SÃO
LUÍS NO SÉCULO XXI: Injustiça espacial e a negação do Direito à Cidade
Prestes
a completar 413 anos neste primeiro quarto do século XXI, São Luís, capital do
Estado do Maranhão, cidade tombada pela Unesco como Patrimônio da Humanidade e
com seus mais de um milhão de habitantes, insiste em possuir incômoda situação:
a incapacidade no fomento de políticas públicas urbanas includentes por parte
dos poderes públicos, que por sua vez, dão condições a incorporadores e
empresários do ramo construtor e imobiliário para que ditem o ritmo e as formas
de ocupação e expansão do solo urbano. O resultado deste processo é o de se
sobreviver em uma cidade esfacelada-fragmentada do ponto de vista espacial, em
que diferentes grupos sociais se distribuem em territórios muito bem definidos
e delimitados no município.
Destarte,
esta fragmentação congrega, num extremo, territórios com condomínios verticais
e horizontais, os “enclaves fortificados” em lugares onde a rua é apenas lugar
de passagem, que margeia os muros altos com cercas elétricas e dá acesso aos
portões automáticos das propriedades. De outro lado, abrange os casebres, as
palafitas, as casas de taipa e as pequenas moradias de um ou dois cômodos nos
territórios periféricos e marginalizados, onde a rua é como uma extensão das
casas, lugares de sociabilidades, com seus conflitos e lutas cotidianas por
parte de seus frequentadores. Há todo um tecido socioespacial com
características específicas, próprias da cidade informal, dos “circuitos
inferiores da economia”, com suas regras e normas de convivência e sobrevivência,
já que a presença do poder público ali é residual.
Embora
se observe nítidas diferenças em territórios do espaço intraurbano ludovicense,
delimitadas por diferenças infraestruturais e de serviços aparentes, resultado
de relações oriundas da violência neoliberal como nos diz Chauí, nota-se
problemáticas ubíquas na quase totalidade do município e causa espanto a
omissão dos governos, que parecem alheios às adversidades, uma tendência
universal da urbanização recente que Mike Davis designou de “museu da
exploração humana”, com suas formas primitivas de exploração, a exemplo do
trabalho infantil, do racismo territorial e da informalidade como regra.
Uma das
mais evidentes problemáticas da ilha como um todo – da qual São Luís ocupa mais
de um terço do território – é o deficitário abastecimento de água. Composto por
três sistemas de abastecimento interligados (Italuís/Sacavém-Batatã/Paciência I
e II), com quase trezentos poços profundos, São Luís padece com a falta de água
em milhares de lares todos os dias, é relativamente comum, por exemplo, que
tubulações do Sistema Italuís – que atende 60% da capital maranhense – sofra
rupturas, afetando a distribuição de água nas habitações de milhares de
pessoas.
É
também muito comum ainda que em muitos bairros na ilha, dotados de populações
de todas as classes sociais, tenha distribuição de água em apenas poucos dias
do mês, caso, por exemplo, da chamada Península da Ponta D’areia, o metro
quadrado mais caro da cidade. Isto faz do serviço de carros-pipa um negócio
muito lucrativo ainda hoje, fato que nos remete à Ana Jansen, figura poderosa
da aristocracia maranhense no século XIX, detentora do monopólio da venda de
água na cidade naquela época, período em que seus escravizados comercializavam
água em carroças, oriunda das fontes no Apicum e Vinhais, de propriedade da
família Jansen.
Não
bastassem as deficiências no abastecimento de água, São Luís sofre também pelo
mau uso do atendimento de água e por não tratar grande parte de seu esgoto. De
acordo com os dados mais recentes dados do Sistema Nacional de Informação sobre
Saneamento (SNIS) e do Instituto Trata Brasil, de 2023 e publicado neste ano,
São Luís ocupa a 94ª posição entre os 100 municípios mais populosos do Brasil
no quesito “atendimento total de água”. No que se refere a tratamento de esgoto
a situação é pior ainda, dentre as capitais dos Estados, a capital do Maranhão
ocupa a antepenúltima posição com apenas 15,89% de esgoto coletado e tratado, a
frente apenas de Porto Velho (12,18%) e Macapá (14,42%). Não à toa, a
balneabilidade das praias na cidade se encontra em estado quase sempre crítico,
imprópria, a maior parte do ano, para o banho.
