Como
fim da 2ª Guerra Mundial dividiu a colônia japonesa no Brasil
Baía de
Tóquio, 2 de setembro de 1945: de fraque, cartola e bengala, o ministro das
Relações Exteriores do Japão, Mamoru Shigemitsu, percorre o convés do
encouraçado norte-americano Missouri como se carregasse o Monte Fuji nas costas
e o Monte Kita na alma.
Ao
final do caminho, há uma mesa diante da qual o general Douglas MacArthur,
supremo comandante das Forças Aliadas, aguarda de pé, em uniforme de campanha,
a assinatura da ata de rendição do Japão na Segunda Guerra Mundial.
"Assinar
a declaração de rendição era, para um homem público, o fim de tudo, para um
soldado ou marinheiro virtual suicídio", escreverá Shigemitsu anos mais
tarde.
A
prótese que o ministro carrega desde que perdeu a perna direita num atentado,
há 13 anos, torna a marcha ainda mais dolorosa.
MacArthur
providenciou para que nenhuma cadeira fosse colocada à disposição da delegação
japonesa.
Não é o
único requinte de malícia dos vitoriosos: trazida do Museu da Academia Naval
dos Estados Unidos em Annapolis, Maryland, especialmente para a cerimônia, está
uma das bandeiras da esquadra com a qual o comodoro Matthew Perry obrigou, no
século 19, os shoguns de Tóquio a abrir o mercado japonês a produtos
americanos.
O
combalido Shigemitsu é obrigado a ouvir em pé um pronunciamento de MacArthur e
a firmar a capitulação curvando-se diante do general.
Ao
término da solenidade, cioso do protocolo, o diplomata estende a mão ao
comandante norte-americano, que se recusa a apertá-la.
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Migrantes se negam a reprisar encenação do Missouri
São
Paulo, 19 de julho de 1946: no Palácio dos Campos Elíseos, sede do governo
paulista, o interventor federal José Carlos de Macedo Soares e o embaixador da
Suécia, Ragnar Kumlin, discorrem durante horas sobre a rendição do Japão a mais
de 600 migrantes japoneses e descendentes.
Dez
meses após o fim das hostilidades no Pacífico, a colônia japonesa no Brasil
permanece em pé de guerra, desta vez interna.
De um
lado estão os kachigumi, que não admitem a derrota – e têm apoio ou simpatia de
80% da comunidade —, e, de outro, os makegumi, que aceitam a vitória aliada.
Sociedades
secretas, entre as quais se destaca a Liga do Caminho dos Súditos (Shindo
Renmei), recorrem à intimidação e ao assassinato contra os adversários.
Os
presentes nos Campos Elíseos escutam em silêncio quando o embaixador sueco
chama de "notícias fantásticas" a crença na vitória japonesa e não
esboçam reação quando o interventor acusa membros da comunidade de praticar
"atos de terrorismo" contra patrícios e brasileiros.
Ao
final, Macedo Soares conclama os convidados a assinar a ata da reunião,
enquanto fotógrafos se preparam para registrar a cena.
Serenamente,
um homem calvo ergue a mão e declara que não assinará nenhum documento que
mencione a rendição do Japão.
Ergue-se
em seguida a voz de Sachiko, única cidadã japonesa presente, que diz:
"Nós, japoneses, não acreditamos na derrota do Japão".
A
mulher insiste que, se o interventor deseja acabar com as disputas e o terror
na comunidade, deve "comunicar a vitória do Japão" e suspender a
"propaganda falsa da derrota".
Ansioso
por encarnar MacArthur, Macedo Soares não previu que os migrantes recusariam o
papel de Shigemitsu.
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'Afronta à nação', diz diário do PCB
Os
jornais da capital não perdoam o interventor.
"O
que se passou nos Campos Elíseos transcende as raias da tolerância, da
paciência e da boa vontade", proclama A Gazeta.
"Afronta
à nação o compromisso de Macedo Soares com os fascistas japoneses",
vocifera a Tribuna Popular, órgão paulista do Partido Comunista Brasileiro
(PCB).
Abaixo
da manchete, o diário comunista estampa a foto de Shigemitsu no Missouri, com a
legenda taxativa: "Eis aí o fato que o 'Shindo Remei' e o
clerical-fascista Macedo Soares, que ligou sua sorte à (...) japonesa ignoram:
a rendição incondicional dos militaristas nipônicos".
Desde o
início do século, o Brasil recebeu cerca de meio milhão de migrantes do Japão,
que uniam o profundo apego à terra natal à mais completa ausência de laços com
o país adotivo.
Movia-os,
sobretudo, o desejo de prosperar e voltar para casa.
Ao
desembarcar, enfrentaram preconceitos sintetizados na expressão Perigo Amarelo,
usada desde o século 19 em favor do veto à migração de povos da Ásia.
