segunda-feira, 29 de setembro de 2025

ESTE CASO NÃO É ISOLADO: Proteger a JBS Aves inicia o desmonte ao combate ao trabalho escravo

Na semana passada, o ministro do Trabalho e Emprego avocou para si a competência da autuação da JBS Aves e suspendeu a entrada da empresa no Cadastro de Empregadores, a Lista Suja do Trabalho Escravo, após fiscalização com a participação do Ministério Público do Trabalho e de auditores fiscais do trabalho resgatar dez trabalhadores de situação análoga à de escravidão na coleta de frangos em granjas fornecedoras da empresa, em abril desse ano, incluindo condições degradantes, jornadas exaustivas de até 16 horas diárias, servidão por dívida e trabalho forçado.

A avocação pelo ministro do Trabalho e Emprego expõe uma ferida profunda no Estado de Direito: a captura do devido processo legal pelo poder econômico. O episódio não é apenas mais um caso de interferência política – é o sintoma de um sistema que protege grandes corporações enquanto abandona trabalhadores à própria sorte.

Em setembro, a Consultoria Jurídica do Ministério do Trabalho emitiu parecer revelador. Ao justificar a avocação, não invocou questões técnicas ou jurídicas, mas explicitamente citou o “impacto econômico” e os “possíveis desdobramentos internacionais” da punição à JBS Aves. Em outras palavras: a empresa é grande demais para ser punida.

A Conjur/MTE justifica o injustificável como se fosse possível revestir de legalidade a subversão dos princípios fundamentais da fiscalização trabalhista. Fala-se em “reavaliação estratégica” quando se pratica interferência política. Menciona-se “segurança jurídica” ao criar insegurança para trabalhadores.

Este raciocínio perverte a lógica do direito do trabalho. Justamente as grandes corporações, com maior capacidade de cumprir a lei, receberiam tratamento privilegiado quando flagradas em violações gravíssimas.

A Convenção 81 da OIT, ratificada pelo Brasil, não deixa margem para interpretações: a fiscalização trabalhista deve ser independente de influências políticas. Não é

recomendação – é obrigação jurídica. Quando o Ministro avoca processos baseados em cálculos políticos e econômicos, viola frontalmente esse tratado internacional.

A contradição normativa se evidencia na tensão entre os compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro em matéria de direitos humanos e trabalho digno e a prática administrativa que permite tratamento diferenciado baseado na relevância econômica do autuado. Tal dicotomia compromete a credibilidade do Brasil perante os mecanismos internacionais de monitoramento, uma vez que a aplicação das sanções administrativas passa a ser mediada por considerações políticas e econômicas que relativizam a gravidade das violações a direitos humanos.

O Supremo Tribunal Federal já enfrentou situação similar na ADPF 489/DF. Na ocasião, a relatora foi categórica: condicionar decisões técnicas sobre trabalho escravo à vontade política de ministros enfraquece toda a estrutura de combate a essa prática. O STF compreendeu o óbvio: quando a política se sobrepõe à técnica em matéria de direitos fundamentais, a proteção se torna ficção.

A avocação ministerial cria sistema dual de justiça administrativa. Pequenos empregadores enfrentam o rigor da fiscalização técnica. Grandes corporações acedem à instância política, onde considerações econômicas pesam mais que a dignidade humana. É a institucionalização da desigualdade perante a lei.

O argumento da “relevância econômica” esconde escolha política clara: priorizar interesses corporativos sobre direitos trabalhistas. Aceitar que empresas poderosas merecem tratamento diferenciado é admitir que o Estado brasileiro se curva ao capital, mesmo quando este escraviza.

Auditores fiscais do trabalho, servidores concursados e tecnicamente preparados, identificaram indícios robustos de trabalho escravo. Seu trabalho, construído com independência técnica garantida por lei e tratados internacionais, sofre ameaça por decisão política baseada em “repercussões econômicas”. Que mensagem isso envia aos fiscais que arriscam suas vidas combatendo o trabalho escravo em fazendas e fábricas Brasil afora?

Este caso não é isolado. É parte de processo sistemático de enfraquecimento das instituições de proteção trabalhista. Quando o combate ao trabalho escravo se subordina a cálculos políticos e econômicos, abandonamos qualquer pretensão civilizatória.

A questão transcende o caso JBS Aves. Trata-se de definir se o Estado de Direito e a Lei vale para todos ou se o poder econômico pode subverter a legislação e adquirir impunidade.

A resposta do sistema jurídico e político a este caso definirá o futuro do combate ao trabalho escravo no Brasil. Aceitar a avocação política é legitimar a ruptura do Estado de Direito. É dizer aos trabalhadores que sua dignidade vale menos que a imagem das grandes empresas.

