É
possível tornar as ruas brasileiras mais seguras?
A morte
da socióloga Marina Harkot, atropelada enquanto andava de bicicleta em novembro
de 2020, em São Paulo, deixou uma marca no contraditório panorama brasileiro de
óbitos no trânsito.
Naquele
ano, o número de mortes nas ruas e rodovias brasileiras voltou a crescer após
quase uma década de redução. A inflexão ocorreu apesar do confinamento imposto
pela pandemia da covid-19 e a despeito de o país possuir um robusto arcabouço
legal que cumpre quatro das cinco boas práticas elencadas pelas Nações Unidas
para segurança viária.
Para
Felipe Burato, cofundador do projeto Pedale como Marina, que homenageia a
socióloga, as políticas públicas municipais não têm como foco a proteção dos
usuários mais vulneráveis no trânsito. O descompasso aumenta a sensação de
impunidade, diz ele, sentimento agravado pelos quatro anos que se passaram
entre o atropelamento e a condenação do motorista, que dirigia embriagado.
"Te
tira um pouco da confiança de estar nas ruas. Com a bicicleta e mesmo a pé.
Você vai ficando com mais medo pela ideia que 'pode se fazer o que quiser'. Era
uma impressão que dava, de que qualquer um pode me matar aqui", conta
Burato à DW.
No
período retratado por Burato, a situação no trânsito brasileiro se deteriorou.
Em 2019, foram 31,9 mil vítimas fatais em todo o país. A cifra alcançou 32,7
mil no ano seguinte e continuou a crescer até 2023, atingindo 34,9 mil óbitos,
segundo os dados consolidados mais recentes disponibilizados pelo Datasus.
O
índice de mortes por 100 mil habitantes registrou consequente alta no mesmo
período, de 15,2 para 16,2, superando a média latino-americana. O salto
pressionou o Sistema Único de Saúde (SUS), que também viu um aumento nos gastos
com internações por sinistros de trânsito.
Na
prática, mais brasileiros morreram em sinistros com veículos do que por armas
de fogo em 2023. Com 123 milhões de veículos nas ruas, o Brasil passou a ocupar
o quarto lugar no ranking mundial de mortes deste tipo, atrás apenas de Índia,
China e Estados Unidos, segundo levantamento global da Organização Mundial de
Saúde (OMS) que considera números absolutos.
"Nós
temos uma legislação que é considerada uma das melhores do mundo, o nosso
Código de Trânsito, tem mais de 25 anos, é super bem estruturado", avalia
o CEO do Observatório Nacional de Segurança Viária, Paulo Guimarães.
"Mas
há deficiência na aplicação dessa legislação. As pessoas, por um lado, não têm
consciência do risco que estão correndo e, por outro lado, não sentem o efeito
da fiscalização por conta dessa impunidade", continua.
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O papel dos municípios
O
secretário nacional de Trânsito, Adrualdo Catão, argumenta que os números
brasileiros não fogem da curva de países que são similares em indicadores
socioeconômicos.
O
Brasil conta com um Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito, o
Pnatrans, lançado há sete anos sob a meta de reduzir as taxas de mortalidade
pela metade até 2030. Mas o plano não tem efeito coercitivo, e seu
desdobramento dificultado nas cidades, autônomas para definir projetos locais,
afasta o país de atingir esse objetivo.
Catão
defende que a baixa implementação das orientações nacionais em nível municipal
ajuda a explicar a realidade brasileira. Ao menos 80% da malha viária do país
está sob gestão das mais de 5,5 mil prefeituras do país.
O
problema não está somente nas capitais, que concentraram 18% das mortes no
trânsito entre 2013 e 2023. Segundo a Confederação Nacional de Municípios
(CNM), apenas em cada três municípios brasileiros têm um órgão responsável pelo
trânsito local.
