O
caminho da previdência social desde a Constituição Federal de 1988
A
Constituição Federal de 1988 é destacada costumeiramente por um anseio de
basilar um Estado de bem-estar social ao Brasil, fortemente influenciado pelo
espírito de redemocratização que o país vivia naquele momento, previdência
social incluso (Farah, 2001). Neste sentido, o sistema de seguridade social
aventado entre os artigos 193 e 204 se notabiliza como um dos elementos mais
expressivos de sua proposta de consagração de direitos sociais, eis que cria um
sistema universalista que une saúde, assistência e previdência social sob o
manto da “ordem social” (Brasil, 1988).
Como
ponto de partida, a escolha de constituir um sistema público de repartição
garantiu que o financiamento dos benefícios da previdência não estaria
condicionado ao exato montante de contribuição anterior, consolidando o sistema
em uma solidariedade atuarial, onde os trabalhadores ativos financiam os
benefícios dos trabalhadores aposentados e, consequentemente, são cobertos pela
geração futura. Este aspecto está intimamente ligado à visão universalista de
direitos que a Carta Magna consolidou, onde a aposentadoria não estaria
condicionada à contribuição, mas seria garantida como um direito e dever do
Estado aos seus cidadãos. Deste modo, o texto proposto pelos constituintes foi
redigido com as condições para aposentadoria partindo do tempo de trabalho do
cidadão, e não de sua contribuição.
Os
constituintes visaram atuar de maneira equitativa sob as desigualdades entre o
meio urbano e o meio rural e de gênero, prevendo a redução de cinco anos para
aposentadoria das trabalhadoras urbanas e dos trabalhadores rurais. Assim, o
texto original da Constituição previa duas espécies de aposentadoria: uma que
se concentrava no requisito da idade e outra no tempo de trabalho.
Dessa
forma, exigia-se 65 anos de idade para os trabalhadores urbanos e 60 anos para
as trabalhadoras na aposentadoria por idade, enquanto, no meio rural, a
exigência era de 60 anos para os homens e 55 anos para as mulheres. Além disso,
também era possível se aposentar com 35 anos de tempo de serviço, no caso dos
homens, e 30 anos, no caso das mulheres. Destaca-se ainda a redução de cinco
anos na idade mínima exigida para professores da educação infantil, ensino
fundamental e médio, sendo o benefício estendido em mais cinco anos às
professoras (Brasil, 1988).
Todavia,
os anos 1990 apresentariam óbices à efetivação das políticas de welfare state
que a Carta Magna propunha (Farah, 2001). Mobilizando o contexto brasileiro de
crise financeira estatal, o sistema previdenciário passou a sofrer uma crítica
que permearia os argumentos pela sua reforma nos próximos 35 anos: a
previdência seria elemento de desequilíbrio das contas públicas. Os Governos
Collor (1990-1992) e Itamar (1992-1994) estariam mais próximos da agenda
neoliberal que ascendeu na América Latina nesse período, e passariam a criticar
os avanços de direitos sociais propostos pela CF/88, alegando estarem à frente
da capacidade estatal de provê-los.
Apesar
das críticas neoliberais e o atraso na aprovação de leis que tratariam do custeio e benefícios
previdenciários, o sistema previdenciário foi capaz de resistir neste período
inicial, sendo inclusive capaz de se manter incólume na Revisão Constitucional
de 1993. Seria no Governo FHC que os ciclos de retrocessos neoliberais se
iniciariam: o mote do governo eleito em 1994 passaria a promover a
estabilização macroeconômica do país, e, para sustentar os ajustes fiscais que
o governo buscava, o financiamento da seguridade social passaria a ser atacado
e diminuído, em medidas de Desvinculação dos Recursos da União – DRU (Tobaldini & Suguihiro, 2011) que
aumentavam a discricionariedade do governo em efetuar gastos públicos, ao passo
que reduzia a sua capacidade de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos,
entre eles o da previdência.
