Flávio
Lazzarin: Crise civilizacional ou uma simples crise da democracia?
"A
política tem sentido só se acompanha os corpos, a concretude da vida, a dor, o
cansaço, a alegria. E os corpos se confundem com os territórios. São corpo
social, político, coletivo, e é neste corpo que se processa o conflito. Corpos
onde se entrelaçam fragilidade, desventura e esperança de vida em plenitude.
Corpo como única arma dos desarmados contra a violência dos
poderes deste mundo, corpo atravessado pela dor, pelo abandono e pela
experiência do silêncio de Deus", escreve Flavio Lazzarin, padre
italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá,
no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
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Eis o artigo.
Em
busca de luzes, de sinais, nestas trágicas e complexas conjunturas, estou
acompanhando alguns intelectuais da atualidade, oriundos do mesmo berço
operaista, que, movidos por diferentes perspectivas, refletem sobre a crise em
que estamos mergulhados e perdidos.
Me
reencontro, assim, com Franco Berardi, que acompanha,
perdida toda esperança da possibilidade do enfrentamento e da luta, o surto
contemporâneo da bestialidade humana: “A experiência humana acabou. É a ideia,
crucial na modernidade, de que o mundo, a linguagem, a razão e a lei podem
controlar a imediatez do instinto, da bestialidade. As vítimas têm de se tornar
assassinas — esta é a lição que aprendi com a transformação de
Israel numa entidade nazi. Esta é a lição que aprendo quando vejo Auschwitz nas praias
do Mediterrâneo, na costa de Gaza e em centenas de campos de
concentração em toda a bacia mediterrânica… “Desista de tudo. Abandone. Vá
embora. Pare de procriar. Esta é a verdadeira política para o futuro.” ... E
esta última década revelou a verdade: o gênero humano corre o risco de não
sobreviver ao espasmo final do colonialismo. Em 2017, eu alertava sobre o
perigo de uma guerra civil global. Agora, a guerra civil global está em curso.
Após o colapso global da pandemia, o supremacismo branco assumiu o controle
no Ocidente e desdobrará todo o seu poder destrutivo, o que significa
que poderá destruir a civilização humana.”
Em
suma, desertar e desvincular-se para não ser cúmplices. Mas parece mesmo ser
tarde demais! A postura de Berardi, no entanto, parece niilistamente
desesperada. A incontestável e indiscutível radicalidade desta leitura não
deixa, contudo, espaço algum para ver processos coletivos insurgentes e
experiências comunitárias, minoritárias e humildes sementes que, em todo canto
do Planeta, sem a presunção de ter as chaves para projetar o futuro,
confrontam, porém, no tempo presente, com teimosia e a pesar de todas as
derrotas, o capitalismo, o individualismo e a catástrofe dos direitos humanos e
ambientais, violados de forma sistemática, ampla e devastadora.
No
entanto, Berardi e poucos outros intelectuais de esquerda, chegam à
convicção que a realidade atual nos revela a obsolescência dos sonhos
revolucionários e reformistas.
A esquerda já
teria jogado todas as suas cartas de suposta alternativa à modernidade
ocidental e, de fato, faz tempo que é obrigada a acompanhar, sem nenhuma
possibilidade de fugir do já dito e já feito, a decadência da civilização
ocidental.
O
antidoto anticolonial produzido pelo Ocidente, mostrou e mostra a sua
constitutiva inaptidão a revolucionar ou reformar o sistema e passa a fazer
parte da irreversibilidade da crise, coagido a repetir chavões e enfrentamentos
datados e obsoletos ou a optar por arranjos cada vez mais alinhados com a ditadura do
capitalismo em
todas as suas versões imperiais, tradicionais ou emergentes.
Continuo
com Giuseppe Cocco, que não compartilha
as leituras ‘apocalípticas’ da conjuntura política e social. Não vê,
como Berardi, uma crise civilizatória e parece interpretar a conjuntura,
ainda em termos marxianos, como uma das inúmeras crises cíclicas do
capital.
Ele se recusa de ver o presente como um colapso total do Ocidente. Em vez
de teorizar a decadência sem saída, aposta na potência do presente, mesmo
quando este está atravessado por crises, derrotas, retrocessos e violência. Ele
radicaliza o paradigma do materialismo
histórico,
lendo a presença dos conflitos e das lutas além dos seus lugares tradicionais,
a fábrica e o estado, com a inclusão dos territórios da metrópole, e os fluxos
digitais da comunicação. Reconhece a derrota das “multidões”, mas não renuncia
a chave de leitura aceleracionista, chegando a criticar Negri e Hardt, naquilo
que Cocco define como purismo moralista e fidelidade à esquerda, e à
própria esquerda de estado, como aconteceu com Chavez, em 2006, e
com Lula e o PT, em 2014, desconhecendo o recado da Multidão no Brasil,
em junho de 2013.
