Heather
Stewart: Por que Trump está apoiando a economia thatcherista da Argentina
"Estamos
apoiando-o 100%. Achamos que ele fez um trabalho fantástico. Assim como nós,
ele herdou uma bagunça." Donald Trump deu seu apoio entusiasmado ao
experimento econômico radical de Javier Milei quando os dois se encontraram em
Nova York na semana passada.
Os EUA
se declararam prontos para oferecer mais do que apoio retórico ao presidente
argentino, que empunha uma motosserra, nos próximos dias, enquanto Buenos Aires
está à beira de uma nova crise financeira.
O
secretário do Tesouro dos EUA, Scott Bessent, disse que os EUA estavam
"prontos para fazer o que fosse necessário". Ele sugeriu que o
Federal Reserve (Fed) poderia oferecer a Buenos Aires uma linha de swap de US$
20 bilhões (£ 15 bilhões) – uma ferramenta crucial no combate à crise – ou que
os EUA poderiam até mesmo comprar os títulos do país diretamente.
Os
governos dos EUA já angariaram apoio para governos argentinos no passado – Bill
Clinton era fã das reformas de Carlos Menem na década de 1990, por exemplo. Mas
a prontidão de Trump em intervir diretamente é o exemplo mais recente de sua
determinação em usar ferramentas econômicas para fins políticos: neste caso,
para apoiar um aliado ideológico.
Milei
assumiu o poder há dois anos, em uma onda de frustração e descontentamento com
o status quo econômico.
Assim
como Trump e Boris Johnson, ele evitou as convenções habituais da política e
prometeu destruir o establishment e reconstruir o estado em nome do povo.
Mas,
embora o manual político de Milei possa ecoar o de Trump, com sua adoção do
caos e do showbiz, suas políticas econômicas devem algo a outra radical de
cabelo grande — Margaret Thatcher, a quem o presidente argentino chamou de
"brilhante".
Assim
como os governos Thatcher no Reino Unido, Milei vê a eliminação do dragão da
inflação como uma prioridade absoluta. O desafio na Argentina , no entanto, é de uma magnitude
completamente diferente da Grã-Bretanha dos anos 1980: a taxa de inflação
atingiu o pico de mais de 25% ao mês logo após Milei assumir o poder.
Mas
aspectos de sua abordagem, incluindo um ataque sistemático aos direitos
sindicais, cortes nos gastos públicos e uma onda de privatizações, têm ecos do
thatcherismo.
Apesar
de não ter uma base de poder parlamentar, Milei conseguiu cortar profundamente
as pensões e os salários do setor público – e mais de 48.000 trabalhadores do setor
público perderam seus empregos .
Ele
viajou para a CPAC, a Conferência de Ação Política Conservadora, nos EUA, para
posar no palco ao lado de Elon Musk, que empunhava uma motosserra e cujo
Departamento de Eficiência Governamental (Doge) foi parcialmente inspirado pelo
estilo agressivo de Milei.
As
políticas duras da Argentina receberam elogios do Fundo Monetário Internacional
(FMI), que concedeu uma nova ajuda de US$ 20 bilhões à Argentina em abril.
No
palco das reuniões do FMI em Washington naquele mês, sua diretora-gerente,
Kristalina Georgieva, orgulhosamente prendeu em sua jaqueta verde um pequeno
distintivo prateado em forma de motosserra, entregue a ela pelo ministro da
desregulamentação da Argentina, Federico Sturzenegger.
Mas
embora a “terapia de choque” de Milei possa ter sido aprovada em Washington — e
de fato nos mercados financeiros — a economista e ativista argentina Lucía
Cirmi Obón destaca seu impacto humano.
“As
mudanças macroeconômicas implementadas por Milei não demonstraram – e acredito
que não demonstrarão – qualquer impacto positivo na qualidade de vida das
pessoas. Na prática, o que estamos vendo é uma recessão econômica”, disse ela
ao Guardian.
Os
principais motivos são a queda dos salários reais e a abertura das importações,
que também desmantelou grande parte da indústria nacional. Além disso, houve
cortes no número de pessoas que recebem aposentadoria, no apoio à assistência à
infância e no apoio a pessoas com deficiência que antes recebiam aposentadoria.
