Tesouros
guardados
Era um
domingo lento, desses em que as horas parecem se alongar. A conversa na sala
girava em torno de relógios antigos, sem corda, ocupando espaço em gavetas. O
neto perguntou se não seria melhor dar fim àqueles ponteiros parados, vendê-los
ou doar a um relojoeiro. A avó apenas sorriu, como quem já tinha a resposta, e
trouxe uma caixa de joias gasta pelo tempo, rangendo ao abrir-se como um
segredo.
Dentro,
havia um universo de pequenos fragmentos: moedas que nada comprariam,
bijuterias com pedras soltas, presilhas de festas familiares, anéis com
zircônias faltando. Cada peça trazia uma história. O relógio era presente de
formatura, a presilha brilhou em um baile, a moeda fora dada pelo pai como
amuleto. O gesto da avó não era oferecer objetos, mas memórias. O neto
percebeu: não se tratava de herança em dinheiro, mas de afeto.
Surge,
então, o dilema: o que vale mais, o preço de mercado ou o peso emocional? Como
medir o sorriso de quem se vê transportado para outra época ao tocar um objeto
banal? Para um avaliador, seriam quinquilharias. Mas o valor não se mede em
catálogos de leilão. Guardar pode ser resistência silenciosa à lógica
capitalista que descarta o que não gera lucro. É afirmar: “isso é meu tesouro,
ainda que ninguém o queira”.
Guy
Debord (1998) já alertava que o espetáculo transforma experiências em imagens e
mercadorias. A nostalgia, nesse cenário, é vendida em camisetas retrô e
brinquedos relançados. Mas segurar a moeda do avô não é consumir um produto, é
reviver uma memória única, não escalável. A avó talvez não pensasse em crítica
social, mas ao valorizar o que não tinha preço, realizava um gesto de recusa ao
mercado. Quem olhasse de fora diria: “isso não vale nada!”. Certo no dinheiro,
errado no valor.
O neto
viu a contradição: as mesmas mãos que guardam presilhas sem valor podem desejar
vitrines da nostalgia fabricada. Mas quando o tesouro é íntimo, uma pedra
plástica mal colada, nenhum mercado o traduz. Ali existe memória, não
mercadoria. E memória, neste caso, não se vende. O curioso é que, ao
revisitarmos lembranças, o passado se tinge de rosa. Tudo parece mais feliz,
quase perfeito. Mas será que foi mesmo?
Ao
idealizar, corremos o risco de apagar dores e desigualdades. Guardar é também
escolher: lembrar e esquecer. Essa memória seletiva dá conforto, mas mascara
realidades incômodas. E o sistema sabe explorar a armadilha, vendendo passados
polidos, relançando brinquedos com edições de colecionador, apagando contextos
difíceis. Ao consumir esse passado fabricado, arriscamo-nos a alienar-nos,
presos a uma nostalgia confortável demais.
A caixa
da avó, símbolo privado de resistência, revela esse embate: guardar torna-se um
gesto político, um vínculo não mediado pelo consumo. Cada memória, cada
relíquia ali contida é como a Gota do Príncipe Rupert, aparentemente resistente
e impenetrável, capaz de suportar pressões externas graças a tensões internas
cuidadosamente mantidas. Mas, tal como a gota, esse equilíbrio é frágil: um
toque errado, um atrito intenso, e tudo pode ruir em milhares de fragmentos,
transformando tesouros em pó.
Quando
essas práticas pessoais são expostas às redes sociais ou inseridas no mercado
da memória, o efeito se potencializa: coleções se tornam conteúdo, objetos se
transformam em posts, lembranças passam a ser acumuláveis, compartilháveis,
comercializáveis e a delicada resistência do íntimo corre risco de se
despedaçar.
O valor
sentimental desafia a lógica capitalista. Objetos usualmente considerados
“inúteis”, como uma carta, uma pulseira quebrada, um ingresso antigo, só têm
valor no universo de quem os carrega. Para o mercado, esses itens valem tão
pouco que seriam descartados sem culpa. O capitalismo tenta quantificar tudo,
licenciar, relançar, transformar até a saudade em produto. Réplicas de
brinquedos antigos, séries ressuscitadas, coleções de fotos vintage negociam
nostalgia. A cada novo produto, a memória vira mercadoria e o afeto,
matéria-prima do lucro.
