ao consumidor ao abastecer seu veículo até a mistura de 80%
de etanol na gasolina. "Em vez de colocar 20 litros de gasolina, abastece
até 15% menos […], coloca metanol [tipo de álcool usado como solvente
industrial, tóxico, que pode corroer peças] no combustível e ainda vende sem
nota fiscal. Quem trabalha de forma correta não tem condição de competir",
diz.
E o
pior, pontua o dirigente, é que muitos empreendimentos ligados ao crime
organizado operam sob bandeiras populares de postos no Brasil.
"O consumidor acha que é um produto de qualidade e que a atuação
é legalizada, mas não é. O setor não está aguentando mais, e a tendência é
piorar muito", afirma, ao lembrar que o estado fluminense é cada vez mais
destino desse tipo de negócio por falta de medidas "do governo".
A fonte
cita ainda que a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis
(ANP) realiza fiscalizações pontuais, tendo fechado recentemente sete postos
ligados ao PCC no Rio de Janeiro, mas que é necessário também maior atuação das
polícias.
"Eles
[agentes da ANP] têm medo de entrar em muitos lugares, e as forças de segurança
deveriam jogar mais pesado [no apoio às fiscalizações]. O mercado fica numa
situação delicada e o revendedor trabalha com uma margem cada vez mais
apertada. Os custos sobem — luz, aluguel, salário de funcionário — e ele não
consegue repassar nada disso por conta da concorrência desleal e da bandidagem
que existe. Com isso, a tendência é quebrar. Muitos já fecharam, e os que não
resistem acabam caindo na mão deles", conta.
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Penetração do crime organizado nas polícias estaduais
A
coordenadora do Grupo de Estudos de Novas Ilegalidades da Universidade Federal
Fluminense (Geni/UFF), Carolina Grillo, explica à Sputnik Brasil que
as facções criminosas do setor de combustíveis são cada vez mais
interestaduais e até internacionais, o que também dificulta o combate.
"Nesse sentido, as polícias estaduais têm uma possibilidade muito limitada
de controle dos mercados operados por esses grupos, também pelo fato
da penetração dessas organizações nas forças de segurança. Há,
inclusive, uma dificuldade de controle interno das polícias, com a participação
dos seus próprios agentes nas redes do crime organizado."
Como
exemplo, a especialista também cita o caso do Rio de Janeiro, em que, além dos
postos de gasolina, há uma forte atuação das facções no furto de combustível,
principalmente em oleodutos — o estado é um dos principais produtores
petrolíferos do país — que passam por áreas controladas por traficantes ou
milicianos. Essa situação, inclusive, já provocou graves acidentes ambientais
na região da baía de Guanabara.
"Também
é importante frisar que, mesmo nos postos de gasolina regulares, que não
adulteram combustíveis ou não estão ligados ao crime organizado, esses locais
acabam muitas vezes sendo obrigados a pagar taxas de proteção aos grupos
armados que controlam determinados territórios, especialmente na Região
Metropolitana. Essa situação também ocorre em outras localidades, onde há
grupos armados que impõem a cobrança aos comerciantes locais", enfatiza.
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Facções e a ameaça à economia formal
O
levantamento do FBSP revelou também que as perdas fiscais do poder público
brasileiro com a atuação de facções no setor de combustíveis são estimadas
em até R$ 23 bilhões por ano. Para além do fortalecimento do crime
organizado, esse panorama traz riscos a toda uma cadeia da economia formal,
explica Nivio Nascimento.
"Pense
nas pessoas que trabalham no setor de combustíveis e querem atuar dentro das
regras. Elas enfrentam um contexto altamente adverso, com esquemas que
envolvem milhares de caminhões e grandes volumes de combustível adulterado. Os
danos são enormes, talvez até maiores do que os causados pela drogas ilícitas.
Afinal, por mais que a cocaína movimente cifras bilionárias, esse mercado não
se compara ao de combustíveis, bebidas ou cigarros em termos de tamanho, oferta
e demanda", destaca.
