Como
nossa obsessão por classificar personalidades humanas já existe há mais de 2,5
mil anos
Se você
já tiver lido ou assistido à peça A Megera Domada, de William Shakespeare
(1564-1616), no teatro ou em suas diversas adaptações para o cinema e a
televisão, já conhece suas antiquadas metáforas de gênero.
A
famosa história se concentra no protagonista Petruchio, que impõe diversas
punições à sua obstinada esposa Catarina (Katherine, no original
shakespeariano). Seu objetivo é transformá-la em uma mulher "ideal",
flexível e submissa.
Mas o
público moderno talvez esteja menos familiarizado com o diagnóstico que recebeu
Catarina: excesso de bile amarela (conhecida como "cólera") na
corrente sanguínea, o que teria gerado teimosia e cabeça quente.
Ainda
mais bizarro é o tratamento da angústia sofrida por Catarina, na peça de
Shakespeare.
Petruchio
impede que ela coma alimentos "quentes", que possam inflamar ainda
mais a sua condição. Carne servida com mostarda, por exemplo, era rigorosamente
proibida.
Pode
parecer desconcertante para o público atual, mas a teoria humoral, de onde
surgiram estas ideias, era uma abordagem imensamente popular para compreender a
saúde e a personalidade na época de Shakespeare e por milênios antes dele.
Além
dos "coléricos" irascíveis, como Catarina, havia os
"melancólicos" depressivos, que sofriam de excesso de bile preta; os
"fleumáticos", tipos calmos e gentis, inundados pela fleuma; e os
"sanguíneos", extrovertidos e de boa natureza, que contavam com boa
quantidade de sangue quente, o que era supostamente confirmado pelas suas
bochechas coradas.
Originária
dos acadêmicos da Grécia Antiga, esta teoria permaneceu influente até o período
do Iluminismo (séculos 17 e 18), inclusive. Ela determinava os aconselhamentos
sobre saúde e estilo de vida, como quais alimentos as pessoas deveriam comer,
quais tratamentos médicos deveriam fazer e até onde deveriam viver, tudo de
acordo com seu tipo humoral.
A
teoria enfrentou cada vez mais questionamentos ao longo dos séculos 16 e 17,
por exemplo, com o surgimento da dissecação, o maior conhecimento do sistema
circulatório e a invenção do microscópio. Ainda assim, ela só desapareceu
gradualmente.
E,
embora as avaliações biológicas tenham sido desmentidas há muito tempo
(felizmente, não temos fluxo excessivo de bile e fleuma), algumas das marcas
características dessa teoria ainda podem ser observadas em modelos psicológicos
com bases científicas hoje em dia.
As
raízes da teoria humoral estão no pensamento do filósofo grego pré-socrático
Empédocles (494-434 a.C.). Ele foi o primeiro a propor que os quatro elementos
clássicos — terra, água, fogo e ar — seriam os blocos de construção do
Universo.
Mas é
comumente creditado ao médico grego Hipócrates (460-370 a.C.) o desenvolvimento
da teoria dos quatro humores (bile amarela, bile preta, fleuma e sangue) e suas
consequências para o corpo humano.
Alguns
séculos depois, o médico e filósofo greco-romano Galeno (131-201 d.C.)
codificou aquela teoria, descrevendo os quatro temperamentos como uma expressão
do equilíbrio entre a temperatura e a umidade do corpo.
Os
textos de Galeno e Hipócrates deram origem a milênios de obsessão com a
temperatura e a umidade do corpo, dos alimentos e do ambiente como um todo.
Acreditava-se
que eles correspondiam aos quatro elementos e às quatro estações, além das
diferentes etapas da vida.
Os
melancólicos seriam secos e frios, associados à terra, ao inverno e à idade
avançada. Os sanguíneos, quentes e úmidos, eram associados ao ar, à primavera e
à adolescência.
Os
coléricos, quentes e secos, evocavam o fogo, o verão e a infância. E os
fleumáticos, frios e úmidos, estavam relacionados à água, ao outono e à idade
adulta.
A
aparência era importante para identificar o humor de uma pessoa.
"Em
grande parte, o aspecto físico indicava o humor dominante em você",
segundo o especialista em história da ciência Steve Shapin, da Universidade
Harvard, nos Estados Unidos. Ele é o autor de Eating and Being: A History of
Ideas about Our Food and Ourselves ("Comer e ser: uma história das ideias
sobre a nossa comida e sobre nós mesmos", em tradução livre).
"Você
encontra isso em Shakespeare", prossegue ele. "Os melancólicos tinham
aparência escura, amarelada. Os fleumáticos eram gorduchos e pareciam
gordurosos e as pessoas coléricas tinham aparência má e penetrante."