"Nós
vamos levar em conta uma meta proporcional de redução [de mortes]. E se não
atingir a meta, nós vamos acionar os órgãos de controle. É assim nós estamos
fazendo", afirmou Catão à DW, pontuando que a atual gestão passou a tratar
o Pnatrans como uma ferramenta de compliance para forçar sua aplicação.
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Desmonte de políticas
Bons
exemplos que chegaram a resultados positivos no Brasil indicam que mesmo diante
de problemas estruturais, cidades de grande porte podem reverter esta tendência
(leia mais abaixo). No entanto, especialistas entendem que a paralisia das
políticas municipais reflete um desmonte mais amplo iniciado na gestão do
ex-presidente Jair Bolsonaro.
Além de
mirar os radares nas rodovias federais, suas principais mudanças vieram na
alteração do Código de Trânsito brasileiro, em 2020. O novo regramento ampliou
o prazo para renovação da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e o número de
pontos necessários para suspendê-la. Também flexibilizou as punições a
infrações leves e médias.
"A
gente tinha na gestão passada um presidente que falava de trânsito. Só que ele
falava contra o trânsito, contra a segurança. A gente teve problemas de
regressão, no âmbito institucional, com a mudança no Código de Trânsito",
afirmou Catão.
O novo
governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, porém, não reverteu os
principais retrocessos apontados e extinguiu a cobrança do seguro obrigatório
que garantia assistência à saúde de vítimas de trânsito, o DPVAT.
"Sua
extinção afetou o SUS, que perdeu um volume considerável de recursos para
cobrir os custos com atendimento às vítimas", reforçam os pesquisadores do
Atlas da Violência, publicação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
"Em
alguns pontos o [atual] Congresso conseguiu melhorar. Mas no fim das contas o
infrator terminou sendo beneficiado", argumenta Catão sobre o Código de
Trânsito. O secretário entende que o ambiente politizado dificulta a discussão.
"O que a gente faz é evitar novos retrocessos."
Mais
recentemente, porém, o Ministério dos Transportes passou a defender o fim da
obrigatoriedade da frequência em autoescolas para a obtenção da CNH como forma
de reduzir o custo de formação e o número de pessoas dirigindo sem habilitação.
Críticos veem a medida como facilitadora de acidentes.
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Formação urbana e aumento da frota de motocicletas
O
descompasso entre políticas nacionais e locais revela que o óbito nas ruas
brasileiras não é casualidade, defende o consultor em mobilidade urbana e
professor do Insper, Sérgio Avelleda. "A morte é resultado de uma ação ou
omissão de políticas públicas", avalia.
Assim
como Paulo Guimarães, do Observatório Nacional, ele vê a formação das cidades
brasileiras e a baixa qualidade do transporte público como agravantes.
Tal
dinâmica urbana, que empurra moradores à periferia, somada às barreiras de
acesso à cidade, intensifica a busca por motocicletas, por exemplo, cuja frota
passou de 830 mil para quase 1,3 milhão na última década. Em 2023, quase 39%
dos acidentes com mortos envolveram motociclistas, aponta o Atlas da Violência.
Esse é
um dos desafios de São Paulo, cujo elevado número de habitantes ajuda a
engrossar os dados nacionais. Em 2024, a capital paulista voltou a atingir mil
mortes no trânsito, regredindo ao observado em 2015, segundo levantamento do
Detran-SP.
Em
nota, a prefeitura de São Paulo diz que trabalha para ampliar a segurança dos
motociclistas, instalando a faixa exclusiva para motos em alguns pontos da
cidade. Nestes trechos, segundo a gestão, o óbito de motociclistas caiu 47%
entre 2023 e 2024.
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Pauta anti-radar vira trunfo eleitoral
Outro
consenso na literatura internacional é que o controle da velocidade é a
primeira medida para reverter o problema. "Tem muitas formas de você fazer
o carro ter mais cuidado na sua circulação sem reduzir a velocidade direta. Por
exemplo, a fiscalização", afirma Cauê Jannini, diretor administrativo da
ONG Cidade a Pé.
