terça-feira, 30 de setembro de 2025

Tesouros guardados

Era um domingo lento, desses em que as horas parecem se alongar. A conversa na sala girava em torno de relógios antigos, sem corda, ocupando espaço em gavetas. O neto perguntou se não seria melhor dar fim àqueles ponteiros parados, vendê-los ou doar a um relojoeiro. A avó apenas sorriu, como quem já tinha a resposta, e trouxe uma caixa de joias gasta pelo tempo, rangendo ao abrir-se como um segredo.

Dentro, havia um universo de pequenos fragmentos: moedas que nada comprariam, bijuterias com pedras soltas, presilhas de festas familiares, anéis com zircônias faltando. Cada peça trazia uma história. O relógio era presente de formatura, a presilha brilhou em um baile, a moeda fora dada pelo pai como amuleto. O gesto da avó não era oferecer objetos, mas memórias. O neto percebeu: não se tratava de herança em dinheiro, mas de afeto.

Surge, então, o dilema: o que vale mais, o preço de mercado ou o peso emocional? Como medir o sorriso de quem se vê transportado para outra época ao tocar um objeto banal? Para um avaliador, seriam quinquilharias. Mas o valor não se mede em catálogos de leilão. Guardar pode ser resistência silenciosa à lógica capitalista que descarta o que não gera lucro. É afirmar: “isso é meu tesouro, ainda que ninguém o queira”.

Guy Debord (1998) já alertava que o espetáculo transforma experiências em imagens e mercadorias. A nostalgia, nesse cenário, é vendida em camisetas retrô e brinquedos relançados. Mas segurar a moeda do avô não é consumir um produto, é reviver uma memória única, não escalável. A avó talvez não pensasse em crítica social, mas ao valorizar o que não tinha preço, realizava um gesto de recusa ao mercado. Quem olhasse de fora diria: “isso não vale nada!”. Certo no dinheiro, errado no valor.

O neto viu a contradição: as mesmas mãos que guardam presilhas sem valor podem desejar vitrines da nostalgia fabricada. Mas quando o tesouro é íntimo, uma pedra plástica mal colada, nenhum mercado o traduz. Ali existe memória, não mercadoria. E memória, neste caso, não se vende. O curioso é que, ao revisitarmos lembranças, o passado se tinge de rosa. Tudo parece mais feliz, quase perfeito. Mas será que foi mesmo?

Ao idealizar, corremos o risco de apagar dores e desigualdades. Guardar é também escolher: lembrar e esquecer. Essa memória seletiva dá conforto, mas mascara realidades incômodas. E o sistema sabe explorar a armadilha, vendendo passados polidos, relançando brinquedos com edições de colecionador, apagando contextos difíceis. Ao consumir esse passado fabricado, arriscamo-nos a alienar-nos, presos a uma nostalgia confortável demais.

A caixa da avó, símbolo privado de resistência, revela esse embate: guardar torna-se um gesto político, um vínculo não mediado pelo consumo. Cada memória, cada relíquia ali contida é como a Gota do Príncipe Rupert, aparentemente resistente e impenetrável, capaz de suportar pressões externas graças a tensões internas cuidadosamente mantidas. Mas, tal como a gota, esse equilíbrio é frágil: um toque errado, um atrito intenso, e tudo pode ruir em milhares de fragmentos, transformando tesouros em pó.

Quando essas práticas pessoais são expostas às redes sociais ou inseridas no mercado da memória, o efeito se potencializa: coleções se tornam conteúdo, objetos se transformam em posts, lembranças passam a ser acumuláveis, compartilháveis, comercializáveis e a delicada resistência do íntimo corre risco de se despedaçar.

O valor sentimental desafia a lógica capitalista. Objetos usualmente considerados “inúteis”, como uma carta, uma pulseira quebrada, um ingresso antigo, só têm valor no universo de quem os carrega. Para o mercado, esses itens valem tão pouco que seriam descartados sem culpa. O capitalismo tenta quantificar tudo, licenciar, relançar, transformar até a saudade em produto. Réplicas de brinquedos antigos, séries ressuscitadas, coleções de fotos vintage negociam nostalgia. A cada novo produto, a memória vira mercadoria e o afeto, matéria-prima do lucro.

