Roberto
Amaral: Há algo de novo no front
A
última semana teve início promissor no domingo, 21 de setembro, pois se ouviu,
a lembrar outros eventos, a voz do povo: livre, espontânea, alegre, mas
trazendo para as ruas um grito reprimido de inconformismo, um rotundo não! à
atonia política que parecia dominar o país, receoso de fazer frente à maré
montante da extrema-direita, apresentada como história já acontecida, cantada
nas ruas, recitada na imprensa, nos púlpitos, nas portas dos quartéis. As ruas
e as praças, o espaço onde o povo atua e faz história, seriam agora o
território privilegiado do reacionarismo.
A
história parava aí.
Mas o
povo, mobilizado, disse não, e com seu gesto pôs de manifesto o torpor de
nossas lideranças, políticas e governantes, a anomia dos partidos, o conhecido
recesso do movimento sindical.
Fracassada
a intentona de janeiro de 2023, julgados e condenados os principais mandantes,
articulava-se à luz do dia, no Congresso e fora dele, uma vez mais — e
certamente não ainda pela última (a persistirem os vícios letais da conciliação
e da impunidade) — a desmontagem do pacto político democrático conquistado com
a constitucionalização em 1988, fruto dos 21 anos de resistência à ditadura
instalada em 1º de abril de 1964, sustentada enquanto possível pela aliança dos
militares golpistas com o grande capital e o apoio político, financeiro e
estratégico dos EUA, este mesmo que hoje azucrina o governo Lula.
Na
sequência da desmontagem do que ainda tínhamos de Estado social (ofício em que
se esmera desde o impeachment de Dilma Rousseff), após o golpe branco
continuado contra o presidencialismo, açambarcando competências do Poder
Executivo, a direita articulava o golpe no golpe, cujo ponto de partida sem
retorno residia na virtual decretação da falência do Poder Judiciário, mediante
a anulação de suas decisões e a ameaça de impeachment pairando como espada de
Dâmocles sobre as cabeças de seus ministros.
A
senha, na sequência da tomada de assalto da Mesa da Câmara dos Deputados por
parlamentares celerados, era o encontro da PEC da Bandidagem com o PL da
Anistia, reunindo, nas graças da impunidade, criminosos comuns e criminosos
políticos, passados, presentes e presuntivos, os parlamentares de hoje e de
amanhã, e os golpistas fardados e os golpistas paisanos que atentam contra a
ordem democrática desde a proclamação da República.
A
população entendeu que se davam as mãos as iniciativas da direita nativa com as
ações agressivas e reiteradas dos EUA contra nossa economia e nossa soberania,
e as unificou como uma única ameaça. Contra elas se levantou, tecendo como uma
só luta o combate à impunidade e o fim da conciliação política mediante a
defesa da democracia e da soberania nacional. Foi o enlace que mobilizou a
consciência política e levou o povo a ocupar as ruas, afirmando sua vontade.
Que seu
grito não fique parado no ar.
O saldo
histórico mais relevante deste 21 de setembro terá sido, para além do veto à
impunidade parlamentar (já consagrado no Senado) e à anistia aos golpistas
(ainda tramitando na Câmara dos Deputados), haver o povo se assumido como o
fiador da democracia. Esta é a bandeira que as forças de esquerda e
progressistas, de um modo geral, deverão sustentar.
As
manifestações do domingo têm, do ponto de vista político, um significado
exemplar que as aproxima das memoráveis mobilizações que, fechando a campanha
das Diretas Já, desaguaram em abril de 1984 nos comícios do Rio de Janeiro e de
São Paulo. Os idos de abril anunciavam o fim da ditadura, que, velha e
exaurida, sairia de cena no ano seguinte. O melhor retrato desse fim sem honra
nos foi ensejado pelo último ditador, o general João Baptista Figueiredo, ao
abandonar o Palácio do Planalto pelas portas dos fundos, no dia 15 de março de
1985.
A festa
de 21 de setembro deste ano deve encerrar o ciclo das dúvidas táticas da
esquerda no enfrentamento dos desafios e anunciar uma nova fase da ação
política.
Desta
feita, as mobilizações, convocadas por intelectuais e artistas identificados
com sua gente, sem a presença ostensiva das organizações partidárias e
sindicais (mas com a necessária participação delas), sem apoio da grande
imprensa, sem transporte facilitado, percorreram todas as capitais e muitas
cidades do interior do país, reunindo multidões em número ainda não
contabilizado.
No Rio
e em São Paulo, estados e capitais governados pela direita, os militantes da
democracia foram calculados em algo superior a 90 mil. E a Avenida Paulista,
como respondendo ao desafio posto pelo fascismo, se esmerou ao estender a
imensa bandeira do país, fixando a imagem icônica da opção nacional,
contrastando com a vassalagem oferecida pela direita ao carregar como sua a
bandeira do imperialismo, quando os EUA mais atacavam nossa economia, nossa
dignidade, nossa independência, nossa soberania.