Todas as políticas que a população costumava receber do Estado foram reduzidas.
O
desemprego aumentou dois pontos percentuais, mas ela argumenta que também há um
desemprego oculto significativo – com ex-operários de fábrica se aglomerando em
empregos mal remunerados da economia informal, como motorista de Uber, por
exemplo. O endividamento das famílias está aumentando e, como muitas das
ocupações alvo de cortes são dominadas por mulheres, a disparidade salarial
entre gêneros aumentou, desfazendo seis anos de progresso.
Obón
acrescenta que, embora a abordagem de Milei visasse liberar o setor corporativo
e abrir caminho para um crescimento econômico acelerado, o investimento como
parcela do PIB na verdade caiu.
Enquanto
isso, determinado a acabar com a inflação, Milei manteve a ligação do peso ao
dólar – um gatilho para muitas crises na Argentina ao longo dos anos.
Durante
várias décadas, o peso esteve atrelado — dentro de certos limites — ao dólar,
que circula na Argentina como uma moeda alternativa, na qual muitos cidadãos
gostam de guardar suas economias, especialmente em tempos difíceis.
Milei
havia defendido a dolarização total durante a campanha eleitoral – uma política
que deixaria a Argentina sem o direito de definir suas próprias taxas de juros.
Quando chegou ao poder e seus aliados rejeitaram o plano, ele desvalorizou o peso em mais da metade , disposto a
arcar com a inflação resultante na esperança de estimular as exportações.
Mas a
moeda, no entanto, continua sob pressão de venda, exacerbada pela incerteza
política desencadeada quando Milei sofreu uma exibição desastrosa nas eleições
legislativas locais na província de Buenos Aires, que ele próprio chamou de
"batalha de vida ou morte ".
Desde
aquelas eleições locais, e em meio a um crescente clamor por acusações de
corrupção contra a poderosa irmã de Milei, Karina, a liquidação do peso se
acelerou. O banco central queimou mais de US$ 1 bilhão em reservas em uma
semana tentando sustentar a moeda, antes de Bessent anunciar que Washington
estava pronto para intervir.
Além do
sentimento de camaradagem política, alguns especialistas sugerem que a
geopolítica pode ter sido outra motivação para a intervenção de Washington, com
a China se tornando cada vez mais influente na América Latina.
O peso
se recuperou e os mercados se acalmaram após os comentários de Bessent, mas à
medida que os custos da "terapia de choque" aumentam e Milei se
prepara para as cruciais eleições de meio de mandato em outubro, o público
argentino enfrenta um período volátil pela frente.
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Apoio econômico de EUA para Argentina tem como
pré-condição afastamento da China, diz mídia
O apoio
financeiro do governo do presidente dos EUA, Donald Trump, à Argentina,
anunciado na semana passada, sairá mais caro que apenas os juros do empréstimo.
De acordo com reportagem do jornal argentino La Nación, Javier Milei voltou a
Buenos Aires com exigências que o obrigarão a repensar suas estratégias.
No
plano geopolítico, diz a matéria, a
exigência é que a Argentina deixe de "jogar dos dois lados" e se
afastem da influência da China, o que inclui o swap que o Banco Central
argentino mantém com o Banco Popular do gigante asiático.
"É
evidente que eles querem que cancelemos [o swap], mas por enquanto a
solicitação é informal. É preciso ver o que isso significa, em que termos e o
que pode ser implementado para começar a desfazer esse caminho com a
China", disse uma das fontes do jornal.
Analistas
de mercado nos Estados Unidos acreditam que o cancelamento desse acordo pode
ser uma das condições para firmar uma linha de swap com o Tesouro
norte-americano.
A
expectativa do governo Milei é que a ajuda norte-americana, de cerca
de US$ 20 bilhões (R$ 130 bilhões), chegue a tempo para enfrentar os
vencimentos da dívida com os credores em janeiro e julho de 2026, que
somam US$ 8,5 bilhões R$ 45,4 bilhões), segundo o jornal.