“…O que
resta da análise do livro Império? O Império, na melhor leitura que
compartilhamos, sempre foi um livro que defendia um ponto de vista irredutível:
aceleracionista, desde baixo, vendo a globalização como a via da realização das
possibilidades infinitas da democracia. Era, portanto, um chamado para não se
posicionar de fora, mas sim acelerar o processo e disputar as tendências por
dentro. Podemos afirmar que foi a desaceleração do ciclo de lutas
da Multidão, marcada por sua incomunicabilidade e bloqueio, que, em última
instância, nos derrotou.”
É
evidente que não codivido a posição de Cocco que, a partir do
irrenunciável esquema dialético, parece não reconhecer a luta identitária
anticolonial dos povos originários e tradicionais da floresta, do campo e da
cidade, como sujeitos políticos, que contribuem aceleração democrática da
história. Esses povos, como os indígenas de Gaza, estariam “fora” do
processo histórico fundamental. A necessidade de valorizar o que está “dentro”,
apesar das derrotas recentes, é a razão do desconhecimento. Mas, será que toda
insurgência indígena e camponesa e toda luta antipatriarcal, enquanto apoiada
pelo paradigma decolonial elaborado nas universidades dos EUA, é
assimilável ao campo da “reação conservadora, identitário-essencialista,
fascista, putinista e, portanto, antidemocrática e antiglobal.”?
No
entanto, parece-me irrenunciável no pensamento de Cocco a clareza, do
discernimento da conjuntura geopolítica, criticando a posição das esquerdas
para as quais a solução da crise estaria na disponibilidade do Sul de
se aliar à China e Rússia, na reedição de um novo bipolarismo,
via BRICS, ignorando o neofascismo putinista e o totalitarismo chines.
Dois imperialismos alternativos, mas aliados, de fato, no enfrentamento
da Multidão, considerada o único verdadeiro inimigo.
Cocco é
determinado por uma postura teórica, que quer priorizar os conflitos, as lutas
concretas, os novos sujeitos políticos capazes de reorientar, de acelerar,
processos de transformação, mas acaba privilegiando um terreno de reflexão não
isento de certa abstração, porque parece esquecer os corpos feridos, o sangue
derramado, o sofrimento das vítimas da colonização ocidental. Porque quando as
classes subalternas ficam enfraquecidas e desarmadas, o panorama que temos é
marcado pela vontade de extermínio, que caracteriza os vencedores. Por isto,
parece-me que a conjuntura é algo bem mais assustador de uma mera “crise da
democracia”.
Importante
contribuição de Cocco, sobretudo no contexto da condenação da tentativa de
golpe de estado no Brasil pelo STF, é a constatação que “O
paradoxo dos paradoxos é que os movimentos de emancipação precisam hoje lutar
ao mesmo tempo contra e “pelo” Império, no último caso contra Putin-Xi (a distopia de
um Fora capitalista totalitário) e contra Trump-Musk (o suicídio da
civilização).” A conjuntura atual “indica que a preservação das condições
político-institucionais para que as lutas possam ocorrer de forma menos gravosa
para quem luta por direitos (e pelo direito a outras formas de vida possíveis)
é preferível à sua destruição por meio da captura das instituições pelos novos
déspotas, que desejam o poder a todo custo e, viralmente, não param de se
multiplicar e estriar o espaço global.”...“Na crise do poder constituinte nos
últimos anos, portanto, foi o poder constituído liberal-democrático que freou e
bloqueou a força destrutiva e destituinte da deriva fascista. Mas obviamente
isso não é suficiente, como a pujança eleitoral social das novas formas de
fascismo mostra (vide os resultados eleitorais na Europa e nos motins
anti-imigrantes no Reino Unido).”
As
considerações de Berardi e Cocco fazem com que volte
imediatamente à memória a lição profética de Mario Tronti, que consegue
reavivar o debate e oferecer esperanças e perspectivas.
Parece-me
mesmo que a sua análise e a sua proposta, que amadureceram na última fase da
sua biografia política e intelectual, constituem até hoje uma convincente
abordagem da crise civilizacional, que combina a leitura coerente da tragedia
do Ocidente com a esperança.
