O
Brasil que Dom Pedro 2º imaginou — e o que fizemos dele
Exilado
na Europa depois do golpe militar que proclamaria a República no Brasil em
1889, Dom Pedro 2º, segundo e último imperador brasileiro, redigiu um documento
em Cannes, no sul da França, que é visto como seu testamento político.
Intitulado
Fé de Ofício, o texto foi o último ato público do monarca deposto. Dom Pedro 2º
morreria em 5 de dezembro de 1891.
Escrito
de próprio punho, o documento está datado de 23 de abril daquele ano — e foi
publicado no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, na edição de 28 de maio.
Neste 2
de dezembro, quando se recorda o segundo centenário do nascimento do único
imperador brasileiro nascido no Brasil — e alguém que foi chefe de Estado do
país independente em praticamente um quarto de sua história, 49 dos 203 anos,
reler esta carta é compreender um pouco qual era a nação que Pedro 2º imaginava
ter ajudado a construir.
Se
consideramos também o período de regência, quando ele já tinha sido aclamado
imperador mas não governava, foram 58 anos sob a coroa de Pedro 2º.
É
praticamente consenso entre estudiosos de sua biografia que o monarca imaginava
um Brasil que alcançaria o progresso por meio da ciência e da tecnologia.
Ele
também almejava uma nação com instituições políticas e sociais sólidas e
demonstrava crer em um futuro republicano, em que o governo seria
representativo e o exercício da cidadania por parte dos brasileiros seria mais
próximo do universal.
Fé de
Ofício deixa pistas interessantes para este pensamento.
Para o
ex-imperador, era preciso proteger a economia do país frente à concorrência
estrangeira, "até o período do seu próspero desenvolvimento".
E
embora se autoclassificasse como alguém que tinha "sentimento
religioso", entendia que cabia ao Estado apenas a inspeção "quanto à
moral e à higiene, devendo pertencer a parte religiosa às famílias e aos
ministros das diversas religiões".
Destacou
também a importância do investimento em educação, sobretudo criando e
desenvolvendo instituições de ensino superior.
"Igreja
livre no Estado livre", pontuou. "Mas isso quando a instrução do povo
pudesse aproveitar de tais instituições".
Pedro
2º acreditava na imigração como ferramenta para o melhor "aproveitamento
das terras" e defendia a criação de "um observatório
astronômico" no país.
Lembrou
que era importante investir no exército e na marinha, "a fim de que
estivéssemos preparados para qualquer eventualidade, embora contrário às
guerras". "Buscava, assim, evitá-las", sentenciou.
Posicionou-se
contrário à pena de morte, enfatizando que acreditava na regeneração do ser
humano.
Defendeu
eleições livres para os cargos públicos e concursos para postos no judiciário e
na administração estatal. Mas acreditava que somente os alfabetizados deveriam
poder votar.
Demonstrou
sensibilidade às pautas da habitação e da fome, ressaltando a importância de
projetos que zelassem pela "sorte física do povo, sobretudo em relação a
habitações salubres e a preço cômodo e à sua alimentação".
No
documento, Pedro também defendeu a importância das artes, da organização de
dioceses para a Igreja Católica e de expedições científicas que se dedicassem a
estudar o Brasil.
Especialistas
concordam que, mesmo sendo ele próprio um monarca, Dom Pedro 2º via no regime
republicano o futuro do Brasil. Mais exatamente, em um modelo inspirado no que
vigorava nos Estados Unidos, independente e República desde 1776.
"Ele
considerava que a República era um desenvolvimento natural do sistema
político", explica à BBC News Brasil o pesquisador e escritor Paulo
Rezzutti, autor da biografia D. Pedro II - A História Não Contada.
"Mas
ele achava que o Brasil não estava pronto para ela, precisava de uma melhora na
estrutura administrativa antes de dar esse passo."
"Ele
é visto por muitos de seus biógrafos como um imperador republicano",
comenta à BBC News Brasil a historiadora Bruna Gomes dos Reis, pesquisadora na
Universidade Estadual Paulista e professora no Serviço Social da Indústria
(Sesi).