Foi a
velocidade combinada ao consumo de álcool que vitimou Marina Harkot. Nos anos
seguintes, a fórmula se repetiu em outros casos de repercussão nacional.
Apesar
disso, o radar é tomado como vilão, e disputar sua implementação se tornou um
trunfo eleitoral. "A fiscalização tem sido, talvez por questões
populistas, de pegar mal para quem está tentando se eleger, largada. Porque não
é popular aplicar multa", alerta Jannini.
Avelleda
vê uma cultura de leniência com a infração nestes cenários. "Quando você
implanta radar, as pessoas dizem que você está criando a indústria da multa.
Talvez exista a indústria da multa, mas como toda a indústria, ela precisa de
insumos. O insumo da indústria da multa não é o radar, é a infração de
trânsito", afirma.
Tal
realidade se traduz nas campanhas eleitorais. Uma pesquisa da DW mostra que,
dos 26 prefeitos eleitos para comandar as capitais brasileiras em 2024, dez não
incluíram política específica de segurança viária em seus planos de governo
apresentados durante o ciclo eleitoral. Entre os que mencionaram o tema, a
maioria propôs apenas um único projeto para os próximos quatro anos.
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Experiência internacional já funciona no Brasil
A
comparação com países ricos se tornou lugar comum para justificar o desafio
enfrentado por nações em desenvolvimento. Mas municípios brasileiros têm
caminhado na contramão desta tendência.
"Por
mais bem treinado que você seja, mais bem educado, um dia você vai sair
nervoso, você vai sair cansado", defende Avelleda. Reconhecer tal problema
exige uma reformulação: "Você é obrigado a desenhar ruas para que as
pessoas não corram, não passem de limites seguros de velocidade", diz.
Desenho
urbano, gestão de velocidade e priorização da segurança são princípios do
programa Visão Zero, lançado na Suécia em 1997, que se desdobrou em taxas quase
nulas de mortes no trânsito de alguns municípios europeus.
No
Brasil, esse programa virou parâmetro do plano de governo da prefeitura de
Fortaleza, no Ceará, que reduziu as mortes pela metade em dez anos. "Não
adianta a gente querer educar só o condutor, não adianta a gente querer só
melhorar vias. Foi um esforço multidisciplinar", afirma o professor de
Engenharia de Transportes da Universidade Federal do Ceará, Flávio Cunto.
A
proposta foi reverter a lógica de fluidez do automóvel para apostar em
fiscalização e intervenções no espaço urbano. Ficou estabelecido que as
mudanças não poderiam ser pontuais, mas sistêmicas.
"Quando
[o órgão de trânsito] começa a entender essa questão da segurança viária, há
uma mudança de foco bem radical", defende André Matos, gerente de operação
e fiscalização de trânsito de Fortaleza, onde o rearranjo municipal atravessou
três gestões municipais sob queda no número de vítimas fatais. A tendência se
reverteu apenas em 2024.
"Áreas
que foram integradas aos pedestres, áreas de bairros onde o trânsito era
caótico, sem sinalização, e a gente, com intervenções simples, devolveu o
espaço à população", explica Cunto sobre a experiência do urbanismo
tático.
"Os
principais elementos são pinturas no revestimento, na calçada, no pavimento
apoiada por elementos de paisagismo, como jarros, como balizadores",
continua. Um dos exemplos aplicados em Fortaleza foi o levantamento de
interseções não semaforizadas para reduzir a velocidade.
Para
Felipe Burato, a construção de uma cidade que valorize a vida pode ocorrer
mesmo nos grandes municípios, desde que o Brasil inverta a lógica de velocidade
e foco no veículo. "Hoje o modelo de cidade que a gente tem é um modelo
carrocrata. É o direito do carro de estar em qualquer lugar e tudo o que está
em volta é supérfluo. E na verdade, a cidade que Marina e a gente vislumbra é
uma cidade das pessoas", argumenta.
Fonte:
DW Brasil

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