Contudo,
seria com a Emenda Constitucional nº 20/1998 que o regime da previdência social
teria sua até então mais profunda alteração, especialmente pelas alterações nos
critérios de acesso (Silva, 2024). A despeito da resistência enfrentada no
Legislativo (Jard da Silva, 2020), o Governo FHC logrou sucesso na aprovação da
Emenda que modificou os seguintes pontos:
• Extinguiu a possibilidade de solicitação
de aposentadoria proporcional para homens e mulheres, em que os contribuintes
antecipavam sua aposentadoria ao custo de diminuírem o seu valor de benefício a
um valor proporcional ao seu tempo de serviço.
• Alterou de tempo de serviço/trabalho
para tempo de contribuição como critério de acesso na concessão da
aposentadoria.
• Facilitou para que alterações
relacionadas a regra de concessão e critérios de pagamento previdenciários
fossem definidos por normas infraconstitucionais e não mais por PECs.
• Constitucionalização da previdência
privada, apesar de já ser anteriormente regulada pela Lei Federal nº 6.435/77,
trazendo maior segurança jurídica. Foi incorporada de forma complementar ao
Regime Geral da Previdência Social (RGPS), voltada a maior parte dos
trabalhadores e ao Regime Próprio da Previdência Social (RPPS), destinado aos
servidores públicos efetivos.
• Excluiu os professores universitários da
regra especial que reduzia em 5 anos o tempo de serviço (agora contribuição)
para aposentadoria.
Neste
sentido, o Governo FHC representa um marco na transição do sistema da
previdência social em direção a um modelo contributivo e securitário,
especialmente pela nova exigência de 35 e 30 anos de tempo de contribuição para
homens e mulheres, respectivamente. Além disso, cabe destacar como a
flexibilização nas exigências para alteração previdenciária, permitiu que não
fosse mais necessário formar coalizões legislativas amplas para aprovação de
Emendas Constitucionais que alterassem a Previdência, respaldando que a Lei nº
9.876/1999 fosse instituída pelo Governo FHC (Silva, 2024).
A lei
supracitada fixou o chamado fator previdenciário para as aposentadorias por
tempo de contribuição, que na prática, desestimulou esse canal de solicitação
da aposentadoria e praticamente impôs a aposentadoria por idade mínima por
criar barreiras para a obtenção da aposentadoria por tempo de contribuição com
benefício integral. Em última instância, cabe destacar como esta reforma
previdenciária e as vindouras passaram a criar regras de transição para os
novos entrantes no mercado de trabalho, visando não lesar integralmente os
trabalhadores vigentes ao alterar as regras com o jogo em andamento. Este
aspecto, somado às novas e complexas regras de acesso à aposentadoria, passaram
a tornar progressivamente o processo de solicitação da aposentadoria menos intuitivo
e a compreensão do cidadão sob seus direitos menos claros, dificultando seu
acesso (Silva, 2024).
A
despeito da eleição de um governo progressista amalgamado na luta da classe
trabalhadora contra a ditadura, a sucessão do governo tucano não poupou o
sistema previdenciário de passar por nova reforma. Encaminhada no início do
Governo Lula, as Emendas Constitucionais nº 41/2003 e 47/2005 estiveram focadas
em reformar o RPPS, o Regime de Previdência para os servidores públicos
efetivos de todos os entes federativos, mantendo mobilizado os mesmos
argumentos anteriormente utilizados na década de 90 pelos governos neoliberais
sobre custo fiscal e envelhecimento da população como justificativa (Silva,
2024).
Desta
maneira, essa reforma foi mais focalizada que a anterior e logrou sucesso a se
aproveitar da heterogeneidade da classe trabalhadora (Costa; Estanque; Fonseca;
Da Silva, 2020), ao fomentar sua divisão e diminuir sua resistência pelo
suposto “privilégio” dos servidores públicos em comparação aos trabalhadores
urbanos e rurais enquadrados no RGPS anteriormente reformado (Silva, 2024), com
destaques a:
• Extinção da integralidade (o benefício
previdenciário seria o valor do último salário do servidor desde que estivesse
no cargo há +5 anos e fosse do setor público a +10) da aposentadoria no serviço
público, tendendo a diminuir o valor recebido do beneficiário ao passar a
calcular a média das suas contribuições;
• Estabelecimento do teto para o valor dos
benefícios no RPPS seria o mesmo do RGPS;
• Instituiu a contribuição previdenciária
para os servidores inativos.