"Pessoas
que conviveram com ele notavam que ele tinha um espírito bastante republicano.
E ele imaginava um certo governo republicano para o Brasil", afirma à BBC
News Brasil o historiador Silas Luiz de Souza, professor na Universidade
Presbiteriana Mackenzie.
Há
diversos registros de comentários de Pedro 2º no sentido de reconhecer que o
regime republicano seria o melhor e mais bem desenvolvimento sistema político.
"Porém,
o republicanismo dele comportava-se mais como um espírito", compara Reis.
"Ele
se fazia presente em ações como como a liberdade de imprensa, o amor à pátria,
na sua busca pela 'civilização' por meio do dos estudos, das artes e da ciência
e em lampejos de nacionalismo".
Era um
pós-iluminista, defensor da razão. Nesse ponto, o republicanismo parecia se
enquadrar melhor em sua própria ideologia.
"Ele
era adepto das ideias liberais vindas do Iluminismo, com defesa das liberdades
individuais", situa Souza.
"Apesar
disso, seu espírito republicano não tocava sua carne", ressalta Reis.
"Ou melhor: não tocava nas estruturas políticas e econômicas do
Brasil."
A
historiadora comenta, por exemplo, que o último imperador brasileiro
"desfrutou do poder moderador" até o fim do império. Era aquele
instrumento criado no Estado brasileiro por seu pai, Pedro 1º, que
desequilibrava o princípio da tripartição dos poderes entre executivo,
legislativo e judiciário, porque situava o imperador como um quarto poder
sobreposto aos outros.
O
historiador Victor Missiato, pesquisador no Instituto Mackenzie, cobra um pouco
de cuidado ao situar Pedro 2º como "republicano".
"Soa
um pouco anacrônica", pondera ele, à BBC News Brasil.
"Embora
ele tenha escrito algumas cartas e interpretado a realidade como a
inevitabilidade de um regime republicano na história do Brasil, […] associá-lo
à pecha de um monarca republicano não cabe em um mundo em que muitas monarquias
ainda estavam de pé."
Além
disso ele lembra que Pedro teve um reinado longevo e com o exercício do poder
moderador. Ambas essas características destoam de uma postura dita republicana.
Mas
Missiato reconhece que havia pitadas de republicanismo em seu governo, com
"a ideia de maior liberdade religiosa", "críticas à
escravidão" e a instituição de órgãos públicos "para a formação do
bem comum".
Pedro
2º também foi beneficiado, como lembra a historiadora Reis, pelas
"riquezas produzidas pela escravidão, sem mover-se em direção à
transformação desses aspectos que poderiam acelerar a construção da
república".
"Ele
acreditava que a fase monárquica era necessária para o amadurecimento nacional,
e que o regime republicano apareceria em algum momento, como resultado do
processo natural de desenvolvimento nacional", esclarece Reis.
Em
anotação feita por Pedro 2º em 31 de dezembro de 1861, ele ressalta que "a
ocupar posição política, preferiria a de presidente da República ou ministro à
de imperador".
A
imprensa da época — que o imperador fazia questão de deixar sob livre
funcionamento, sem censurá-la oficialmente — extravasava o estranhamento que
seu perfil causava dentro de um regime monárquico.
"Nas
cortes da Europa vai passando, republicano, ateu, darwinista e não sei que
mais", publicou a Gazeta de Notícias em 19 de agosto de 1883.
"Ele
olhava para as Américas e via as repúblicas sendo formadas. Os Estados Unidos
tinham já uma força muito grande naquele período", comenta Missiato.
O
historiador lembra que Pedro 2º estava atento a discussões, principalmente
europeias, sobre a formação de esfera pública nas sociedades, com maior
participação cidadã. E demonstrava simpatia a isso.
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Educação como pilar essencial
Como
pontua a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz no livro As Barbas do Imperador: D.