Assim,
a direita e a esquerda, no Brasil, passaram a ter seus símbolos, e o nosso é
aquela imagem da Avenida Paulista no dia 21, fundindo ideia, sentimento e ação.
O que
virá, a seguir, serão suas consequências, ainda mais significativas na medida
em que as ruas não forem novamente abandonadas, e as lideranças políticas de
nosso campo tiverem, enfim, compreendido que a única luta que se perde é aquela
que se abandona, ou não se trava. E que o povo não se omite, quando
corretamente sensibilizado.
Essa
história em processo, e este renascido projeto de um país que luta por
preservar sua independência e sua soberania — independência e soberania que
precisam ser defendidas com ações afirmativas todo dia (diz a história dos
povos) — constituiu a coluna dorsal do discurso do presidente Lula, ao abrir a
80ª Assembleia Geral da ONU, no último dia 23.
O
presidente pôs de pé o país, com firmeza e sem recorrer a bravatas; respondeu a
todas as agressões e ameaças com dignidade e coragem e, ao fim e ao cabo,
traçou as linhas mestras de uma política externa que já foi identificada como
“ativa e altiva”.
É
documento para ser distribuído, ouvido e lido em todo o país, nas escolas e na
caserna, massificado, discutido e, afinal, adotado como seu pela Nação, que,
consciente de seu significado, saberá cobrar a fidelidade do Estado, do atual
governante e de seus sucessores.
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Nada de novo no front
As
comemorações são justas, ademais de necessárias, mas todo cuidado é pouco para
não confundirmos ponto de partida com ponto de chegada. É recomendável
considerar, sempre, o poder do grande capital e da gendarmeria do imperialismo,
tanto mais agressivo quanto mais se revela sua crise.
Há que
ter presente as resistências de uma economia dependente da exportação de
commodities, matérias-primas e minério in natura, como é a nossa, incrustada na
periferia do capitalismo.
E é
preciso considerar as limitações objetivas do governo de centro-esquerda,
minoritário em Congresso controlado pela extrema-direita, e à mercê de uma
classe dominante cuja visão de mundo é condicionada por um enraizado sentimento
de inferioridade em face do mundo dito desenvolvido (este que está destruindo o
planeta), seus valores e seus interesses, os quais, sem qualquer crítica, ela
procura reproduzir como se fossem seus.
Por
esta ótica de vira-lata é que o mainstream da imprensa nacional se vê, nos vê e
enxerga o mundo. Por isso pouco viu e ouviu Lula e seu discurso. A FSP e O
Globo do dia 24/09 trouxeram para a primeira página o improviso de Donald
Trump, acusando a descoberta de uma certa “química” com o nosso presidente (que
a confirmaria mais tarde, acrescentando reciprocidade), captada em 39 segundos
de um encontro casual nos corredores da ONU. O longo discurso de Lula, em
contraste, seria matéria para as páginas internas.
Nesse
encontro, que certamente entrará para os anais da política internacional, de
tão relevante que pareceu aos grandes jornais, Trump teria convocado nosso
presidente para um tête-à-tête, e logo vêm, deles, as recomendações para Lula
não postergar o encontro. E chovem conselhos sobre as concessões que teríamos
de fazer ao império.
Concessões
que devem ser anunciadas antes das negociações, e assim caberá ao Brasil
entregar a cereja de seu bolo: para o oligopólio da comunicação, o que haveria
por barganhar deve ser ofertado de graça, como quem renuncia aos ases no jogo
de cartas.
Nem um
pio sobre nosso direito a reclamar explicações sobre as agressões sofridas pelo
nosso país, repetidas e acentuadas por Trump em seu discurso autorreferente e
racista, proferido na sequência do pronunciamento de Lula.
Nenhum
dos jornalões registrou que o magnata, numa afronta ao nosso país, disse que o
Brasil vai mal (sob que aspecto? Os dados sobre queda do desemprego e aumento
da renda, por exemplo, são conhecidos), e que só irá bem se estiver com os EUA.
Justiça seja feita à síntese do Correio Braziliense: “A mensagem central do
discurso de Trump na ONU: ou é do meu jeito, ou nada feito”.
O
Estadão de nada gostou e reduz o discurso de Lula a um “show ideológico”. Para
o jornal dos Mesquita, nosso presidente foi “um papagaio a repetir chavões
esquerdistas contra o imperialismo ocidental”. Mais realista do que o rei,
cobra de Lula críticas à Rússia pela invasão da Ucrânia (coisa que o presidente
já fez noutras oportunidades), enquanto Volodymyr Zelensky agradece
publicamente a Lula por haver apelado por um cessar-fogo em seu discurso, e
pelos esforços do Brasil pela paz na região.
A
classe dominante diz que o fundamental é negociar “tecnicamente” (como se esta
e qualquer negociação entre Estados pudesse não ser política...), aproveitando
a brecha “inesperadamente” aberta por Trump. O Valor, dos Marinho, dita a
etiqueta: “É mais a hora de demonstrar competência diplomática que protestos
políticos” (25/09).