Nas
últimas cinco décadas, a cidade se expandiu bastante, tanto em direção ao
norte, para os bairros do Calhau, Renascença I e II, Ponta D’areia e Ponta do
Farol, à leste para os bairros da COHAB, COHATRAC, Turu e Forquilha, bem como
para os territórios do Itaqui-Bacanga, representados por bairros como Anjo da
Guarda, Sá Viana, Fumacê, Jambeiro, e Mauro Fecury I e II. Além de ocupações
que se assentaram em áreas alagadas, seja em manguezais ou nas margens de
cursos d’água. De acordo com o IBGE, São Luís ocupa o 4º lugar no Brasil entre
os municípios com mais de 750 mil habitantes a apresentar maior quantidade de
favelas e comunidades urbanas, com proporção de 33% de habitações, o que dá em
torno de 102 mil moradias precárias e sem segurança jurídica.
A
cidade se esfacela na mesma proporção do aumento das desigualdades, o solo
urbano – principalmente nos bairros dos antigos conjuntos habitacionais e
outros territórios que estão ao norte do município – se tornou um grande
negócio, o que possibilita a presença de um estoque de “vazios urbanos” murados
que não param de valorizar pela especulação, além de empreendimentos
habitacionais prontos, comprados a ponto de serem vendidos ou alugados. Isto
tem provocado um processo de conurbação, intensificado desde o início do século
XXI, isto é, um direcionamento de loteamentos e construções de novos
condomínios e moradias para os municípios vizinhos de São José de Ribamar e
Paço do Lumiar, através de avenidas como a General Arthur Carvalho, Holandeses
e as MA’s 202, 203 e 204, territórios onde os estoques de terra são maiores e
também mais baratos. Por outro lado, esse processo determinou o afastamento
ainda maior de populações empobrecidas que são obrigadas – de maneira forçada
ou não – a residirem em lugares cada vez mais distantes e deficitários de
transportes, saneamento e outros equipamentos urbanos.
Em meio
ao aumento da pobreza urbana – sobretudo no contexto pós-pandemia do COVID-19 –
observada pelo aumento expressivo de favelas e cortiços, foi aprovado, em 2023,
o Plano Diretor Participativo. Enquanto instrumento jurídico, o Plano Diretor é
norteador de toda a política de desenvolvimento e de expansão urbana nos
limites municipais. Houve intensa disputa entre diferentes setores da sociedade
na formulação das propostas no Conselho da Cidade e nas audiências públicas.
Foi aprovado um projeto de lei que pode ser caracterizado como excludente, sem
levar em consideração o drama de milhares de famílias que vivem excluídas na
cidade, já que possui como objetivo primacial oferecer garantias jurídicas à
implantação de um Terminal de Uso Privado na Baía de São Marcos, denominado
Porto São Luís, de propriedade da mega empresa Cosan.
As
condições geográficas da Baía de São Marcos – principal região portuária do
MATOPIBA – se mostram bem favoráveis à acumulação de capital por grandes
mineradoras e também para o agronegócio brasileiro. Ela possui as seguintes
características: 1. Um calado de grande profundidade; 2. Proximidade com os
maiores centros consumidores de commodities do mundo e 3. Logística e
infraestrutura que facilita o escoamento da produção direto da sua origem,
através da interligação das Ferrovias Norte-Sul e Carajás-São Luís. O discurso
neodesenvolvimentista oriundo da Consan para efetivar o Porto São Luís é
sedutor, prevê a geração de milhares de empregos diretos e indiretos, além de
investimentos iniciais na ordem de 650 milhões de dólares no município e uma
capacidade de 25 a 115 milhões de toneladas por ano de movimentação de produtos
agrícolas e mineiros.
Governos
do Estado e do Município agem para que o empreendimento saia do papel, por isso
a aprovação do Plano Diretor, que transformou o que era grande parte da Zona
Rural e suas diversas comunidades, em Zona Urbana no Macrozoneamento. O poder
público com apoio jurídico já usou aparato policial para retirar à força
moradores que se recusaram a sair de seus territórios, como o emblemático caso
do Cajueiro, pois estes estariam ocupando lugares de propriedade privada,
fenômeno, designado por David Harvey de “Ajuste Espacial”, permite a criação de
condições para uma hiper-acumulação de capital em lugares específicos, criando
desordem e caos, como a expulsão de habitantes de seus territórios, degradação
ambiental e consequentemente a produção de uma diferenciação geográfica que
concentra e tensiona forças produtivas versus força de trabalho.
Além do
poder público, os rentistas urbanos locais também se mostram a favor da
construção do Porto São Luís. Mas, quais os interesses dos empreendedores do
ramo imobiliário local na sua construção? Durante as audiências públicas e nas
atas das reuniões do Conselho da Cidade eles defenderam e votaram no sentido de
ampliar a Zona Urbana. A nosso ver, os construtores miram uma nova frente
territorial para obterem novos lucros e rendas, representado por um lugar
passível de valorização do solo, isto é, uma área retroportuária que ocupará
1,5 milhões de metros quadrados na porção sul e sudoeste de São Luís, um
emergente negócio que servirá de sustentáculo aos objetivos do grande capital.
