Comunidades em regiões áridas na Bahia são
exemplo de convivência e proteção de biomas
Recentemente,
publicações científicas apontaram a existência de um território de clima árido
na Bahia, em avanço em direção a Pernambuco. Alguns desses estudos inclusive
utilizam o termo “desertificação” para descrever o processo em curso nessa
região. O Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (Irpaa), com
mais de 30 anos de atuação, no entanto, publicou uma nota técnica em que aponta
que, pelo menos desde 1992, já é catalogado uma região árida no território.
De acordo com o
pesquisador André Rocha, colaborador do Irpaa, a existência das regiões áridas
no Brasil, volta e meia, ganham destaque na imprensa e no mundo acadêmico por
diversos fatores, desde o aumento do interesse sobre mudanças climáticas e seus
impactos regionais, até uma maior disponibilidade de dados meteorológicos. Ele
ressalta, porém, que, nem sempre, esse destaque tem mero interesse científico.
“Há ainda os segmentos
ligado ao grande capital, que detêm o monopólio político e da mídia no país, e
se aproveitam do reconhecimento da aridez para colocá-la como sinônimo de
deserto e de lugar impróprio ao modo de vida dos povos e comunidades tradicionais,
incentivando o êxodo e reduzindo a resistência aos grandes empreendimentos de
modelo excludente”, acrescenta.
·
Mudança climática e
ação humana
O pesquisador explica
ainda que não são as mudanças climáticas que têm acelerado o crescimento das
regiões áridas no Brasil, mas sim ações humanas como a má distribuição de
terras e má gestão ambiental no território que contribuem para o aumento da
emissão de carbono e consequente avanço das mudanças climáticas.
A nota técnica do
Irpaa aponta que não é apenas a elevação da temperatura que atua para o aumento
da aridez no Brasil, mas também a degradação ambiental na caatinga que aumenta
a vulnerabilidade do solo.
O estudo também
ressalta que apesar de haver uma grande região no país tratada genericamente
como Semiárido, neste território há uma diversidade de microclimas, desde os
mais úmidos, como na região da Chapada Diamantina, até os mais áridos, como a
Depressão Sertaneja. Essa área, com precipitação menor do que 600mm por ano,
está presente na Bahia, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte.
Nessa região, segundo
os estudos realizados pelo Instituto desde 1992, os índices de aridez podem ser
inferiores a 0,2, o que lhe inscreve na categoria de região árida.
“Ressaltamos, ainda que, aridez nem sempre é sinônimo de deserto, que por ser
natural, difere de áreas desertificadas, que resultam da ação humana, que
podemos chamar de áreas degradadas”, destaca o estudo.
Segundo o estudo, o
índice de aridez na Depressão Sertaneja pode variar em intervalos de tempo por
conta da atuação de fenômenos sazonais como El Niño e La Niña, por exemplo.
“Consideramos que as mudanças climáticas tendem a acirrar processos de desertificação
no semiárido, atuando em sobreposição. Mas, atualmente, o principal fator é a
degradação antrópica local através da mudança de uso da terra, caracterizada
pelo desmatamento para os diversos fins que incluem os grandes empreendimentos,
mecanização, uso de agrotóxicos, dentre outros”, diz o pesquisador André Rocha.
·
Convivência com o
Semiárido
O Irpaa defende,
porém, que a existência de climas mais secos não necessariamente significa que
as populações que ali vivem estejam condenadas à pobreza ou à emigração
forçada. “Há oportunismo e sensacionalismo com a questão climática no
semiárido. Em outrora, uma elite financeira taxou o semiárido como inviável,
impedindo investimentos públicos de desenvolvimento da região. Com isso, a
elite obteve facilidades na apropriação de terras públicas, alienação eleitoral
e mão de obra barata”, afirma o estudo.
As populações que
tradicionalmente habitam o território árido e semiárido desenvolveram diversas
tecnologias de convivência com o clima, mas apontam a ausência do Estado e de
políticas públicas como uma grande barreira. “Convivência com o semiárido é entender
que não se combate uma condição cíclica da natureza, mas que existem práticas
possíveis, a exemplo do manejo com a caatinga e a preservação e a captação da
água da chuva”, explica a professora e agricultora Cristiane Ribeiro, de Curaçá
(BA).
A experiência de
Cristiane e da Associação de Mulheres em Ação da Fazenda Esfomeado (AMAFE) é um
exemplo de como a convivência com climas adversos é possível a partir de
tecnologias sociais que respeitem os biomas, as comunidades e os conhecimentos
acumulados pelos povos que tradicionalmente habitam esses locais.