Governo
e setor privado, diz O Globo (25/09/25), estariam trabalhando um “cardápio de
itens”, e já seriam conhecidas propostas de concessões em áreas estratégicas,
como minerais sensíveis (terras-raras e outros), energia, data centers e
inteligência artificial.
Como se
vê, se temos todas as razões para comemorar os atos de 21 de setembro e apostar
em seus frutos, a experiência recomenda muita cautela e muita vigilância na
proteção de nossos interesses, que depende de permanente mobilização política.
• Não existe química entre Lula e Trump.
Por Eduardo Appio
A
última assembleia da ONU em Nova Iorque foi marcada pelo anúncio de um suposto
“crush” entre Donald Trump e Lula. Alguns atribuem essa aproximação às leis da
química, enquanto outros defendem que o inegável carisma de Lula teria vencido
a petulância de Trump.
Ambas
as explicações, no entanto, contrariam o bom senso, já que Lula e Trump
representam polos opostos em termos políticos e humanos. Lula nasceu em uma
família pobre, sobreviveu à fome e ascendeu pela luta. Trump, ao contrário,
nasceu em berço de ouro e sempre fez questão de ostentar um luxo brega e
decadente.
Lula
representa o progresso da civilização humana e liderou lutas humanitárias
durante toda a sua carreira política. É o maior líder da esquerda mundial e foi
preso em razão disso, vítima de perseguição judicial de caráter político.
Trump, por sua vez, jamais foi responsabilizado por boicotar o combate à
Covid-19 ou por liderar a invasão do Capitólio após ser derrotado por Joe
Biden. Trata-se do maior líder da extrema direita mundial, e ainda assim contou
com decisões da Suprema Corte que lhe concederam poderes autoritários.
Enquanto
Lula é um pacifista reconhecido internacionalmente como mediador de conflitos,
Trump é belicista declarado, sempre disposto a transformar o conflito em método
de atuação política, como fazia em seus programas de televisão ao demitir
estagiários em rede nacional.
Não há
nenhuma química possível entre esses dois personagens históricos. No plano
pessoal, existe apenas aversão recíproca, e é certo que Trump não medirá
esforços para interferir na eleição presidencial de 2026 no Brasil. O
pragmatismo de Trump ao acenar para Lula esbarra no idealismo do presidente
brasileiro, defensor fervoroso da soberania nacional e da independência do
Supremo Tribunal Federal.
Repito:
não existe química possível nesse caso. Trata-se de uma encenação de Trump,
cujo objetivo é retardar a aproximação estratégica do Brasil com a China. Mais
do que as características pessoais, estão em jogo os interesses econômicos e
geopolíticos do nosso país. É importante ressaltar que Trump, mais do que o
líder chinês, tem sido o maior responsável pela desconstrução do projeto
democrático dos Estados Unidos. O experimento americano, tão celebrado pelos
fundadores da República, sucumbiu em pouco menos de dois anos de Trump 2.0.
Não há
possibilidade de construção de um projeto democrático que envolva Donald Trump
e Lula da Silva. Ainda assim, os interesses comerciais das duas potências podem
se sobrepor aos conflitos ideológicos. Mas quais seriam as reais vantagens para
o Brasil neste momento? O que há de concreto nesse aceno de Trump, tão
celebrado pela imprensa brasileira?
A
relação política entre Brasil e Estados Unidos só pode ser resgatada pela
diplomacia de ambos os países — algo improvável no cenário atual. O secretário
de Estado norte-americano não poupa críticas ao Supremo Tribunal Federal, com
ataques frequentes ao ministro Alexandre de Moraes. Outro ministro do STF, Luís
Roberto Barroso, fala em “pacificação” do país, como se golpes de Estado e o
fascismo fossem opções legítimas da população. Não são e nunca serão. A
Constituição Federal de 1988 é republicana, democrática e tem forte apelo
social.
Não há
química possível entre Democracia e Golpe Militar. Não é aceitável que partidos
políticos se abasteçam dos cofres do fundo partidário para financiar o discurso
do ódio e a pregação contra a democracia no Brasil. Já passou da hora de o
Ministério Público e os partidos democráticos questionarem judicialmente a
atuação de parlamentares e legendas que atentam contra a ordem constitucional.
O que
falta? Uma nova tentativa de golpe em 2026? O cidadão brasileiro está pagando
para sustentar parlamentares que defendem tarifas impostas por Trump e que
invadem a mesa da Câmara dos Deputados.
Lula
tem razão ao afirmar que a soberania não se negocia. Vou além: a democracia
tampouco se negocia. Qualquer pacto espúrio e secreto em nome de uma suposta
pacificação do país apenas alimentará os fornos de uma nova “solução final” em
2026. Repito: não existe conciliação possível entre opostos. Assim como não há
química entre Lula e Trump, não existe pacificação baseada em anistia costurada
nos bastidores, em um país que terá eleições no próximo ano. O ministro
Barroso, talvez por ingenuidade, acredita no contrário. O tempo dirá se tem
razão.
Fonte:
Brasil 247

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