E são
uma resposta à evidente falência das esquerdas de hoje, que oscilam entre
obsolescência não reconhecida, pessimismo desesperado, fidelidade à
materialística misteriosa providência das forças produtivas, adaptação à
burocracia partidária e às lógicas eleitorais e de governo, vago progressismo
burguês sempre à la page. Esquerdas, cada vez mais
irremediavelmente distantes dos deserdados e oprimidos, únicos verdadeiro motor
da história.
Tronti conseguiu
reconhecer que o marxismo, como pensamento
interno, radicalmente autocrítico, da modernidade ocidental, é parte integrante
da crise desta civilização. Tronti não o abandona totalmente, porque,
apesar de ter perdido eficácia transformadora, o considera um instrumento ainda
valido para ler o decadência do Ocidente. A crise do materialismo
dialético e do materialismo histórico não representam a mera falência de um
projeto político, mas um sintoma da decadência do Ocidente, incapaz de produzir
alternativas vitoriosas, radicalmente alternativas, ao seu domínio.
Mas,
sobretudo, ele não abandona a luta, também quando fica evidente que
a classe operaria não existe mais como sujeito político fundamental
da luta de classe. Figura central da
heresia operaista, na década de 60, Tronti põe como central na
análise e na prática política não o processo capitalista mas o protagonismo da
classe operária. Tronti realizava, de fato, a chamada “revolução
copernicana” ao interpretar o conflito histórico entre capital e trabalho:
primeiro vem o sujeito operário e suas lutas, depois o capital e seu
desenvolvimento; portanto, ao partido cabe a tática, ao movimento trabalhista a
estratégia, justamente o que numa das passagens mais famosas e cheias de
consequências ele chamou de “estratégia de recusa”.” E, quando, a partir dos
anos 70, a classe operária entra em crise e progressivamente desaparece, ele
não interpreta isto como uma derrota, com a convicção de que o conflito de
classe não desaparece, mas se desloca. Porque a luta dos pobres é constitutiva
da história, desde a fundação do mundo.
Nos
últimos anos de sua vida, Tronti começa a refletir sobre
espiritualidade e se aproxima de Jesus, como evento espiritual e político
fundamental para sustentar a recusa da lógica que governa o mundo. Não se trata
de uma conversão tradicional ao cristianismo, mas, como na biografia de Simone Weil, da aceitação
de Jesus de Nazaré, como único antidoto ao capitalismo, entendido não como
um sistema econômico mas como “vertiginosa construção antropológica”, uma força
que “corrompe os espíritos, mina a capacidade de discernir o bem do mal”, um sistema
que se opõe radicalmente ao bem, à verdade e à beleza.” Trata-se de se colocar
na história humana em companhia de Jesus. Acolhendo a sua palavra e imitando a
sua praxe.
Tronti tem
duas mensagens proféticas, uma para os marxistas e outra para
as Igrejas. Aos marxistas diz que foi um erro recusar a dimensão da
espiritualidade como se fosse incompatível com a luta política e
a crítica ao capitalismo. E aos cristãos diz que uma cristologia da
história, além da redução de Jesus ao âmbito religioso, é indispensável para
enfrentar a crise das Igrejas, que, também neste
caso, é parte constitutiva da crise do Ocidente.
Tronti,
fascinado pelo evento messiânico de Jesus, nos convida a reconhecer, além
das dialéticas e das doutrinas, a centralidade antropológica, teológica e
política dos corpos dos crucificados de toda história humana. A política tem
sentido só se acompanha os corpos, a concretude da vida, a dor, o cansaço, a
alegria. E os corpos se confundem com os territórios. São corpo social,
político, coletivo, e é neste corpo que se processa o conflito. Corpos onde se
entrelaçam fragilidade, desventura e esperança de vida em plenitude. Corpo como
única arma dos desarmados contra a violência dos poderes deste mundo,
corpo atravessado pela dor, pelo abandono e pela experiência do silêncio de
Deus. Corpos violados de mulheres indígenas e
negras.
Corpos ameaçados e violentados dos povos
originários, quilombolas e camponeses de todas as vias campesinas.
Corpos e territórios como barricadas contra o avanço do projeto colonizador,
que nunca para. Corpos que gritam, que duvidam, mas que também esperam. Corpos
dos que caminham, dos que resistem e lutam, dos que sofrem e dos que anunciam
que o Reinado de Jesus está presente e um outro mundo é possível. Corpos lugar
da fé, de encantados e encantadas, orixás e ancestrais. Corpo e Sangue
de Jesus Messias, companheiro da caminhada, para enfrentar o Templo,
o Palácio, o Mercado e o Quartel.
Fonte:
IHU

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