Já a
pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp)
e professora no Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG) Ludmila Ribeiro acrescenta à Sputnik Brasil que, para a
população em geral, muitas vezes os postos de combustíveis são vistos como
"um negócio acima de qualquer suspeita". Essa é uma situação
contrária, por exemplo, à do mercado paralelo de peças, em que também há forte
presença do crime organizado.
"Muitas
vezes sabemos que ali naquela esquina tem um comércio de peças que não é
registrado ou uma oficina que a gente chamaria de fundo de quintal. Mas, com o
posto de gasolina, isso não ocorre. Ele demanda toda uma publicidade, estar em
local visível e movimentado para que as pessoas possam abastecer o seu carro.
Então, em razão dessa visibilidade, se torna excelente para a lavagem de
dinheiro. E é nisso que essas novas investigações têm se destacado: primeiro,
você tem um comércio que circula muito dinheiro; segundo, pode misturar etanol
e outras substâncias para diluir a gasolina; e, terceiro, há uma fragilidade na
fiscalização", resume.
Outro
ponto citado pela especialista é a capacidade do crime organizado de utilizar
ferramentas e artifícios que tornam seus "rendimentos" imunes à
suspeita, inclusive com liquidez e alta rentabilidade.
"Essa
surpresa de o PCC estar na Faria Lima aponta para uma nova dinâmica que foi
ocorrendo à medida que os meios de pagamento foram se digitalizando […]. No
tráfico de drogas, a polícia costuma prender apenas os soldados, a parte mais
frágil da rede. Essa operação foi diferente porque mostrou o envolvimento de
pessoas altamente especializadas e escolarizadas, que não serão pegas na rua.
Isso evidencia a necessidade de mudar os padrões de policiamento e investir
mais em investigações complexas", argumenta.
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Avanço depende de sistemas mais eficientes de monitoramento do combustível
Diante
da complexidade da atuação do crime organizado no setor, o assessor do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública afirma que o combate à prática passa por
tecnologias que garantam um maior rastreio dos combustíveis. Como exemplo, cita
sistemas de marcação implementados em países como as Filipinas, que permitem
informar aos consumidores a origem do produto adquirido e foram responsáveis
por aumentar a arrecadação tributária em quase 90% em apenas um ano.
"Para
além da atuação policial, a solução passa pela inteligência na rastreabilidade
e no controle desses produtos. À medida que você pode, por exemplo, verificar
se um combustível foi adulterado ou não, identificar a rota, o trajeto
logístico, você tem uma possibilidade maior de desbaratar todos esses ilícitos
ao redor da cadeia de valor", defende.
Já a
pesquisadora do Crisp argumenta que o setor de segurança pública precisa
abandonar a visão simplista de que o aumento do efetivo policial nas ruas é
suficiente para enfrentar problemas estruturais, como a infiltração do crime
organizado no setor de combustíveis. Para ela, o caminho passa
por inteligência, equipes multidisciplinares e investigações mais
sofisticadas.
"As
dinâmicas ilegais não se sobrepõem, mas se articulam às legais. O crime não
toma o Estado; ao contrário, precisa dele e muitas vezes atua em parceria com
suas estruturas. É preciso olhar para essas frestas e superar a ideia de que
mais polícia na rua resolverá tudo. O desafio exige profissionais de diferentes
áreas e métodos além da simples tomada de depoimentos. Só assim será possível
compreender essas novas dinâmicas e enfrentar as redes que ligam o Estado
formal ao crime organizado", argumenta.
Rota do
combustível ilegal no Brasil
- Infiltração na
economia formal: o
crime organizado controla toda a cadeia de combustíveis, da importação à
venda.
- Importação
irregular de metanol: produtos chegam pelo porto de Paranaguá,
no Paraná, muitas vezes via empresas intermediárias ou de fachada.
- Empresas
interpostas: importadoras
compram nafta, hidrocarbonetos e diesel no exterior, mas os pagamentos vêm
de formuladoras e distribuidoras, indicando coordenação fraudulenta.
- Sonegação fiscal
em múltiplas etapas: ocorre na venda de gasolina tipo A das
formuladoras para distribuidoras e com o diesel tipo A vendido diretamente
pelas importadoras.