Destaca-se
que essa reforma da previdência social, contrária ao papel do Estado erigido no
período constitucional e à luta da classe trabalhadora, tornou-se tão
controversa que gerou um racha interno no PT e a criação de um novo partido
(PSOL) por parlamentares expulsos da legenda (Memorial da Democracia, s.d.).
Na
esteira de seus antecessores, o Governo Dilma mobilizava a crise fiscal para
preconizar a necessidade de uma reforma previdenciária profunda. A presidente
no início de 2016 sinalizou que a Previdência precisaria ser revista, em razão
da média de idade de aposentadoria no Brasil estar na casa dos 55 anos (Campos,
2016), o que gerava déficits que, para serem compensados, drenavam recursos de
outras políticas sociais.
A
primeira alteração substancial foi a constituição da Fundação de Previdência
Complementar do Servidor Público Federal (Funpresp), que abria espaço para
constituição da previdência privada aos servidores públicos federais, um legado
do seu governo antecessor (Jard da Silva, 2018). A partir da flexibilização
proporcionada pela EC nº 20/98 do Governo FHC de que alterações no cálculo dos
benefícios e critérios de acesso previdenciários poderiam ser efetuadas por
meio de leis infraconstitucionais, a presidenta e sua base aprovaram as Leis nº
13.134/2015, 13.135/2015 e 13.183/2015 (Silva, 2024).
No
aspecto geral, houve também mudanças consideráveis na pensão por morte, que
deixou de ser vitalícia para todos os dependentes do falecido, tendo sido
criada uma tabela de duração das pensões a partir da idade do cônjuge. Os
filhos mantiveram o direito ao benefício até os 21 anos de idade, salvo em caso
de invalidez ou deficiência grave. Ademais, a concessão do benefício passou a
ser condicionada a, no mínimo, um ano e meio de contribuição do falecido e dois
anos de casamento/união estável do cônjuge para recebimento do benefício
(Silva, 2024).
Como
tendência contrária aos avanços sobre os direitos previdenciários dos cidadãos,
merece destaque a Lei 13.183/2015, que instituiu a fórmula 85/95. A fórmula
85/95 permite aos trabalhadores e trabalhadoras não estarem sob a égide do
fator previdenciário ao aposentar-se por tempo de contribuição, desde que a
soma da idade e tempo de contribuição fosse de 85 para mulheres e 95 para
homens, o que aumentaria o valor do benefício por tornar seu cálculo 100% da
média dos 80% maiores salários de contribuição (Silva, 2024).
Os
Governos Temer e Bolsonaro foram um marco na radicalização do processo de
neoliberalização no país, e com efeito, tiveram marcos ainda mais profundos na
reforma da Previdência social. O Governo Temer buscou emplacar a PEC nº
287/2016 para reforma da previdência, na esteira do seu projeto de reformas
gerenciais do estado brasileiro que já havia tido sucesso no campo trabalhista,
com o teto de gastos e na Reforma do Ensino Médio, sem sucesso por perder força
política no final do mandato (Silva, 2025).