Quando permitimos que o poder econômico determine a aplicação da lei, não perdemos apenas embates jurídicos, perdemos a própria possibilidade de justiça.

•        Povo Kayapó protesta contra indicado de Zequinha Marinho para saúde indígena

DEZENAS DE INDÍGENAS do povo Kayapó ocuparam, na manhã desta sexta-feira (26), a sede do DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Kayapó do Pará, em Redenção, no sul do estado. Eles protestam contra a nomeação do advogado Casimiro Júnior Marinho Aguiar como coordenador do órgão, publicada no Diário Oficial da União na quinta-feira (25).

Casimiro é irmão de Lázaro Marinho, que chefiou o mesmo DSEI entre 2017 e 2020 e foi exonerado após protestos indígenas. Ambos são parentes do senador Zequinha Marinho (Podemos-PA), que foi derrotado na disputa para o governo do Pará em 2022 com apoio do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

“A nossa indignação é que não foi respeitado o protocolo de consulta. Os caciques não aceitam a família Marinho na gestão indígena”, afirma Baju Kayapó, presidente do Instituto Nhak, que representa 35 caciques.

Os DSEI são vinculados ao Ministério da Saúde e responsáveis pela execução de políticas de saúde aos povos indígenas, como a vacinação, a assistência dentro dos territórios e o transporte de pacientes para atendimento especializado, entre outras funções.

Baju Kayapó acusa Casimiro de atuar por “interesse próprio” e afirma que ele “nunca foi nas aldeias”. Para o líder, a gestão da saúde indígena é fundamental: “A gente consegue viver sem educação, pois temos nossa cultura e conseguimos avançar, mas não sem saúde. Tem casos que não dá para medicar só com ervas”.

Kokokay Kayapó, filho do cacique Kubey Kayapó, também criticou a escolha em um vídeo postado nas redes sociais. Para ele, a nomeação é mais que um erro político: “O senador Zequinha Marinho, conhecido pela oposição aos nossos direitos, indica quem vai coordenar o DSEI Kayapó do Pará. Isso é uma afronta à nossa vida e à nossa autonomia.”

Ele compara a decisão a “colocar um invasor para guardar a maloca” e lembra o histórico da família Marinho no órgão, quando Lázaro, irmão de Casimiro, comandou o distrito: “A família desse senador deixou marcas de má gestão no DSEI. Nós indígenas temos memória e lembramos do descaso e da precariedade que acompanharam aquela gestão”.

Kokokay reforça que a saúde indígena “não pode ser tratada como moeda de troca”. “Nossa saúde não tem preço e não será negociada. Quem comanda o DSEI precisa ter um compromisso genuíno conosco e não com um político em Brasília. Exigimos que o governo respeite nosso protocolo de consulta e cumpra a promessa de priorizar a vida, e não as negociatas”.

A nomeação de Casimiro Marinho foi assinada pelo ministro da Saúde Alexandre Padilha. Procurada, a pasta não respondeu às críticas dos Kayapó até a publicação.

<><> O que dizem Casimiro e Zequinha Marinho?

O novo coordenador do Dsei, Casimiro Marinho rebate as críticas e afirma que sua nomeação foi resultado de um processo amplo, apoiado por abaixo-assinados de comunidades da região. “Minha nomeação não derivou só do governo federal. Teve toda uma construção”, afirma em entrevista à Repórter Brasil.

Ele se apresenta como “advogado do PT em Redenção”, “de esquerda e filiado ao partido”, e afirma ter experiência na defesa de direitos e em ações sociais. Reconhece o parentesco com o senador bolsonarista, também um dos principais nomes da bancada ruralista. “Se for levar em consideração a questão do parentesco… Cada um constrói sua história”, relativiza.

No dia da nomeação, Zequinha publicou um vídeo em suas redes ao lado do secretário de Assuntos Parlamentares da Secretaria de Relações Institucionais do governo federal, André Ceciliano, e de 26 caciques Kayapó, que foram a Brasília para defender o desmembramento do DSEI Kayapó do Pará e a criação de uma nova unidade em São Félix do Xingu.

Segundo Casimiro, parte dos caciques buscou Zequinha em Brasília por conta própria, sem a intermediação dele. “O indígena não tem malícia de saber se é um político de situação ou oposição. Foram sozinhos reivindicar a divisão do DSEI e Zequinha ajudou a marcar a reunião”, explica.

Apesar de aparecer em reuniões com caciques e falar em defesa da saúde indígena, Zequinha Marinho tem histórico de atuação contrário aos povos originários. Ele já defendeu a exploração econômica de terras indígenas e atuou para retirar restrições de uso em territórios como a TI (Terra Indígena) Ituna-Itatá, abrindo espaço para grileiros e madeireiros.