Por
outro lado, cada pessoa, ao guardar, redefine valor: escolhe um vínculo
subjetivo em detrimento do preço objetivo. Não raro, guardar é subverter:
recusar a equivalência mercantil e criar outra balança, em que recordação e
significado são inegociáveis.
O
prazer da nostalgia atua como distração e anestesia. Recuperar o passado demais
pode impedir de imaginar um futuro diferente e, mais grave, mascara as dores
reais do passado: racismo, desigualdades, sofrimentos silenciados. O
capitalismo se alimenta desse conforto emotivo, pois ele desvia do incômodo e
paralisa o impulso por mudanças. Uma infância idealizada, uma sociedade
“melhor” e antiga vendidas em campanhas apagam as fissuras do passado, tornadas
invisíveis pelo filtro nostálgico.
O risco
é alienar-se, perder capacidade de questionar. Quando o passado é idealizado,
ficamos cegos à necessidade de reelaboração histórica e o mercado perpetua esse
ciclo, oferecendo emoções prontas, embaladas em coisas.
Vivemos
uma era do efêmero. O que será tesouro para as próximas gerações? Com
celulares, fotos digitais, músicas em streaming, ingressos virtuais, o conceito
de relíquia se fragmenta. Tudo se esvai: arquivos são deletados, mídias ficam
obsoletas, conversas somem. O futuro das caixas de lembrança talvez seja um
backup, uma selfie, um print e até a chave de bitcoin, que se tornará amuleto
simbólico.
O valor
escapa da materialidade e se torna experiência digital. Se antes um objeto
físico era relíquia, hoje pode ser um arquivo salvo, uma mensagem pinada. O
desafio: como lidar com o excesso material e a infinitude digital, sem
desvalorizar o que nos constitui?
Ecléa
Bosi ensina que memória não é acervo de fatos, mas ponte entre corpo e
experiência. O passado não desaparece, apenas se transforma e ecoa de
diferentes modos no presente. Quando guardamos, estabelecemos laços: entre o
que fomos, o que somos e aquilo que podemos ser. Essa elaboração é vital para
que a memória seja criativa, produtiva, e não apenas um arquivo morto.
No
entanto, vivemos na contramão, fotografamos compulsivamente, registramos tudo,
mas raramente revisamos. O risco é transformar lembrança em dado, saturar a
memória até esvaziá-la. Cultivar práticas de revisitação, organização e diálogo
é o caminho para que guardar não se torne prisão ou acúmulo, mas processo ativo
de construção de sentido.
A
nuvem, o HD externo, o backup digital passam a reproduzir a função tradicional
das caixas de recordação. Guardamos selfies, conversas, músicas, vídeos num
espaço infinito. Mas, diferentemente do objeto físico, a facilidade digital
pode esvaziar significado. É preciso curadoria, vontade, intenção para que o
armazenamento virtual se torne ritual: separar o que importa, nomear arquivos,
contar histórias associadas às imagens. Se a caixa digital for só acúmulo, vira
depósito; se for escolhida e ritualizada, pode perpetuar vínculos tão fortes
quanto uma carta manuscrita.
Nostalgia
toca profundamente porque conecta, conforta, arranca do presente instável o
solo de emoções passadas. Psicólogos argumentam que, em tempos de crise,
revisitamos memórias para reafirmar identidade, encontrar estabilidade.
Entretanto, excesso de nostalgia pode virar fuga. Em vez de impulsionar
mudanças, cristalizamos a vontade de volta, de repetição. O mercado, atento,
explora esse desejo fabricando memórias polidas e rebaixando experiências
genuínas à lógica do consumo.
O
desafio psicológico é usar a nostalgia como ponte e não como cela: uma
experiência de contato, não de repetição cega. Só assim podemos evitar que o
tempo vire mercadoria e a saudade, paralisia.
Bosi
chama de “memória-hábito” a prática de atribuir um sentido explicativo aos
objetos: guardar e, ao revisitar, reinterpretar. No mundo digital, esse hábito
corre perigo: objetos físicos trazem texturas, cheiros, marcas do tempo e
gestos que produzem história, enquanto arquivos virtuais são idênticos,
reprodutíveis, assépticos. Ritualizar o digital é caminho de resistência: criar
pastas temáticas, escolher fotos, narrar memórias em legendas, construir
narrativas ao invés de apenas acumular capturas de tela.