Por outro lado, cada pessoa, ao guardar, redefine valor: escolhe um vínculo subjetivo em detrimento do preço objetivo. Não raro, guardar é subverter: recusar a equivalência mercantil e criar outra balança, em que recordação e significado são inegociáveis.

O prazer da nostalgia atua como distração e anestesia. Recuperar o passado demais pode impedir de imaginar um futuro diferente e, mais grave, mascara as dores reais do passado: racismo, desigualdades, sofrimentos silenciados. O capitalismo se alimenta desse conforto emotivo, pois ele desvia do incômodo e paralisa o impulso por mudanças. Uma infância idealizada, uma sociedade “melhor” e antiga vendidas em campanhas apagam as fissuras do passado, tornadas invisíveis pelo filtro nostálgico.

O risco é alienar-se, perder capacidade de questionar. Quando o passado é idealizado, ficamos cegos à necessidade de reelaboração histórica e o mercado perpetua esse ciclo, oferecendo emoções prontas, embaladas em coisas.

Vivemos uma era do efêmero. O que será tesouro para as próximas gerações? Com celulares, fotos digitais, músicas em streaming, ingressos virtuais, o conceito de relíquia se fragmenta. Tudo se esvai: arquivos são deletados, mídias ficam obsoletas, conversas somem. O futuro das caixas de lembrança talvez seja um backup, uma selfie, um print e até a chave de bitcoin, que se tornará amuleto simbólico.

O valor escapa da materialidade e se torna experiência digital. Se antes um objeto físico era relíquia, hoje pode ser um arquivo salvo, uma mensagem pinada. O desafio: como lidar com o excesso material e a infinitude digital, sem desvalorizar o que nos constitui?

Ecléa Bosi ensina que memória não é acervo de fatos, mas ponte entre corpo e experiência. O passado não desaparece, apenas se transforma e ecoa de diferentes modos no presente. Quando guardamos, estabelecemos laços: entre o que fomos, o que somos e aquilo que podemos ser. Essa elaboração é vital para que a memória seja criativa, produtiva, e não apenas um arquivo morto.

No entanto, vivemos na contramão, fotografamos compulsivamente, registramos tudo, mas raramente revisamos. O risco é transformar lembrança em dado, saturar a memória até esvaziá-la. Cultivar práticas de revisitação, organização e diálogo é o caminho para que guardar não se torne prisão ou acúmulo, mas processo ativo de construção de sentido.

A nuvem, o HD externo, o backup digital passam a reproduzir a função tradicional das caixas de recordação. Guardamos selfies, conversas, músicas, vídeos num espaço infinito. Mas, diferentemente do objeto físico, a facilidade digital pode esvaziar significado. É preciso curadoria, vontade, intenção para que o armazenamento virtual se torne ritual: separar o que importa, nomear arquivos, contar histórias associadas às imagens. Se a caixa digital for só acúmulo, vira depósito; se for escolhida e ritualizada, pode perpetuar vínculos tão fortes quanto uma carta manuscrita.

Nostalgia toca profundamente porque conecta, conforta, arranca do presente instável o solo de emoções passadas. Psicólogos argumentam que, em tempos de crise, revisitamos memórias para reafirmar identidade, encontrar estabilidade. Entretanto, excesso de nostalgia pode virar fuga. Em vez de impulsionar mudanças, cristalizamos a vontade de volta, de repetição. O mercado, atento, explora esse desejo fabricando memórias polidas e rebaixando experiências genuínas à lógica do consumo.

O desafio psicológico é usar a nostalgia como ponte e não como cela: uma experiência de contato, não de repetição cega. Só assim podemos evitar que o tempo vire mercadoria e a saudade, paralisia.

Bosi chama de “memória-hábito” a prática de atribuir um sentido explicativo aos objetos: guardar e, ao revisitar, reinterpretar. No mundo digital, esse hábito corre perigo: objetos físicos trazem texturas, cheiros, marcas do tempo e gestos que produzem história, enquanto arquivos virtuais são idênticos, reprodutíveis, assépticos. Ritualizar o digital é caminho de resistência: criar pastas temáticas, escolher fotos, narrar memórias em legendas, construir narrativas ao invés de apenas acumular capturas de tela.