Tais agentes, em seus discursos nas audiências, chegaram a afirmar que, caso
haja a instalação do terminal portuário, no futuro, São Luís poderá se tornar
uma espécie de “Singapura brasileira”, por terem em comum o fato de serem
espaços insulares de extensão e forma parecidas, com “vocação” portuária e
posição geográfica estratégica, o que na realidade se configura num verdadeiro
estelionato discursivo, haja vista as profundas diferenças na estrutura
político-econômica, histórica, social e cultural entre São Luís e a
Cidade-Estado asiática.
Desta
forma, há um grande e permanente embate nas cidades brasileiras e em São Luís,
o conflito entre o capital construtor-imobiliário e os trabalhadores, que por
conta da intensa expansão de fronteiras urbanas, transformam as maneiras de
subsistência e habitação dos pobres, empurrados cada vez mais para lugares
insalubres, inseguros e distantes. A legislação urbana de São Luís tem cumprido
este nocivo papel, seja com os empreendimentos do Programa Minha Casa, Minha
Vida, instalados em lugares isolados e sem infraestrutura no município, seja
oferecendo as condições para a ocorrência da reprodução ampliada do capital,
como no caso do Porto São Luís.
Portanto,
é necessário expor e investigar o que vem acontecendo com a gestão e o
planejamento urbano em São Luís, que agoniza pelas desapropriações e despejos,
pela violência e morte de habitantes pobres e pretos, que é incapaz de fomentar
políticas públicas estruturais de regularização fundiária, de criação de novas
habitações de interesse social, de captar e destinar recursos para a
implantação de espaços de lazer, saúde e educação na periferia. É preciso agir
de forma integrada ao pensar o espaço citadino, unindo os diversos entes da
federação na busca da alocação de recursos para mirar o essencial ao urbano: o
direito à moradia digna, à água potável, ao saneamento básico, à cultura, à boa
e diversificada alimentação, ao ensino público e gratuito em escolas de
qualidade, aos serviços de saúde pública acessíveis, direitos estes, usurpados
historicamente das populações carentes e marginalizadas.
O poder
público tem sido omisso em relação aos pobres e vulnerabilizados da cidade, a
instauração da legislação urbana ao longo da História nunca serviu para mudar
as estruturas da sociedade ludovicense. Embora se reconheça tentativas
importantes, como a implantação de áreas de proteção ambiental no Plano Diretor
de 1975, da instauração de Zonas de Interesse Social no Plano Diretor e no
Zoneamento de 1992 e uma ampliação da participação de diferentes e
diversificados setores e agentes da sociedade civil na formulação das leis por
conta do advento do Estatuto da Cidade em 2001, na prática, as leis tem sido
inoperante em questões essenciais, como a não efetivação de instrumentos
urbanísticos para dirimir desigualdades no espaço urbano.
Da
mesma forma, as leis se mostram eficientes em atender interesses da esfera
privada, principalmente às ligadas ao setor imobiliário, a exemplo da ampliação
no número de pavimentos destinados exclusivamente a estacionamentos em
edifícios no ano de 2011, uma modificação ilegal, realizada às escondidas na
Câmara de Vereadores, infringindo a lei de zoneamento, uso e ocupação do solo.
Os
movimentos de resistência na cidade como entidades sociais organizadas,
moradores da zona rural, intelectuais, rádios comunitárias, coletivos,
jornalistas, ativistas, sindicatos, ONG’s, e alguns setores da justiça e do
Ministério Público tem assumido papeis centrais nas discussões sobre as leis e
por isso, atuando de forma a fazer denúncias e contestações sobre quaisquer
arbitrariedades e ilegalidades.
Diante
de todo o exposto até aqui, é necessário levantar alguns questionamentos: em
que medida as relações abertas entre o poder público e o ramo da construção
civil contribuem para que se aprofundem as injustiças espaciais e a negação do
direito à cidade no município de São Luís? Quais estratégias de ações são
necessárias para que haja uma maior mobilização e participação da sociedade
civil nas decisões sobre os rumos que a cidade pode tomar? Que tipo de
desenvolvimento urbano São Luís precisa? De que forma as articulações
transescalares entre o intraurbano, o urbano-regional, o nacional e o global
explicam a intensa concentração de riqueza na cidade? E por fim, quais os
papeis dos ativistas, intelectuais e da universidade na produção de uma
consciência e de uma nova psicosfera no urbano?
Fonte:
Por Luiz Eduardo Neves dos Santos, para Le Monde

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