Por
que o mundo levou 2 mil anos para descobrir o avanço de Arquimedes no estudo da
Matemática
Um
livro perdido poderia ter mudado a história mundial. Desaparecido há mais de
mil anos, o exemplar contém um registro único das ideias de um dos maiores
estudiosos de todos os tempos.
Tudo
começou em Siracusa, na região da Sicília, na Magna Grécia (sul da península
itálica colonizada pelos gregos), no ano de 287 a.C.. Foi quando Arquimedes, um
gênio que estava séculos à frente do seu tempo, nasceu.
"Não
há outro matemático na Antiguidade, nem na história, que chegue perto de
Arquimedes", disse à BBC Chris Rorres, professor emérito de Matemática da
Universidade Drexel da Pensilvânia, nos Estados Unidos, quando o manuscrito foi
recuperado.
Arquimedes
é popularmente conhecido como o homem que gritou "Eureka!" na
banheira.
Ele
estava tentando resolver um mistério sobre a coroa de ouro do rei.
O
monarca suspeitava que o ourives que fabricou a coroa tinha misturado prata,
metal mais barato, ao ouro que ele tinha fornecido para confecção do objeto.
A coroa
tinha o peso certo (equivalente à quantidade de ouro fornecida pelo rei), mas
como a prata é mais leve do que o ouro, a questão era: será que a coroa tinha
um volume maior do que se tivesse sido fabricada em ouro maciço?
Certa
vez, ao entrar na banheira para tomar banho, Arquimedes percebeu que quanto
mais seu corpo ficava submerso, mais água transbordava. A partir desta
observação, ele concluiu que poderia estabelecer quão grande era a coroa do rei
ao imergi-la em um recipiente com água e medir a quantidade de líquido que
seria deslocado.
Dizem
que ele ficou tão entusiasmado com a descoberta que saiu imediatamente do banho
e correu nu pelas ruas de Siracusa gritando "Eureka", que em grego
significa "descobri".
Não
sabemos se os cidadãos da Sicília realmente viram Arquimedes nu, mas a verdade
sobre a coroa do rei foi revelada: o ourives tinha sido desonesto e o
matemático havia se mostrado um excelente detetive.
Durante
sua vida, Arquimedes tornou-se famoso por suas invenções e temido por suas
armas de guerra.
Foi
também nomeado conselheiro militar pelo rei de Siracusa, que o confiou a defesa
da cidade.
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Mas é
por meio da matemática que sua verdadeira genialidade aparece. Foi ele que
considerou estimar um valor para π (Pi), vital para calcular a área de um
círculo, um dos componentes básicos da ciência.
Ele fez
isso colocando um círculo entre polígonos, já que seu perímetro pode ser
calculado, pois seus lados são retos.
Ele
começou inserindo um hexágono dentro do círculo e outro fora. Em seguida, foi
adicionando mais e mais lados até chegar a 96.
A ideia
era fazer com que os polígonos se aproximassem o máximo possível do perímetro
do círculo, o que lhe daria os limites cada vez mais próximos entre os quais
deveria estar π.
Ele
calculou assim que o valor de π estava entre 310/71 (aproximadamente 3.1408) e
31/7 (cerca de 3.1429), uma estimativa que ainda é usada pelos engenheiros hoje
- e é mais do que suficiente para todos os propósitos práticos.
Obcecado
por matemática, o estudioso não enxergava nenhum problema como difícil demais.
Ele
chegou a tentar, inclusive, calcular a quantidade de grãos de areia necessários
para preencher todo o Universo.
A
resposta: 10, seguido de 62 zeros.
Os
historiadores da época contam que Arquimedes ficava eufórico quando descobria
formas matemáticas cada vez mais complexas.
4
triângulos e 4 hexágonos formam um tetraedro truncado ...
12
quadrados, 8 hexágonos, 6 octágonos - octaedro truncado ...
12
pentágonos, 30 quadrados e 20 triângulos, 60 vértices, 120 arestas, 62 faces:
um rombicuboctaedro.
Basta!
Tragicamente,
Arquimedes ficou tão conhecido que até os romanos sabiam da sua existência e
desejavam capturá-lo.
Quando
finalmente conseguiram invadir a cidade de Siracusa, deram ordem para
prendê-lo. Mas o soldado que o encontrou se distraiu e, sem notar a confusão ao
seu redor, não recebeu as instruções corretas. Por isso, matou-o com a espada.
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Uma reciclagem devastadora
A morte
de Arquimedes, em 212 a.C., marcou o fim de uma era de ouro na matemática
grega, que foi declinando gradualmente.
No
entanto, seus manuscritos sobreviveram, sendo reproduzidos por escribas que
transmitiram seus conhecimentos de geração para geração. No século 10, foi
produzida uma cópia final de suas obras mais importantes.