Em
junho passado, a Argentina e a China renovaram a parte ativada do swap de
moedas, no equivalente a US$ 5 bilhões (R$ 26,76) até julho de 2026. Os Estados
Unidos podem pedir que esse acordo seja cancelado ou não renovado quando chegar
o momento de renegociá-lo.
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Capacidade de articulação e coligação de Milei preocupa
Fontes
que estiveram em contato com equipes do Tesouro norte-americano e do
Departamento de Estado disseram ao jornal que, em Washington, outra grande
preocupação é que Milei demonstre ser capaz de costurar acordos no
Congresso. Demandam que o governo garanta um rumo que traga previsibilidade
aos investidores e o
pagamento das dívidas do país.
A
composição do Congresso e a capacidade do Poder Executivo de construir
coalizões para consolidar o superávit fiscal e a
redução das regulações comerciais é a maior preocupação das autoridades
estadunidenses em relação a Milei, segundo fontes ouvidas na reportagem, já
que Argentina é um aliado-chave na estratégia de Trump para a América
Latina.
"Embora
o governo de Milei já tivesse iniciado essa guinada política mais “dialoguista”
após a dura derrota que La Libertad Avanza (LLA) sofreu na província de Buenos
Aires, com o prometido resgate de Trump, o país passará a ter os olhos de
Washington acompanhando de perto os desdobramentos internos — uma espécie de
tutela que se somará à do Fundo Monetário Internacional (FMI)", diz um
trecho da matéria.
A pedido de
Washington,
diz a reportagem, relatórios em inglês foram preparados com os cenários de
máxima e mínima sobre como ficará a composição do Congresso a partir de
dezembro, além de perspectivas eleitorais baseadas em pesquisas de opinião.
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Ajuda bilionária a Milei desagrada agricultores
americanos. Por Maria Luiza Falcão Silva
A
decisão de Washington de apoiar a Argentina com uma linha de swap cambial e
outras operações que podem chegar a US$ 20 bilhões vai muito além de uma medida
técnica de estabilização financeira. É um gesto de peso político, sinalizando
apoio explícito ao governo de Javier Milei em meio a uma economia frágil,
inflação persistente e um calendário eleitoral turbulento. Para a Casa Branca,
é um movimento estratégico: sustentar um aliado ideológico na América do Sul,
limitar o avanço da China e garantir alguma previsibilidade na região.
O
anúncio foi feito às margens da 80ª Assembleia Geral das Nações Unidas, após
encontro entre Trump e Milei em Nova York. Ao vincular o pacote de ajuda a esse
palco global, Washington conferiu ao gesto um caráter simbólico: trata-se de um
endosso político, não apenas de um socorro financeiro. Mas, ao mesmo tempo em
que o gesto soa lógico para diplomatas, estrategistas de defesa e agrada aos
mercados, provoca ruídos no coração da economia americana — especialmente entre
agricultores de soja.
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Milei, o agronegócio argentino e a corrida por dólares
Nos
últimos meses, o governo Milei tomou diversas medidas para ampliar o ingresso
de divisas no país. Entre elas, suspendeu temporariamente as alíquotas de
exportação sobre soja, milho e carne — responsáveis por cerca de 45% do
superávit comercial argentino. O objetivo declarado foi gerar uma corrida de
exportadores para aproveitar a janela de isenção, trazendo até US$ 7 bilhões em
vendas externas antes de 31 de outubro. A soja é peça central dessa estratégia:
a Argentina é o maior exportador mundial de farelo e óleo de soja, com a China
como seu principal comprador.
A
lógica é clara: quanto mais dólares entrarem, mais reservas o Banco Central
acumula, mais fácil se torna estabilizar o peso e cumprir metas fiscais
acordadas com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Mas essa engrenagem tem um
efeito colateral: coloca os produtores norte-americanos em desvantagem
competitiva em um mercado global já saturado.
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O desconforto dos produtores de soja dos EUA
A
reação foi imediata. Associações como a American Soybean
Association e políticos do cinturão agrícola, como o senador Chuck Grassley
(Iowa), criticaram o pacote de ajuda. Para eles, os Estados Unidos (EUA) estão
usando recursos públicos para financiar um concorrente direto, justamente num
momento em que os agricultores americanos enfrentam preços deprimidos e tarifas
retaliatórias da China.