- Ampliação da
fraude: distribuidoras
também sonegam impostos na venda de gasolina tipo C e diesel tipo B aos
postos de combustíveis.
- Desvio e
adulteração com metanol: o metanol é desviado das
importadoras e adicionado ilegalmente nos postos, prejudicando a qualidade
do combustível e representando um risco a veículos e ao meio ambiente.
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Último concurso da ANP foi há 10 anos
Responsável
por fiscalizar toda a cadeia produtiva e de comercialização de combustíveis
em todo o Brasil (só de postos de gasolina, o número ultrapassa 45,6 mil
unidades), a ANP afirmou em nota à Sputnik Brasil que mantém acordos
de cooperação com órgãos de todas as esferas de governo, incluindo Ministérios
Públicos. Segundo a agência, também são realizadas operações conjuntas e
forças-tarefa com as polícias Federal e estaduais.
Apesar
da importância para o setor, o órgão admite que há anos enfrenta um grande
déficit na força de trabalho permanente, já que o último concurso público foi
realizado em 2015, quando foram contempladas apenas 34 vagas para os quadros
técnicos. "E, desde então, a Agência recebeu novas atribuições, como a
regulação e fiscalização do hidrogênio de baixo carbono e da captura e da
estocagem geológica de dióxido de carbono", informa.
Sobre a
denúncia de postos que misturam até 80% de etanol na gasolina para baixar
preços, a ANP lembra que o volume em si não acarreta risco ambiental. No
entanto, esclarece que o consumidor é lesado, já que o etanol tem poder
energético inferior ao da gasolina.
"Além
disso, um percentual alto de etanol acima dos teores já avaliados pode causar
problemas nos motores dos veículos não dotados de tecnologia flexfuel, os quais
já são projetados para funcionarem com etanol ou gasolina C em qualquer
proporção de mistura", afirma.
Com
relação às ações de fiscalização em território nacional, a ANP pontua ainda que
as iniciativas são planejadas "a partir de diversos vetores de
inteligência, como informações da Ouvidoria da ANP com manifestações dos
consumidores, dados do Programa de Monitoramento da Qualidade dos Combustíveis
(PMQC) da Agência, informações de outros órgãos e da área de Inteligência da
ANP, entre outros".
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Como identificar um posto ilegal?
Entre
as medidas para identificar postos irregulares, a ANP orienta os consumidores a
verificar se as bombas exibem o selo de identificação da origem do combustível,
inclusive nos postos bandeirados. No caso do etanol, é preciso conferir o
termodensímetro, "equipamento obrigatório que deve estar fixado nas bombas
de etanol e funcionando com fluxo de etanol contínuo durante o
abastecimento".
A
agência lembra ainda que o consumidor pode "solicitar o teste da proveta,
que mede a porcentagem de etanol anidro misturado à gasolina" e que
qualquer "posto deve dispor dos equipamentos necessários e de um
funcionário capacitado a realizar os testes".
"Embora
o preço praticado por cada posto dependa de sua estrutura de custos e
negociações com os fornecedores, desconfiar de valores cobrados muito abaixo da
média da região. Além disso, sempre solicitar a nota fiscal. Denúncias sobre
irregularidades no mercado de combustíveis podem ser enviadas à ANP por meio do
FalaBR, plataforma integrada de ouvidoria e acesso à informação da
Controladoria-Geral da União (CGU)", finaliza.
A
reportagem questionou o Ministério da Justiça e Segurança Pública sobre a
criação, no início do ano, de uma força-tarefa nacional para investigar a
atuação de facções em setores como o de combustíveis, ação que seria integrada
ao Núcleo de Combate ao Crime Organizado. Porém a pasta afirmou que as
informações deveriam ser solicitadas à PF, que declarou "não ter fonte
disponível" para comentar o assunto.
Com
relação à situação do Rio de Janeiro, a Sputnik Brasil também procurou a
Secretaria Estadual de Polícia Civil (Sepol), mas não teve retorno.
Fonte:
Sputnik Brasil

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