A memória-hábito só se perpetua se for ativa, se houver curadoria e compartilhamento. Afasta-se o automatismo dos algoritmos, aproximando-se da criação intencional do sentido. Latour alerta que objetos não são neutros: guardá-los exige responsabilidade, manutenção, espaço físico e emocional.

Quem acumula é transformado por aquilo que guarda. Guardar pode trazer orgulho, mas também culpa, dor, sobrecarga. Em excesso, vira prisão, a vida corre o risco de virar museu, e a lembrança, fardo. O guardião deixa de ser apenas protetor, passa a ser alvo dos próprios afetos. Selecionar e deixar ir não é traição ao passado, mas sinal de maturidade. A memória deve iluminar o presente, não sufocar.

O desafio ético é aprender a modular: o que nos serve, o que nos prende, o que fortalece e o que pesa. Guardar deve ser gesto de vida, não de imobilidade. O que resta quando abrimos nossas caixinhas? Guardar tesouros íntimos é mais do que colecionar objetos desprovidos de valor material. É processo de autodefinição: cada caixa ajuda a construir quem somos, onde estivemos, com quem nos importamos. Guardar é afirmar, aquele fragmento do passado tem valor inegociável, mesmo quando não é medido externamente.

A memória, ao ser cultivada, tece continuidade: o fio entre o passado que nos formou e o presente que nos desafia. Guardar é traçar um mapa afetivo, entender de onde viemos para saber quem somos. Contudo, o excesso de lembranças pode aprisionar. Cada objeto exige atenção, e a vida corre o risco de se transformar em museu de si mesma. Quantos não se veem cercados por caixas sem fim, incapazes de se desfazer de nada, transformando a memória em fardo?

Bruno Latour nos mostra que os objetos agem sobre nós: podem acolher ou oprimir. Por isso, guardar exige equilíbrio. Selecionar, deixar ir, não é trair o passado, mas reconhecê-lo sem prisão. A memória deve iluminar o presente, não sufocá-lo.

O protetor de relíquias precisa cuidar não apenas dos objetos, mas de si. Se a memória vira peso, perde sua função vital. Guardar deve ser gesto de vida, não de paralisia. Ao longo da partilha entre avó e neto, vemos que as caixinhas de lembrança não são depósitos, mas espelhos de identidade. Cada moeda, cada anel, cada presilha sussurra: “isso fez parte de mim”. Guardar é gesto de autodefinição, de marcar quem somos.

A memória, contudo, não é apenas individual: estabelece continuidade. Ao guardar, conectamos passado e presente, construímos um fio que nos orienta. O neto, ao ouvir a avó, não recebeu só objetos, mas um legado simbólico. A caixa tornou-se deles, ponte entre gerações. A memória, assim, é diálogo. Mas o tempo não poupa nada. Objetos se desgastam, fotos desbotam, arquivos corrompem. Guardar é gesto contra a impermanência, tentativa de fixar o que escapa.

Talvez seja esse o motivo do apego: sabemos que somos finitos, e guardar é resistir ao esquecimento. Mas não é energia perdida: é afirmação de vida. Guardar não é congelar, é lembrar que estivemos aqui. E há também o cuidado: polir uma joia, organizar uma caixa, salvar uma foto em pasta especial. Esses gestos fortalecem vínculos e projetam nossa história. Quando partilhados, ganham ainda mais força: não guardamos só para nós, mas para quem, um dia, abrirá e ouvirá as histórias.

No fim, guardar tesouros sem valor monetário é ato profundamente humano. É resistência contra a lógica que tudo mede em dinheiro, é escolha por aquilo que não se troca nem se vende. É exercício de identidade, continuidade, cuidado e partilha. O risco é o excesso, a nostalgia paralisante ou a mercantilização do íntimo. Mas o gesto em si, quando consciente, é sempre ato de amor.

Talvez seja isso que a avó quis ensinar ao abrir sua caixa: mais que coisas, guardamos vínculos. Enquanto houver quem abra a caixa e conte a história, nenhuma lembrança estará perdida.

 

Fonte: Por Lucas Silva Pamio, em A Terra é Redonda

 

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