Como
principal ponto de crítica ao projeto do governo pela sua nocividade,
ressalta-se a exigência de 49 anos de contribuição ao regime previdenciário
para gozo do benefício integral. Este ponto somado a idade mínima de 65 anos
para acesso a aposentadoria, tornava necessária que o trabalhador iniciasse sua
vida ativa formalizado aos 16 anos para recebimento do valor integral da
aposentadoria (Silva, 2025). Também foi proposto:
• Fim da aposentadoria por tempo de
contribuição sem uma idade mínima;
• Remoção da distinção da idade mínima
para aposentadoria entre trabalhadores urbanos e rurais, além de homens e
mulheres;
• O aumento do tempo mínimo de
contribuição para 25 anos, e alteração do cálculo para pensão por mortes
removerem o pagamento das cotas por dependente do falecido (50% da média
salarial +10% por dependente);
• Alteração do cálculo da aposentadoria
para recebimento do valor integral de 51% da média de contribuição + 1% por
cada ano contribuído;
• Desvinculação do valor dos benefícios ao
salário-mínimo e;
• Aumento da idade de concessão do
Benefício de Prestação Continuada (BPC) de 65 para 70 anos.
Apesar
dos esforços do Governo Temer, sua proposta de reforma da previdência social
não foi aprovada devido à falta de apoio político necessário no legislativo
para a aprovação da PEC. A mudança viria com a PEC 06/2019 do Governo
Bolsonaro, que propôs uma alteração mais profunda e estrutural: a transição do
sistema de repartição para o de capitalização. Para minimizar os custos de
transição, seria implementado o sistema de capitalização nocional, no qual as
contas individuais e a rentabilidade seriam mantidas de forma virtual, formando
uma poupança para recebimento de benefício futuro (Silva, 2025). Essa reforma
representava uma ruptura com o modelo de solidariedade estabelecido na
Constituição de 1988, que aproximaria o sistema brasileiro ao modelo chileno da
época – que seria um dos elementos de maior crítica por parte dos protestantes
no Chile no mesmo período (Montes, 2020).
No
entanto, a transição para a capitalização não foi aprovada e a desvinculação do
reajuste do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e de outros benefícios do
salário-mínimo que havia sido proposta também não avançaram (Silva, 2025).
Mesmo assim, a reforma de 2019 teve sucesso em:
• Aumentar a idade mínima de aposentadoria
para mulheres;
• Exigir 40 anos de contribuição para
recebimento do valor integral da aposentadoria;
• Mudar o cálculo do auxílio-doença não
vinculada ao trabalho que deixou de ser 100% da média dos 80% maiores salários
de contribuição para 60% da média mais 2% a cada ano de contribuição que
exceder 15 anos para mulher e 20 anos homem, tendendo a diminuir o valor pago;
• Mudar o cálculo da pensão por morte, que
deixou de pagar 100% do valor recebido do falecido para 50% do valor do
benefício, acrescido de 10% por dependente.
Ressalta-se
como as alterações criadas pela Reforma geraram regras de transição e pedágio
que complexificaram ainda mais a compreensão dos cidadãos sob seus direitos, e,
o processo de formação da Reforma apontaram como a clareza nas informações não
eram preocupações do governo. O governo e, especialmente o então Ministro da
Economia Paulo Guedes, foram criticados por não apresentarem os estudos
técnicos e dados sobre como cada proposta de mudança iria contribuir para a
economia prometida de R$ 1 trilhão com a reforma. (G1, 2019; Silva, 2024).
Em
suma, independentemente do ciclo político vivenciado pelo país após a
redemocratização – seja no período neoliberal dos anos 1990, no ciclo
progressista dos anos 2000 ou na ascensão da extrema-direita após o golpe de
2016 –, a previdência tem sido constantemente tratada como financeiramente
inviável e prejudicial ao financiamento de outras políticas sociais.
Contudo,
é incorreta a compreensão fatalista de que esses ataques ao regime
previdenciário são inevitáveis. É fundamental destacar que este é um tema com
grande potencial para unir a classe trabalhadora em resistência aos ataques. Em
diversos momentos, alterações foram obstruídas pela ação política nas ruas, e
não apenas pela via institucional, como evidenciado pela Greve Geral de 2017.
Para isto, é fundamental ser ativo e bem-informado.
Fonte:
Por Ariane Mantovan da Silva, Sandra dos Santos Brumatti e Gabriel Sousa Nunes,
para Le Monde

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