Mas o
interesse pela matemática havia se perdido, e o nome de Arquimedes foi
esquecido.
Certo
dia, no século 12, um monge ficou sem pergaminhos. A consequência disso foi
desastrosa.
As
páginas da cópia final da obra mais importante de Arquimedes foram reutilizadas
para fazer um livro de orações.
Cada
uma das folhas que formavam uma página dupla do manuscrito foi cortada e
dobrada para dar origem a novas páginas, que, após serem lavadas e raspadas,
ficaram suficientemente claras para se escrever novamente sobre elas.
O
manuscrito foi reciclado e transformado em um palimpsesto - um papiro ou
pergaminho que "mais uma vez" (palin, em grego) foi
"raspado" (em grego, psao) para apagar o que estava escrito e ser
reutilizado.
Tornou-se,
assim, um livro de orações do mosteiro de Mar Saba, no deserto da Judeia, no
Oriente Médio.
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O renascimento matemático
No
século 15, o Renascimento chegou à Europa. A ciência avançou o suficiente para
que os estudiosos compreendessem os argumentos matemáticos de Arquimedes.
No
entanto, ninguém tinha noção que algumas de suas maiores ideias haviam se
perdido.
Os
matemáticos renascentistas tiveram que lidar com conceitos e problemas que
Arquimedes havia resolvido 1,5 mil anos antes.
Mas
centenas de anos se passaram até que o manuscrito do grego viesse à tona
novamente. Ninguém sabe como, mas ele apareceu em uma biblioteca de
Constantinopla, atual cidade turca de Istambul.
Em
1906, ao revisar o catálogo da biblioteca, Johan Ludvig Heiberg, especialista
dinamarquês em cultura grega, se deparou com algo no documento que despertou
sua curiosidade.
"Ele
deve ter ficado atordoado ao ver o manuscrito. Ele sabia muito bem o quão
valioso era o que ele estava lendo", afirmou à BBC William Noel,
ex-curador do Museu de Arte Walters, nos EUA. Atualmente, ele é diretor do
Instituto Schoenberg para Estudos de Manuscritos da Penn Libraries, na
Filadélfia.
Como
não podia retirar o manuscrito da biblioteca, Heiberg tirou fotos das páginas
e, com base nelas, tentou reconstruir o trabalho de Arquimedes, uma tarefa
incrivelmente árdua quando sua única aliada era uma lupa.
De
qualquer forma, a descoberta de Heiberg revelou ideias que até então não eram
conhecidas.
No
livro, Arquimedes não só dava as respostas para seus cálculos, como tinha
escrito seus pensamentos mais íntimos, revelando como tinha feito seu trabalho.
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'O Método'
"Foi
uma descoberta espetacular para a história da matemática. Se você é pintor,
provavelmente tem interesse nas obras finalizadas dos grandes mestres da
pintura. Mas, além disso, você quer saber as técnicas, os métodos, as tintas
que eles usaram. Os matemáticos querem saber não apenas quais são seus
teoremas, mas como se chegou até eles ", compara Rorres.
O
Método, título dado à obra, mostrou que Arquimedes criou uma abordagem radical
que nenhum matemático havia chegado perto de inventar.
Em sua
mente, ele havia construído um conjunto de escalas completamente imaginárias
para comparar os volumes de formas curvas - o que ele usou para tentar calcular
o volume de uma esfera.
Como já
se conhecia o volume de um cone e de um cilindro, ele tentava equilibrar a
esfera e o cone de um lado com o cilindro no outro. Tudo isso mentalmente.
Arquimedes
imaginou um número infinito de cortes e, usando uma matemática muito complexa,
encontrou uma maneira de equilibrar os objetos nas escalas.
O
resultado final: o volume de uma esfera é precisamente dois terços do volume do
cilindro que encerra essa esfera.
O
matemático considerava a descoberta tão importante que pediu que fosse inscrita
em sua lápide.
Ao
arquitetar volumes usando cortes infinitos, Arquimedes dava o primeiro passo em
direção a um ramo vital da matemática, conhecido como cálculo, 1,8 mil anos
antes de ser inventado.
O mundo
moderno não poderia existir sem o cálculo - é essencial para cientistas e
engenheiros, e a tecnologia do século 21 depende disso.
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Outro desaparecimento
Em
1914, quando estava prestes a descobrir a verdadeira genialidade de Arquimedes,
o plano de Heiberg de estudar o manuscrito em Constantinopla foi bruscamente
interrompido.
Com o
início da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a Europa e o Oriente Médio foram
tomados pelo caos, e o palimpsesto onde estavam os escritos do matemático se
perdeu novamente.