"Os
asiáticos nunca se aculturam — esta (a proibição da entrada de asiáticos) é uma
decisão que visa ao impedimento do ingresso de moléculas perniciosas segundo a
lei da eugenia e da economia", disse o então presidente da Academia
Nacional de Medicina, Miguel Couto, em apoio a um projeto de lei em discussão
na Câmara dos Deputados.
Nos
anos 1930, acompanhando uma tendência mundial, o Brasil iniciou uma campanha de
nacionalização, que se converteu em política oficial sob a ditadura do Estado
Novo e em ataques aos chamados "súditos do Eixo" durante a guerra.
"O
presidente Getúlio Vargas adotou as primeiras restrições à entrada de migrantes
em 1934", explica Gustavo Taniguti, doutor em Sociologia pela Universidade
de São Paulo (USP).
"Com
o Estado Novo começa a dita política de nacionalização, com a proibição de uso
não apenas de idiomas estrangeiros, mas também indígenas, sendo permitido
somente o português."
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Nacionalização linguística e cultural
Com
jornais, rádios e escolas em língua estrangeira tornados ilegais, a colônia
japonesa foi seriamente afetada já no final dos anos 1930, afirma Taniguti.
Quando
o Brasil declarou guerra ao Eixo, em 1942, o sentimento antinipônico cresceu
entre a população, diz o pesquisador.
Em
1943, o governo federal decidiu expropriar e evacuar toda a população de origem
japonesa do município de Santos (SP), considerado zona de guerra.
Cerca
de 1,5 mil homens, mulheres e crianças residentes no município foram forçados a
se transferir para campos de concentração no interior.
O
internamento de cidadãos do Eixo pelo Brasil teve apoio explícito dos Estados
Unidos, que haviam implementado a mesma medida, afirma Priscila Perazzo,
professora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Municipal
de São Caetano do Sul (USCS).
"O
Brasil não monta campos de concentração porque quer, mas sim por pressão dos
Estados Unidos", diz a doutora em História pela USP.
"Como
o Brasil assume o alinhamento com os Estados Unidos, há uma série de coisas que
o país tem de fazer para dizer que está ao lado dos Aliados, e uma delas é
reprimir esses estrangeiros, os chamados 'súditos do Eixo'."
Citando
a filósofa alemã Hannah Arendt, Priscila afirma que o regime dos campos
comporta três espaços: limbo, purgatório e inferno (em referência à
terminologia cristã para o destino dos pecadores após a morte).
"O
limbo é o internamento de civis, adotado pela primeira vez pelos britânicos
durante a Guerra dos Bôeres, em 1899, na África do Sul. O purgatório são os
campos de trabalho existentes em distintos países na primeira metade do século
20. Já o inferno é a Solução Final dos nazistas", diz a pesquisadora.
Um
programa radiofônico intitulado Este é o nosso inimigo, produzido em 1943 pelo
Estado Novo, foi um entre muitos a apresentar os japoneses sob uma luz infame.
Na
peça, um ator lia declarações atribuídas a porta-vozes do Império do Japão:
"Chegará o dia em que faremos do universo inteiro o nosso domínio.
Chamaremos o nosso poder aos quatro pontos cardeais e cobriremos os oito cantos
do mundo com um único teto".
Em
seguida, o locutor comentava: "Não, isto não é um trecho de um conto de
fadas ou parte de uma página cômica de jornal. Os japoneses de que falamos no
programa de hoje existem. E não há nada de cômico a respeito deles".
Quando
o Brasil entra na guerra, os japoneses já vinham sofrendo havia anos as
consequências do cerceamento a sua cultura e seus laços comunitários, sustenta
Taniguti.
"A
combinação de repressão, isolamento e ausência de contato com o Japão acabou
favorecendo manifestações de extremismo entre grupos de migrantes",
afirma.
Se
antes da rendição japoneses eram suspeitos de espionagem e quinta-colunismo,
depois de 1945 ganharam a pecha de fanáticos e terroristas.
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Uma descoberta casual e com graves consequências
O
estopim foi um episódio ocorrido em Tupã (SP), em 1º de janeiro de 1946.
Ao
averiguar uma denúncia sobre culto à bandeira japonesa em uma chácara, a Força
Pública deteve e submeteu a maus tratos sete migrantes.
O
interrogatório policial revelou que os detidos não davam crédito à notícia da
rendição do Japão.
Sacramentada
no Pacífico, a paz não havia chegado ao Rio do Peixe.
Instaurado
a partir do incidente de Tupã, o inquérito político e criminal contra a Shindo
Renmei tornou-se o maior desse tipo no país.
Foram
presas cerca de 2 mil pessoas e indiciados 30 integrantes da colônia, enquanto
outros 80 tiveram decretada a expulsão do país (que acaba não sendo realizada)
e 180 foram enviados ao Instituto Correcional da Ilha de Anchieta.