Pedro II, Um Monarca nos Trópicos, o titular do trono brasileiro "era dado
a novidades […] e a palavra progresso, para ele, vinculava-se à ciência e ao
intelecto".
Certamente
por isso, a seu modo, o monarca investiu em educação e conhecimento. Era assim
que ele enxergava as bases para um país que, no futuro, seria republicano.
"Dom
Pedro via a si mesmo como um homem da ciência", diz Rezzutti. "Desde
a infância ele considerava os estudos mais prazerosos que as brincadeiras, e
esse amor continuou pela vida inteira."
"Ele
mandava adquirir equipamentos científicos na Europa, estudou astronomia e
matemática avançada e foi um incentivador da fotografia no Brasil, sendo um dos
primeiros fotógrafos amadores do país", enumera o biógrafo.
"Também
se tornou patrono de diversas instituições científicas e culturais, entre elas
o Instituto Pasteur, que graças à sua proteção acabou sendo inaugurado aqui
antes do que na França, e a Escola de Minas, criada em Ouro Preto há exatamente
150 anos, em 1875, por iniciativa do imperador."
Também
se insere no período de sua coroa a fundação do Colégio Pedro 2º, em 1837 — na
época, sob regência.
O mesmo
se aplica ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), mais antiga e
tradicional entidade de fomento de pesquisa do país, criado em 1838. Pedro 2º
era um entusiasta do organismo.
Se
quando foi criado o instituto, o imperador ainda era menor de idade, durante
seu reinado ele investiu no desenvolvimento do mesmo.
"Foi
um dos maiores financiadores [da instituição]", diz Souza.
"Tinha
uma relação íntima, participando de eventos, fazendo palestras."
Esta
imagem do monarca curioso e apaixonado pelo saber não foi uma construção
tardia, póstuma, erguida a partir do mito do rei morto. Era algo já presente em
seus tempos contemporâneos.
"Muitos
cientistas e intelectuais deixaram suas observações sobre a admiração que
sentiam a respeito do interesse dele pelas ciências", frisa Rezzutti.
Pai da
teoria da evolução, o naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882) declarou
que "o imperador faz tanto pela ciência que todo sábio é obrigado a
demonstrar a ele o mais completo respeito".
Já o
escritor francês Victor Hugo (1802-1885) comparou o monarca brasileiro ao
romano Marco Aurélio — ícone do "rei filósofo".
Claro
que também havia críticos notáveis — o abolicionista Luiz Gama (1830-1882), por
exemplo.
"Ele
dizia que Dom Pedro praticava um liberalismo bastante curto, tacanho",
pontua o historiador Souza.
Isto
porque o imperador não descuidava dos interesses da elite de sua época — uma
elite basicamente constituída por latifundiários e escravocratas, a quem
qualquer mudança intempestiva de rumos significava um desfavorecimento.
A
historiadora Reis interpreta essa postura de Pedro 2º como parte do
"processo de amadurecimento nacional para receber o regime
republicano".
Para
isso, ele entendia ser preciso preparar e "educar" os cidadãos.
"Para
além dos esforços empregados no desenvolvimento tecnológico, como a implantação
do telégrafo, das linhas de ferro, e na invenção de uma nação civilizada, a
partir da criação do IHGB, ainda que para um pequeno grupo de brasileiros,
Pedro 2º portava-se como um líder capaz de guiar o Brasil a esse destino, com
seu verniz iluminista e moderno", contextualiza a professora.
Contudo,
ela ressalva que o próprio imperador não deu um passo decisivo para a
República.
"Na
prática, o imperador optou por aguardar para ver aquilo que o Brasil poderia se
tornar", afirma. "Se a nação não estava pronta o suficiente para se
tornar República, não seria por meio de suas ações que isso seria
alterado."
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Nação do futuro
Mas
Rezzutti volta ao documento Fé de Ofício para pensar sobre o Brasil que Pedro
vislumbrava como uma nação do futuro.