Os
acadêmicos tinham poucas esperanças de reaver o documento, mas, em 1971, Nigel
Wilson, um especialista em Grécia antiga, ouviu falar de uma página de um
manuscrito em uma biblioteca da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e
foi investigar.
"Transcrevi
algumas frases. Havia termos técnicos muito específicos. Pelo vocabulário,
descobri rapidamente que se tratava de um ensaio de Arquimedes, e me dei conta
que deveria ser uma folha do famoso palimpsesto", disse à BBC Wilson,
professor de Estudos Clássicos da Universidade de Oxford.
Mas por
que apenas uma página do palimpsesto de Arquimedes foi parar em Cambridge?
Uma
pista era sua procedência: uma coleção de documentos que pertencia a um erudito
chamado Constantine Tischendorf, um homem de poucos escrúpulos.
"Tischendorf
viajou muito pelo Oriente Médio. Em Constantinopla, visitou a biblioteca e
disse que havia apenas um manuscrito de seu interesse: um palimpsesto com um
texto matemático. Não disse mais nada", contou Wilson.
"Não
podemos deixar de supor que essa página foi roubada", acrescenta.
No
início do século 20, Heiberg contava só com uma lupa para ler o manuscrito. Nos
anos 1970, Nigel Wilson tinha a seu favor a tecnologia moderna.
"A
maior parte da página era legível e, com a lâmpada ultravioleta, os cantos, que
não podiam ser lidos, ficaram nítidos."
Após a
1ª Guerra Mundial, Paris e outras cidades europeias foram inundadas de obras de
arte do Oriente Médio, mas ninguém tinha visto o documento de Arquimedes.
Em
1991, Felix de Marez Oyens começou a trabalhar para a casa de leilões
Christie's e, em seu novo escritório, encontrou a carta de uma família francesa
que dizia ter um palimpsesto.
Intrigado,
De Marez Oyens foi examinar o livro. "De cara eu soube que deveria ser o
manuscrito que Heiberg estudou pela primeira vez em 1906", disse à BBC De
Marez Oyens.
Os
proprietários contaram que, na década de 1920, um parente que era colecionador
amador havia adquirido o manuscrito em Constantinopla. Agora eles queriam
vendê-lo.
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Mas qual é o preço de algo inestimável?
"Qualquer
avaliação de algo assim é simplesmente uma suposição. Acho que eu disse a eles
que valia entre US$ 550 mil e US$ 800 mil", afirmou De Marez Oyens.
O
manuscrito foi vendido por muito mais. Um bilionário anônimo pagou US$ 2
milhões.
Em
1998, era chegada finalmente a hora de recuperar o conhecimento perdido por
mais de dois milênios. Alguns meses após comprar o manuscrito, o novo dono
entregou o documento ao Museu de Arte Walters, em Baltimore, no estado de
Maryland, nos EUA.
Cientistas,
restauradores e historiadores começaram a se debruçar sobre a obra.
Usando
tecnologia de imagem multiespectral e uma técnica de raio-X que faz brilhar o
ferro da tinta que foi raspada, eles descobriram que o documento continha não
só sete tratados de Arquimedes, como também discursos de Hipérides, político e
orador ateniense, e comentários sobre as categorias de Aristóteles do século 2
ou 3.
Entre
os tratados do matemático grego, estava a única cópia sobrevivente do
Stomachion de Arquimedes, no qual ele tenta descobrir de quantas maneiras é
possível combinar 14 peças fixas para formar um quadrado perfeito.
A
resposta é 17.152 combinações.
Stomachion
significa dor de estômago, que é como se referiam aos enigmas na antiguidade.
Trata-se
do primeiro trabalho a desenvolver a matemática das combinações, que é a base
da probabilidade, algo que se acreditava ter surgido nos séculos 17 ou 18.
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Até o infinito
Sem
dúvida, a leitura de O Método deixou claro que Arquimedes deu um grande passo
para a compreensão do infinito; mais que isso, usou o conceito como parte do
argumento de um de seus teoremas.
Arquimedes
estava mais próximo da ciência moderna do que se imaginava. Embora se soubesse
que ele tinha dado alguns passos na direção do cálculo moderno, o palimpsesto
mostrou que, de certa forma, o grego já havia chegado lá.
O que
teria acontecido, então, se esse documento não tivesse sido perdido? Se os
matemáticos do Renascimento tivessem tido acesso a ele?
"Isso
teria mudado a matemática, é claro, mas devemos ter em mente que influenciaria
todas as ciências. Então, basicamente, teria sido como se a maré do
conhecimento tivesse subido centenas de anos atrás", responde Rorres.
Fonte:
BBC News Mundo

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