Também chamou a COP 30 da ONU, que será realizada em Belém, de “ecoterrorismo ambiental” e se alinhou ao bolsonarismo e ao setor ruralista em pautas que fragilizam direitos constitucionais indígenas.

No caso da TI Kayapó, a Polícia Federal aponta que políticos e policiais ligados a esquemas de garimpo ilegal tiveram em Zequinha um aliado: em 2020, Pedro Lima dos Santos, acusado de chefiar a extração e o “esquentamento” de mais de 3 toneladas de ouro ilegais retiradas da terra indígena, relatou ter sido recebido pelo senador em Brasília e o descreveu como “solidário” à causa dos garimpeiros.

Procurado, o senador enviou nota afirmando que atua para “ampliar a cidadania e assegurar mais direitos aos povos indígenas”. Citou duas propostas de sua autoria: a PEC 10/2024, que permite aos indígenas explorar e comercializar sua própria produção, e o PL 2973/2023, que autoriza a outorga de lavra garimpeira em áreas já mineradas. Segundo ele, as medidas buscam fortalecer a autonomia econômica dos povos originários e garantir desenvolvimento sustentável.

O protesto dos Kayapó contra o familiar de Zequinha ocorre em meio a um cenário de décadas de pressão sobre a TI Kayapó, território mais invadido por garimpos ilegais na Amazônia. Entre 2018 e 2022, a área perdeu 13,7 mil hectares de floresta para a mineração irregular.

A atividade é marcada por divisões internas: algumas aldeias resistem, outras permitem a entrada de garimpeiros, que subornam famílias locais. Estudos já apontaram contaminação por mercúrio nos rios e riscos neurológicos para os indígenas.

Policiais civis e militares chegaram a formar uma milícia para controlar garimpos dentro do território. Parte desse ouro abasteceu empresas internacionais, chegando às cadeias de gigantes como Apple, Google, Microsoft e Amazon.

Neste ano, o governo federal concluiu a primeira etapa da desintrusão da TI Kayapó. Foram destruídas 1.384 estruturas ilegais, com prejuízo estimado em R$ 97,3 milhões aos criminosos e redução de 95% no desmatamento. Ainda assim, em entrevista à Repórter Brasil, a coordenadora regional da Funai, O-é Kaiapó Paiakan, alertou que facções criminosas seguem atuando no território e cobrou políticas permanentes.

•        Policiais usam bombas de gás vencidas, jagunços enterram cachorros vivos e violência segue nas retomadas de Caarapó

Os Guarani e Kaiowá interpretam como um aviso macabro a crescente crueldade dos jagunços nos ataques à retomada da Fazenda Ipuitã, área sobreposta à Terra Indígena Guyraroká, em Caarapó (MS). Entre os ataques, os agressores enterraram dois cães vivos. Além disso, os indígenas recolheram cápsulas de bombas de gás vencidas utilizadas pela polícia – artefatos que, em certas circunstâncias, podem causar queimaduras graves na pele, nos olhos e nas mucosas.

De acordo com relatos apurados por uma Comissão de Direitos Humanos que esteve no local nesta quinta-feira (25), a violência contra os indígenas é exercida de forma coordenada entre jagunços, policiais militares da Tropa de Choque, civis do Setor de Investigações Gerais (SIG) e o Departamento de Operações de Fronteira (DOF).

As ações se alternam: ora atacam a área de Guyraroká, ora a de Porto Cambira (Passo Piraju), na TI Dourados-Amambaipeguá III, também em Caarapó. “Estão tentando fazer despejos ilegais, sem mandado judicial. São polícias estaduais e a questão indígena é de instância federal. Será que o Brasil realmente as leis realmente não valem nada?”, declarou indígena Guarani e Kaiowá – as fontes não serão identificadas por questões de segurança.

A Comissão foi integrada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), pelo Comitê Contra os Agrotóxicos e pela Vida de Dourados e pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Conforme a apuração, cerca de 40 soldados deslocam-se em três caminhões. A Força Nacional de Segurança Pública costuma chegar após os ataques, mas sem efetividade ou intervenção que garanta a integridade física dos indígenas.

Em Guyraroká, “destruíram todo o acampamento. Abriram um buraco e enterraram os mantimentos: toda a comida, carne, ferramentas, colchões; queimaram lonas e enterraram dois cachorros vivos. Os indígenas temem que isso represente um experimento: primeiro fazem com os animais, depois com eles”, relata uma integrante da comissão – que não foi identificada por razões de segurança.