"Por
meio desse texto, é possível compreender qual era o país que Dom Pedro
imaginava e que lutou para implantar", diz.
"Entre
as diretrizes pelas quais ele afirma ter se interessado enquanto governou,
estão o desenvolvimento da indústria nacional; a instrução livre, tendo
considerado no estabelecimento de universidades fora dos grandes centros do
sudeste; a exploração das riquezas naturais; o melhoramento das Forças Armadas
para fins exclusivamente defensivos; a higiene pública, para livrar o Brasil
das epidemias; a abolição da pena de morte; a liberdade política; e o
melhoramento das comunicações e transportes", enumera o pesquisador.
Há
diretrizes interessantes, se observadas de forma anacrônica. Por exemplo: a
vocação pacífica das armas brasileiras. Sobretudo ao longo do século 20, o país
foi gradualmente ganhando destaque global com um papel contrário ao da guerra.
O
Brasil virou a nação da diplomacia, do soft power. E isto transcende ao mundo
em episódios que vão desde a participação brasileira na fundação da Organização
das Nações Unidas (ONU) até esforços recentes com envio de tropas para missões
de paz.
Outro
ponto do testamento político de Pedro 2º que ecoa hoje é quando ele menciona a
higiene pública.
Com
todos os problemas inerentes principalmente ao fato de ser um instituto público
que depende dos cofres de um país em desenvolvimento, o Sistema Único de Saúde
(SUS), criado a partir da Constituição de 1988, é visto como modelo mundial de
acesso universal e gratuito aos serviços de saúde.
"Além
disso, uma herança da visão que Dom Pedro tinha de como o Brasil deveria ser
está na democracia, com eleições regulares e liberdade de pensamento e de
imprensa. Por mais que tenha sido atacada ao longo dos anos, essa ideia
sobrevive e ainda está na base do sistema político brasileiro", acredita
Rezzutti.
"Da
época de Dom Pedro 2º, sobreviveram muitas instituições que ainda são
importantes para a vida econômica e cultural brasileira", complementa o
pesquisador. "Entre elas, estão a própria Escola de Minas, o Colégio Pedro
2º, criado originalmente para a formação de uma elite política e intelectual, e
o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro."
Quando
ele defendia uma abertura maior aos imigrantes europeus, contudo, aos olhos de
hoje é inevitável que a ideia soe com contornos racistas.
Seu
ideal civilizatório era alinhado ao pensamento elitista e eurocêntrico de
então. Pedro 2º não só se inspirava nos pensamentos que vinham do velho
continente, mas também patrocinou políticas imigratórias que, sob a motivação
de substituir a mão de obra do escravizado de origem negra, também tinha o viés
de "embranquecer" o brasileiro.
"Ele
entendia que trazer pessoas da Europa podia ajudar no progresso do país",
explica Souza. "Isso acabou configurando a sociedade brasileira atual, com
tantos grupos étnicos distintos."
Outros
legados do período imperial sobreviveram ao tempo e implicaram na consolidação
do Brasil contemporâneo.
É o
caso da própria unidade territorial.
O
Brasil poderia, assim como a América Espanhola, ter se esfacelado em diversas
pequenas repúblicas. Isso não ocorreu principalmente porque havia um projeto de
nação, conduzido por ambos os imperadores, que privilegiava um território
robusto, grande, imenso.
Nesse
sentido, o historiador Missiato lembra que houve um papel importante do governo
imperial ao sufocar revoltas separatistas que pipocavam no território.
Disso
também ficou a centralização do poder.
"Com
certeza ele foi o líder mais importante da história do Brasil", acredita
Missiato.
"Alguns
aspectos da sociedade brasileira se formaram ou se fortaleceram no Segundo
Reinado e não desapareceram até hoje", diz a historiadora Reis.
"Como
a unidade territorial, as bases do Estado nacional, a busca pela liderança na
América Latina e o afastamento cultural dos outros países
latino-americanos."
Fonte:
BBC News Brasil