A Associação promove o
beneficiamento de frutos da caatinga e comercialização de produtos,
possibilitando uma fonte de renda para mulheres agricultoras ao mesmo tempo em
que incentiva a proteção e recaatingamento do território.
“A convivência com o
semiárido, em construção a partir da década de 1990, se traduz em um conjunto
de saberes, técnicas, métodos e hábitos de vida compatíveis com as condições
climáticas do lugar, logo, não cabe em um ‘pacote’, mas preza pelos direitos das
pessoas e da natureza, em vista ao bem viver no semiárido brasileiro, por esta
e pelas futuras gerações”, acrescenta André Rocha.
Além das técnicas mais
conhecidas, como sistemas de captação e armazenamento de água da chuva,
Cristiane Ribeiro cita ainda como exemplos de tecnologias que vêm sendo
utilizadas no território o reuso de água cinzas, o beneficiamento dos frutos da
caatinga e a capacitação e formação acerca das mudanças climáticas e práticas
sustentáveis, bem como a criação de associações de mulheres e grupos
produtivos. Ou seja, tecnologias diversas para responder a demandas diversas
dos povos e territórios.
A agricultora defende
que os impactos positivos do uso dessas tecnologias de convivência são
visíveis, mas cobra que mais políticas públicas sejam efetivadas na região,
especialmente as que sejam voltadas para mulheres.
“Não tenho dúvida de
que são as mulheres, as guardiãs dos saberes importantes e necessários para uma
convivência de qualidade. Mas ainda considero pequeno o espaço para essas
mulheres. Ainda que escutemos muitos ecos, sentimos o peso do silêncio e das impossibilidades
criadas por barreiras patriarcais”, acredita.
·
Vazio a ser ocupado?
Para Cristiane, os
estereótipos de pobreza e fome associados ao semiárido brasileiro criaram uma
forte cultura de que este é um lugar “inviável”. “É possível conviver na
caatinga, usufruir dela e mantê-la em pé. A biodiversidade rica favorece uma
potencialidade de tirar dela o alimento e viver com dignidade. Os cuidados com
esse bioma é uma prática que sabemos que dá certo e é possível”, afirma.
A nota técnica do
Irpaa acrescenta que essa narrativa sobre o semiárido como “deserto” e
“inóspito” tem sido utilizada para justificar o avanço de grandes
empreendimentos sobre um território dito “vazio”. “Com o advento das mudanças
climáticas, [a elite] mais uma vez subestima os potenciais socioculturais e
ambientais dos povos e territórios semiáridos e propaga a ideia de lugar
inóspito, inadequado ao modo de vida tradicional e incentiva o êxodo, na
tentativa de favorecer a ascensão de grandes empreendimentos de produção de
energia solar e eólica de grande escala, mineração, especulação imobiliária e
outros instrumentos de concentração de terra e renda”, diz o texto.
O pesquisador André
Rocha afirma que, assim como outros bens naturais, o sol e os ventos no
semiárido apresentam limitações e potenciais, mas é preciso repensar o modelo
adotado até aqui, que é de grande escala e sem respeito às leis de proteção
ambiental e social.
Ele aponta, por
exemplo, a necessidade de tais empreendimentos respeitarem acordos
internacionais como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT) que prevê a obrigatoriedade de consulta às comunidades e povos
tradicionais para implantação dessas obras, bem como o respeito à proibição de
construção em Área de Preservação Permanente (APP) e demais áreas vulneráveis.
“O modelo de produção
precisa contemplar média e sobretudo pequena escala, com produção
descentralizada e tecnologia apropriada aos povos e comunidades que praticam
outras produções em regime familiar, prezando sobretudo pela instalação em
telhados e demais estruturas disponíveis, sem precisar desmatar a caatinga”,
acrescenta.
Esse outro modelo de
produção de energias limpas é, inclusive, uma das políticas públicas de
convivência com o semiárido indicada pela nota técnica do Irpaa, ao lado de
outras como acesso à estrutura produtiva e de abastecimento, sobretudo, de
água; reordenamento fundiário e acesso à terra e território; manutenção da
caatinga em pé; saneamento urbano e rural.
“A cultura de
convivência já é uma realidade de muitos que vivem no semiárido, mas entendo
que falta muito para atingir o objetivo real de viver num semiárido justo.
Ainda precisamos incidir todos os dias para proteger os territórios,
principalmente os tradicionais dos grandes blocos de interesse econômico”,
finaliza a agricultora Cristiane Ribeiro.
Fonte: Brasil de Fato
Nenhum comentário:
Postar um comentário