A
prática da fisionomia (o julgamento do caráter de alguém a partir da sua
aparência) foi desacreditada no final do século 19.
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Romeu era um emo?
Mas os
humores não eram imutáveis. Acreditava-se que o equilíbrio interno poderia ser
atingido, em parte, pelo consumo de alimentos que complementavam a composição
interna da pessoa.
Os
fleumáticos, por exemplo, eram aconselhados a não comer pêssegos e melões,
segundo Shapin. "Eles tinham água demais."
Você
poderia até ser orientado a viver em um local mais quente, frio, seco ou úmido,
para garantir a harmonia entre seus ambientes interno e externo.
Estas
ideias foram incrivelmente duradouras.
"Os
textos de Galeno eram como livros sagrados para os médicos nos séculos 17 e
18", afirma Shapin.
"Descobrir
como eram as pessoas e qual a linguagem que permitia aos médicos aconselhá-las
como deveriam viver era uma característica realmente estável da cultura."
Em dado
momento, a influência da teoria começou a diminuir, até ser substituída pela
emergente ciência da nutrição, na segunda metade do século 19.
Apesar
do conhecimento agora desacreditado que os sustentava, os retratos apresentados
por Shakespeare dos arquétipos de personalidade ainda são familiares entre o
público moderno.
"Quando
ensino Romeu e Julieta, meus alunos dizem 'oh, meu Deus, Romeu é um emo'",
conta a historiadora da literatura Sarah Dustagheer, da Universidade de Kent,
no Reino Unido. Ela estuda a dramaturgia e a interpretação em Londres no início
da Idade Moderna.
"O
século 17 era muito diferente da nossa sociedade, mas existem alguns
fundamentos da emoção e da experiência humana que não se alteraram",
destaca ela. "O que mudou é a forma em que nós os interpretamos."
Isso é
algo que o influente teórico da personalidade teuto-britânico Hans Eysenck
(1916-1997) descobriu ao utilizar uma abordagem denominada "análise de
fatores", nos anos 1950.
Ela
envolvia o estudo das variáveis de personalidade, como a agressividade ou a
timidez, para observar como elas se relacionavam entre si e se poderiam ser
explicadas por dimensões subjacentes mais amplas.
Os
primeiros modelos de Eysenck definiam duas dimensões principais de
personalidade, que ele chamava de "neuroticismo" e
"extroversão".
O termo
"extroversão" havia sido cunhado anteriormente pelo famoso
psicoanalista Carl Gustav Jung (1875-1961), mas com significado levemente
diferente.
Eysenck
considerava a extroversão em função da sensibilidade de alguém a estímulos
externos. Ele afirmava que os extrovertidos eram menos sensíveis, ou seja, eles
se emocionavam com níveis mais altos de estímulo, como grandes festas, música
alta, cores brilhantes etc. Já os introvertidos eram o contrário.
Paralelamente,
o neuroticismo era uma função da intensidade com que as pessoas reagiam ao
stress e sua suscetibilidade a emoções negativas.
A
diretora do Centro de Pesquisa da Psicologia nos Meios de Comunicação no Estado
americano de Nevada, Pamela Rutledge, afirma que Eysenck considerava que a
personalidade reflete a composição do sistema nervoso das pessoas.
"Ele
defendia que os indivíduos herdam um tipo de sistema nervoso que afeta sua
capacidade de aprender e se adaptar ao ambiente", explica ela.
Eysenck
descobriu que a combinação das suas duas dimensões de formas diferentes criava
quatro "tipos", que pareciam estranhamente similares aos quatro
humores da antiga taxonomia:
• Alto neuroticismo e alta extroversão =
coléricos
• Alto neuroticismo e baixa extroversão =
melancólicos
• Baixo neuroticismo e alta extroversão =
sanguíneos
• Baixo neuroticismo e baixa extroversão =
fleumáticos
Eysenck
considerou esta conclusão como evidência da validade da sua abordagem. Ela
parecia "coincidir com as observações e intuições das pessoas sobre a
personalidade que foram consideradas válidas por milhares de anos",
segundo o professor de Psicologia Colin DeYoung, da Universidade de Minnesota,
nos Estados Unidos.
Eysenck
também ficou surpreso com a genialidade dos antigos acadêmicos ao conectar a
personalidade à biologia subjacente.
Ele não
tinha a ilusão de que substâncias como a bile preta contribuísse para as
diferenças entre as pessoas, mas desenvolveu novas teorias sobre as bases
neurobiológicas da nossa personalidade.
Atualmente,
esta é uma área de pesquisa em ascensão, segundo DeYoung. Ela relaciona, por
exemplo, a extroversão ao sistema de recompensa de dopamina no cérebro.