O
escândalo da Shindo Renmei coincidiu com o auge da onda antinipônica no Brasil.
Na
Constituinte de 1946, uma emenda que vetava o ingresso de japoneses no Brasil
foi posta em votação pouco mais de um mês depois da reunião nos Campos Elíseos.
O apoio
à medida foi dos eugenistas reunidos em torno do deputado Miguel Couto Filho,
autor do texto, à bancada do PCB.
Com 99
votos favoráveis e 99 contrários, coube ao presidente da assembleia, o mineiro
Fernando Melo Viana, proferir o voto de Minerva em favor dos últimos e sepultar
a ideia.
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Fim do sonho do retorno à pátria
Se a
fixação dos migrantes em solo brasileiro parecia incerta no pós-guerra, a
destruição do Japão ao final do conflito sepultou o longamente acalentado sonho
de retorno.
"A
relação com o país de origem, marcada pela lealdade ao império e pelo forte
nacionalismo, torna compreensível o descrédito na derrota do Japão",
afirma Kelly Yshida, doutora em História pela Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC).
O
abandono da estratégia de migração temporária provocou traumas, explica a
historiadora.
"A
impossibilidade de retorno reforçou a necessidade de adaptação, o que ia contra
o desejo de uma parcela dos migrantes", lembra Kelly.
Um dos
exemplos de que as velhas feridas foram aplacadas, mas não extintas foi o
surgimento do chamado Pelotão de Voluntários das Cerejeiras (Sakuragumi
Teishintai em 1953, em Londrina (PR).
Autodenominado
paramilitar e voluntário, o grupo prometia a quem nele ingressasse o
repatriamento, ou seja, o retorno imediato ao Japão em troca de dinheiro e
bens.
"O
Pelotão propunha um caminho insólito para a volta ao Japão: o alistamento
voluntário ao lado dos Estados Unidos e da Organização das Nações Unidas (ONU)
na Guerra da Coreia (1950-1953)", explica Taniguti.
Depois
da desmobilização, os combatentes seguiriam para a terra natal, desocupada em
1952 pelos Aliados.
Em
janeiro de 1954, o grupo instalou centenas de migrantes em uma chácara em Santo
André (SP), supostamente escolhida pela proximidade com porto de Santos, onde
esperavam embarcar.
A Força
Pública paulista invadiu a propriedade por duas vezes, em janeiro e dezembro de
1954, espancando residentes e prendendo 23 líderes na última incursão.
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Uma nova visão sobre a migração
Nos
jornais da época, a chácara foi apelidada de "Canudos em miniatura",
enquanto se discutia se seus ocupantes eram "comunistas, vigaristas ou
remanescentes da Shindo Renmei".
O
episódio encerrou-se em 1955, com a prisão de líderes envolvidos na depredação
do consulado japonês em São Paulo e a dispersão do grupo.
Com o
restabelecimento de relações entre Japão e Brasil, em 1952, casos como o do
Pelotão dos Voluntários das Cerejeiras tornaram-se igualmente constrangedores
para o governo e os porta-vozes da comunidade japonesa.
As
comemorações do 400º aniversário de São Paulo, em 1954, e do centenário da
migração japonesa, em 1958, permitiram envolver a violenta história do Estado
brasileiro e suas minorias em uma nova roupagem.
"Na
festa dos 400 anos, cria-se uma imagem da cidade de São Paulo como acolhedora,
moderna, urbana, que recebia povos de várias origens e lugares do mundo",
explica Taniguti.
O
sociólogo adverte que o caso dos migrantes japoneses entre os anos 1930 e 1950
situa-se no entrechoque entre dois nacionalismos: o japonês e o brasileiro.
"Episódios
como o da Shindo Renmei exigem que façamos um exercício de localizar, ao longo
de 20 a 25 anos, a forma como a nacionalidade brasileira foi pinçada em
diferentes regimes políticos."
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Cassações após 1964
O
choque permaneceria ainda latente por muitos anos, como mostra o fato de que,
durante a ditadura militar, pelo menos dois parlamentares de origem japonesa —
o deputado federal Yukishige Tamura (Arena, governista) e o estadual Paulo
Nakandakare (MDB, oposicionista), ambos por São Paulo — foram cassados com
base, entre outras suspeitas, de terem pertencido à Shindo Renmei.
Mesmo
na atualidade, lembra Kelly Yshida, o preconceito e o racismo antinipônico e
antiasiático persistem, como mostrou a narrativa acusatória contra chineses
durante a pandemia do novo coronavírus.
A
pesquisadora acrescenta: "O século 21 trouxe também novos debates.
Exemplar é o questionamento do estereótipo dos japoneses como 'minoria modelo',
que difere do Perigo Amarelo do século passado. Trata-se de uma concepção
problemática, entre outros motivos, por reforçar a ideia de hierarquização
entre diferentes populações e culturas".
Fonte:
BBC News Brasil

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