O
argumento é direto: se a Argentina consegue exportar soja com alíquota zero e
ainda recebe liquidez em dólares, sua competitividade aumenta, pressionando os
preços internacionais e desviando compras chinesas que poderiam ser atendidas
pelos EUA. Para produtores que já viram as exportações caírem desde a guerra
comercial entre Trump e Pequim, essa é uma provocação difícil de aceitar.
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Críticas internas e o dilema “America First”
As
críticas não se limitam ao campo agrícola. No Senado, vozes como a da senadora
Elizabeth Warren exigiram explicações do Tesouro: “No momento em que muitos
americanos lutam para pagar mantimentos, aluguel e dívidas de cartão de
crédito, é profundamente preocupante que o presidente pretenda usar fundos
emergenciais significativos para inflar o valor da moeda de um governo
estrangeiro e reforçar seus mercados financeiros”, afirmou Warren em carta
oficial.
Mesmo
entre republicanos, o pacote de US$ 20 bilhões gera desconforto, por parecer
contradizer o mantra “America First”. Para estrategistas do partido, é
difícil justificar a eleitores do Meio-Oeste — região que responde pela maior
parte da produção de grãos (milho e soja) do país — o resgate de uma nação
estrangeira que, dias antes, suspendeu impostos de exportação para competir com
os produtores americanos no mercado global.
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Milei como “mini-Trump”: o isolamento do Sul Global
No
fundo, a opção de Milei não é apenas econômica: é profundamente política. Ao se
alinhar de forma automática a Donald Trump, o presidente argentino se coloca na
contramão do que hoje é a agenda majoritária do Sul Global — cooperação em
transição energética, defesa do multilateralismo e busca de autonomia frente
aos blocos hegemônicos. Não é atoa que não quis participar do BRICS.
Milei
aposta na mesma lógica de confrontação e dependência externa que marcou as
décadas de ajuste neoliberal: cortar gastos, dolarizar expectativas e buscar
salvação financeira em Washington. O resultado, por ora, é uma economia em
recessão, com inflação ainda alta, queda do poder de compra da população,
aumento da pobreza e insatisfação crescente.
Ao
posar como “mini-Trump”, Milei transforma a ajuda bilionária em vitrine
política após uma derrota monumental na recente eleição na província de Buenos
Aires — que concentra quase 40 % do eleitorado argentino. A coalizão peronista
liderada pelo governador Axel Kicillof, figura de destaque do
Partido Justicialista e que recentemente lançou o movimento Derecho al
Futuro para renovar o peronismo, obteve cerca de 47 % dos
votos, contra 33 % da coalizão governista La Libertad Avanza. A
retumbante vitória da oposição peronista enfraquece Milei no maior distrito
eleitoral do país e sinaliza perda de apoio popular a seu programa de ajuste e
dolarização que até agora não ofereceu respostas estruturais para os problemas
de emprego, pobreza e desigualdade que corroem a sociedade argentina.
A ajuda
de US$ 20 bilhões a Milei não é apenas um cheque diplomático ou um pacote
financeiro — é um ato de alinhamento político em um momento em que o palco da
ONU expõe, lado a lado, dois projetos de mundo. De um lado, o presidente do
Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, que abriu a Assembleia Geral defendendo
soberania, multilateralismo e uma agenda climática que busca reposicionar o Sul
Global como protagonista. Do outro, Milei, que se apresenta como fiel escudeiro
de Donald Trump, buscando legitimidade sob o guarda-chuva de Washington e
oferecendo, em troca, adesão a uma agenda que reforça dependências históricas.
O
contraste é gritante: Lula tenta engrandecer o papel do Brasil e da América do
Sul na governança global, chamando ao diálogo e à cooperação; Milei se apequena
ao transformar a Assembleia em palco para celebrar um resgate que revela a
fragilidade de seu próprio projeto econômico. Entre engrandecimento e
apequenamento, os líderes sul-americanos mostram ao mundo que há dois caminhos
— e que as escolhas feitas hoje terão impacto duradouro sobre a autonomia, a
estabilidade e o lugar da região no século XXI.
Fonte:
The Guardian/Sputnik Brasil/Brasil 247

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