A retomada da Fazenda Ipuitã pelos Guarani e Kaiowá sofre ataques sistemáticos desde o início da madrugada desta quinta-feira. Há quatro feridos, entre eles uma mulher grávida de seis meses, que passou mal devido às bombas de gás. O caso mais grave é o de um homem adulto, atingido a queima-roupa por balas de borracha em várias partes do corpo. “Ele se recusa a ir ao hospital devido ao histórico de racismo e de prisões realizadas quando indígenas buscam atendimento”, afirma a fonte.

Os Guarani e Kaiowá seguem criticando a tímida presença do governo federal em iniciativas de proteção ao povo e com encaminhamentos sobre a garantia territorial e a interrupção da pulverização de agrotóxicos, uma das razões da retomada na TI Guyraroká. Em nota, Ministério dos Povos Indígenas (MPI) afirma que acompanha a situação com o seu setor de mediação de conflitos. Durante esta quinta (25), reuniões ocorreram entre indígenas e seus aliados com o MPI, Ministério do Direito Agrário (MDA) e Ministério dos Direitos Humanos (MDH).

<><> Espetacularização da violência

Os Guarani e Kaiowá também denunciam que, nas rádios locais, são constantes os ataques racistas, a incitação à violência contra indígenas e até convites para que a população assista aos ataques “de camarote”.

“Lembra Gaza. Há um local elevado, em Israel, de onde se tornou comum observar os bombardeios (BBC, 2025). É a espetacularização da violência”, comenta a integrante da comissão. Os indígenas afirmam ainda que no local há um cemitério onde parte de seus ancestrais está enterrada.

<><> Denúncias na ONU

Albert K. Barume, relator Especial da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, recebeu um informe nesta quarta-feira (24) sobre a escalada da violência contra os Guarani e Kaiowá da TI Guyraroká. Barume se reuniu com lideranças indígenas e integrantes do Cimi em uma conversa na sede da ONU, em Genebra, onde ocorre a 60a Sessão do Conselho de Direitos Humanos.

O relator se mostrou preocupado com a situação e analisa possibilidades de como sua relatoria pode reagir às flagrantes violações de direitos humanos

Por outro lado, durante o Diálogo Interativo na 60a Sessão do Conselho de Direitos Humanos, Bruno Marcos, integrante do Cimi, se pronunciou denunciando as violações de direitos humanos sofridas pelos Guarani e Kaiowá na TI Guyraroká.

<><> Comunicado à CIDH

A comunidade de Guyraroká e organizações aliadas enviaram apelo urgente à secretária Executiva da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Os indígenas pedem que a Comissão acelere os processos judiciais que envolvam a demarcação da TI Guyraroká: única medida capaz de solucionar definitivamente o conflito e garantir a sobrevivência física e cultural da comunidade.

“Em continuidade à nossa comunicação de 21 de agosto de 2025, os peticionários vêm, com urgência, informar a esta Ilustre Comissão sobre a grave escalada de violência, repressão e criminalização contra a comunidade Guarani e Kaiowá da Terra Indígena Guyraroká, de Caarapó, Mato Grosso do Sul”, diz trecho do documento.

O apelo é uma atualização sobre a situação de violência e violações de direitos na Terra Indígena Guyraroká presentes na Medida Cautelar (MC 458-19), concedida pela CIDH em 29 de setembro de 2019. A medida tem como objeto a TI Guyraroká e visa garantir os direitos à vida e à integridade pessoal dos indígenas.

“A situação de insegurança alimentar, já grave, tende a se agravar com a perda das plantações e a impossibilidade de cultivar em um ambiente envenenado”

Conforme a atualização, “nos últimos dias, a comunidade foi forçada a tomar uma atitude drástica para proteger sua própria sobrevivência, resultando em uma nova onda de repressão estatal e na disseminação de informações falsas com o objetivo de deslegitimar sua luta”. O documento discorre sobre os fatos desdobrados desde domingo ressaltando os objetivos da retomada.

“Os eventos recentes demonstram, de forma inequívoca, a total falha do Estado brasileiro em cumprir suas obrigações de proteger a vida, a integridade e o território da comunidade de Guyraroká. A ausência da Funai durante o ataque, a ação violenta da polícia e a falta de fiscalização sobre o uso de agrotóxicos evidenciam que o Estado não apenas é omisso, mas atua ativamente para perpetuar as violações de direitos”, aponta outro trecho.

A atualização informa que a comunidade segue confinada a uma área diminuta de seu território, cercada pelo agronegócio e sofrendo com a contaminação de suas terras e águas. “A situação de insegurança alimentar, já grave, tende a se agravar com a perda das plantações e a impossibilidade de cultivar em um ambiente envenenado”, conclui.

 

Fonte: Por Luciano Aragão Santos, no Le Monde/Reporter Brasil/Cimi 

 

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