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Os cinco grandes fatores
Eysenck
é uma figura controversa, devido às suas crenças racistas sobre o QI,
desmistificadas há muito tempo.
Seus
modelos, agora, estão superados, mas o modelo de personalidade atualmente
dominante, os cinco grandes fatores, ainda inclui suas duas dimensões
principais, o neuroticismo e a extroversão.
Desenvolvido
por diversos grupos de pesquisa nos anos 1990, este modelo acrescenta ainda a
abertura, a conscienciosidade e a amabilidade.
O
modelo defende que a estrutura básica da personalidade é composta por
diferentes intensidades desses cinco fatores. Diversos estudos afirmam que
essas cinco dimensões são estatisticamente independentes entre si.
Mas
outros pesquisadores concluíram que certas dimensões tendem a se correlacionar.
"Não
apenas [isso], mas essas correlações apresentavam um padrão bastante regular e
confiável", afirma DeYoung.
As
análises de DeYoung e outros concluíram que a extroversão e a abertura estão
tipicamente agrupadas, da mesma forma que o baixo neuroticismo, a amabilidade e
a conscienciosidade.
"Por
isso, você poderia tomar estas correlações e elaborar dois fatores de ordem
superior, acima dos cinco grandes", explica DeYoung.
Ele e
seus colegas conceitualizaram esses dois conjuntos como
"plasticidade" e "estabilidade", respectivamente. E a
combinação destes dois fatores, segundo ele, gerou um modelo de personalidade
de quatro tipos, que parece bastante familiar:
• Alta plasticidade e baixa estabilidade =
coléricos
• Alta plasticidade e alta estabilidade =
sanguíneos
• Baixa plasticidade e baixa estabilidade
= melancólicos
• Baixa plasticidade e alta estabilidade =
fleumáticos
"Novamente,
foi meio que paralelo aos velhos humores", afirma DeYoung, rindo.
Mas nem
todos concordam que realmente existam estes dois fatores de ordem superior.
"Os
psicólogos da personalidade defendem, há muito tempo, o equilíbrio entre a
parcimônia e a nuance", afirma Rutledge.
Simplificar
a personalidade em dois fatores é interessante, "pois fornece um atalho
eficaz para entender o comportamento humano", segundo ela.
Mas
alguns cientistas defendem que eles são simplesmente um subproduto da
sobreposição de algumas das características de personalidade determinadas pela
maioria dos questionários dos cinco grandes fatores. E, na verdade, outras
características da personalidade são pura expressão de apenas um dos cinco
grandes.
Existe
também a preocupação do lado clínico de que "reunir as características em
metacaracterísticas traz o risco de simplificar demais a diversidade das
experiências individuais, que pode ser fundamental para elaborar
intervenções", explica Rutledge.
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Rotulando as pessoas
Na era
dos questionários de personalidade online e da tipologia de Myers-Briggs nos
perfis de aplicativos de namoro (sem falar na astrologia), muitos pesquisadores
alertam rapidamente que a nossa fixação por "tipos" não é algo
científico.
Mas
será que o trabalho de DeYoung oferece alguma indicação de que nossas
personalidades são um pouco mais fáceis de resumir, afinal?
"A
resposta é 'não exatamente'", segundo DeYoung.
A
psicologia das personalidades chegou ao consenso de que os tipos, às vezes,
podem ser uma forma útil de resumir a posição de alguém em diferentes
dimensões. A questão é que não existem "entidades claras e categóricas na
natureza", explica ele.
O ato
de rotular as pessoas com tipos, como no sistema Myers-Briggs — um teste de
personalidade já desmistificado que foi desenvolvido nos anos 1940 por mãe e
filha, Katharine Cook Briggs (1875-1968) e Isabel Briggs Myers (1897-1980) — é
questionado devido aos cortes arbitrários entre as categorias.
Na
verdade, segundo DeYoung, as avaliações recaem em uma curva em sino e a maioria
das pessoas está em algum ponto perto da média, algo que um sistema categórico,
na verdade, não consegue analisar.
Mas, da
mesma forma que Shakespeare, no passado, ficou restrito a coléricos e
sanguíneos, muitos de nós atualmente ficamos presos a classificações como o
Tipo A, ENTJ ou a signos como Escorpião.
"A
classificação é o nosso mecanismo embutido de organizar informações para
podermos entender, aprender e interagir com o mundo", segundo Rutledge.
"O
desejo de classificar as pessoas e os comportamentos está presente desde o
início dos registros históricos e, provavelmente, antes mesmo que eles
existissem."
Fonte:
BBC Future

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