A
memória-hábito só se perpetua se for ativa, se houver curadoria e
compartilhamento. Afasta-se o automatismo dos algoritmos, aproximando-se da
criação intencional do sentido. Latour alerta que objetos não são neutros:
guardá-los exige responsabilidade, manutenção, espaço físico e emocional.
Quem
acumula é transformado por aquilo que guarda. Guardar pode trazer orgulho, mas
também culpa, dor, sobrecarga. Em excesso, vira prisão, a vida corre o risco de
virar museu, e a lembrança, fardo. O guardião deixa de ser apenas protetor,
passa a ser alvo dos próprios afetos. Selecionar e deixar ir não é traição ao
passado, mas sinal de maturidade. A memória deve iluminar o presente, não
sufocar.
O
desafio ético é aprender a modular: o que nos serve, o que nos prende, o que
fortalece e o que pesa. Guardar deve ser gesto de vida, não de imobilidade. O
que resta quando abrimos nossas caixinhas? Guardar tesouros íntimos é mais do
que colecionar objetos desprovidos de valor material. É processo de
autodefinição: cada caixa ajuda a construir quem somos, onde estivemos, com
quem nos importamos. Guardar é afirmar, aquele fragmento do passado tem valor
inegociável, mesmo quando não é medido externamente.
A
memória, ao ser cultivada, tece continuidade: o fio entre o passado que nos
formou e o presente que nos desafia. Guardar é traçar um mapa afetivo, entender
de onde viemos para saber quem somos. Contudo, o excesso de lembranças pode
aprisionar. Cada objeto exige atenção, e a vida corre o risco de se transformar
em museu de si mesma. Quantos não se veem cercados por caixas sem fim,
incapazes de se desfazer de nada, transformando a memória em fardo?
Bruno
Latour nos mostra que os objetos agem sobre nós: podem acolher ou oprimir. Por
isso, guardar exige equilíbrio. Selecionar, deixar ir, não é trair o passado,
mas reconhecê-lo sem prisão. A memória deve iluminar o presente, não sufocá-lo.
O
protetor de relíquias precisa cuidar não apenas dos objetos, mas de si. Se a
memória vira peso, perde sua função vital. Guardar deve ser gesto de vida, não
de paralisia. Ao longo da partilha entre avó e neto, vemos que as caixinhas de
lembrança não são depósitos, mas espelhos de identidade. Cada moeda, cada anel,
cada presilha sussurra: “isso fez parte de mim”. Guardar é gesto de
autodefinição, de marcar quem somos.
A
memória, contudo, não é apenas individual: estabelece continuidade. Ao guardar,
conectamos passado e presente, construímos um fio que nos orienta. O neto, ao
ouvir a avó, não recebeu só objetos, mas um legado simbólico. A caixa tornou-se
deles, ponte entre gerações. A memória, assim, é diálogo. Mas o tempo não poupa
nada. Objetos se desgastam, fotos desbotam, arquivos corrompem. Guardar é gesto
contra a impermanência, tentativa de fixar o que escapa.
Talvez
seja esse o motivo do apego: sabemos que somos finitos, e guardar é resistir ao
esquecimento. Mas não é energia perdida: é afirmação de vida. Guardar não é
congelar, é lembrar que estivemos aqui. E há também o cuidado: polir uma joia,
organizar uma caixa, salvar uma foto em pasta especial. Esses gestos fortalecem
vínculos e projetam nossa história. Quando partilhados, ganham ainda mais
força: não guardamos só para nós, mas para quem, um dia, abrirá e ouvirá as
histórias.
No fim,
guardar tesouros sem valor monetário é ato profundamente humano. É resistência
contra a lógica que tudo mede em dinheiro, é escolha por aquilo que não se
troca nem se vende. É exercício de identidade, continuidade, cuidado e
partilha. O risco é o excesso, a nostalgia paralisante ou a mercantilização do
íntimo. Mas o gesto em si, quando consciente, é sempre ato de amor.
Talvez
seja isso que a avó quis ensinar ao abrir sua caixa: mais que coisas, guardamos
vínculos. Enquanto houver quem abra a caixa e conte a história, nenhuma
lembrança estará perdida.
Fonte:
Por Lucas Silva Pamio, em A Terra é Redonda

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