Papa sem visão global será retrocesso
vergonhoso, diz Frei Betto
Em um
momento de intensas transformações e de conflitos internacionais, a escolha do
novo líder da Igreja Católica Romana gera uma grande expectativa. A morte de
Jorge Bergoglio, o papa Francisco, primeiro sumo pontífice latino-americano e
jesuíta, deixou um legado reformista, como a bênção para casais homoafetivos, o
perdão às mulheres que fizeram aborto, que antes eram excomungadas e o
reconhecimento de que a Igreja deve se
envergonhar a pedir perdão às vítimas de abuso sexuais cometidos por padres. A
escolha de um novo pontífice, após um papado reformista e em meio ao avanço da
extrema-direita pelo mundo, abre um novo capítulo político para a instituição.
As movimentações para as eleições no Vaticano já estão em andamento e o
episódio do Pauta Pública da semana fala sobre os desdobramentos desse momento
histórico. O entrevistado é o Frei Betto — frade dominicano, escritor e
assessor de movimentos pastorais e sociais — que acompanhou de perto os principais
marcos do papado de Francisco e analisa o atual papel político da Igreja
Católica. De acordo com o frade, a conjuntura atual de guerras e conflitos
internacionais exige um papa bem preparado, com habilidades diplomáticas para
governar a instituição religiosa que congrega mais de um bilhão de fiéis pelo
mundo. “Se tivermos um papa obtuso, sem visão global, sem conhecimento dessa
conjuntura internacional, realmente nós teremos aí um retrocesso vergonhoso”,
afirma Frei Betto.
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Leia os principais pontos da entrevista:
- Qual a sua
avaliação do período de papado do Francisco?
O papa
Francisco realmente veio para implementar as decisões do Concílio Vaticano II,
que ocorreu entre 1962 e 65, e que até agora ficaram por serem implementadas.
Uma ou outra coisa os papas anteriores fizeram, mas não estruturalmente. O
Francisco queria mudar a igreja estruturalmente. Então, ele ensaiou vários
avanços, por isso que ele convocou inúmeros sínodos. O que é um sínodo? O
sínodo é justamente a instância inferior ao concílio, aquela que tem autoridade
para implementar. O Francisco poderia ter feito isso sem convocar ninguém,
porque ele era o único monarca absoluto do Ocidente. O que é o monarca
absoluto? No Oriente há vários, entre eles o rei da Arábia Saudita. É uma
pessoa que tem o poder e não há nenhuma instância abaixo que possa censurá-la,
julgá-la, condená-la, etc. Essa é a figura do papa. Só que o Francisco era um
democrata. Então, ele não queria impor. Ele queria criar consensos e dar alguns
avanços importantes.
Primeiro
papa a fazer uma encíclica em defesa dos direitos da natureza, Laudato Si, (do
latim louvado sejas) Francisco não só descreve a degradação ambiental, como
aponta as causas, dizendo que ela não resulta do desequilíbrio climático,
resulta da exploração predatória dos recursos do planeta pelos grandes grupos
econômicos, que vitimiza sobretudo os mais pobres. Na pauta de costumes,
Francisco foi muito revolucionário. Acolheu os homossexuais e obrigou os
sacerdotes a batizarem filhos e filhas de casais homoafetivos, liberou a bênção
para esses casais, não conseguiu liberar a bênção com um caráter sacramental,
como acontece na igreja com casais heterossexuais. Ele também avançou na
questão dos divorciados, permitindo que os divorciados possam ter um novo
casamento na igreja. Avançou também na questão do aborto, ou seja, não liberou
o aborto, em determinadas circunstâncias, como muitos queriam, mas permitiu que
as mulheres que abortam fossem absolvidas pelos seus confessores e antes isso
não era possível. O aborto era um fator de exclusão da comunhão católica.
O Papa
Francisco tentou quebrar a forte misoginia que marca a tradição da Igreja
Católica. Ele nomeou várias mulheres para funções importantes no Vaticano, mas
não conseguiu que a mulher tivesse acesso ao sacerdócio. É uma luta que nós
continuamos e esperamos que o novo Papa venha a fazer avanços importantes nesse
sentido. Também queria acabar com o celibato obrigatório no segmento ocidental
da Igreja Católica. Aqui há uma explicação a ser feita. A Igreja Católica Roma
congrega 24 segmentos históricos. 23 são do Oriente. Em todos os 23, os
sacerdotes podem ou não é facultativo contrair matrimônio. O que não se admite
é que seja nomeado bispo, para ser bispo tem que ser celibatário. Só o segmento
ocidental, que é majoritário, romano, é que tem a obrigação de celibato, que
tem a obrigação de celibato para todos os sacerdotes.
Ele
também foi um crítico contundente do capitalismo, embora nunca tenha usado esse
nome. Mas em todos os documentos, todas as encíclicas, ele critica
vigorosamente usando metáforas. Imperialismo internacional do dinheiro, a
globalização da supremacia econômica e reitera a importância de se buscar um
novo modelo econômico para a humanidade, que ele chamava de economia de Clara e
Francisco [movimento inspirado em Francisco de Assis e Santa Clara, que busca
uma abordagem humanitária para a economia]. Chegou a convocar eventos com
economistas de todo mundo para debater esse modelo pós-capitalista de
sociedade.
Ele
deixa um legado muito forte sobretudo na sua opção pelos pobres, que já estava
simbolizada desde o primeiro dia quando ele escolheu o nome de Francisco e o
seu testemunho de um homem aberto a todas as religiões, não só as cristãs e a
todas as pessoas sem preconceito, sem discriminação.
- O momento
político que estamos vivendo, de campanhas de desinformação, avanço da
extrema-direita, do neofascismo e do ultraconservadorismo. Como o momento
interfere na escolha de um novo papa?
É uma
conjuntura muito desfavorável a escolha de um papa progressista. Porque a
pressão desses líderes conservadores será muito grande. Pressão que só ocorrerá
antes das portas do conclave se fecharem, porque aí dentro do conclave é
impossível qualquer tipo de pressão, a não ser interna. Não podemos esquecer
que hoje a maioria dos bispos e sacerdotes são das safras de João Paulo II e
Bento XVI, que somadas resultam em 34 anos. Então, havia muitos bispos e
cardeais que não concordavam com a linha de Francisco. Daí, a minha previsão é
que nós teremos um conclave atribulado. Creio que pode haver também um
fator surpreendente, que é justamente pelo fato de haver uma ascensão da
direita no mundo, e os cardeais optarem por um fator de equilíbrio, que seria
um papa progressista.
Possivelmente
haverá um bom número de cardeais a favor de um cardeal africano, porque desde o
século quinto, não há papa africano E hoje o catolicismo mais cresce na África.
Acontece que, na minha opinião, os cardeais africanos são conservadores. Então
a ala franciscana não vai querer que seja um africano conservador, vai querer
alguém que dê continuidade à linha do Francisco. Portanto, a minha conclusão é
que será um papa italiano. De novo, o papado voltará às mãos dos italianos.
Eles não se conformam de terem perdido, desde a eleição de João Paulo II e, ao
mesmo tempo, tem pelo menos cinco cardeais italianos que são muito
identificados com a linha de Francisco e pode ser que um deles seja o eleito. É
a minha previsão.
- Quais seriam as
consequências reais da eleição de um papa conservador?
No
Oriente, no mundo oriental, mesmo na África, a figura do papa não tem muita
importância, mas no Ocidente, sim. É uma figura simbólica, tradicional,
histórica, muito reverberada pela grande mídia e o domínio do mundo está no
Ocidente, não no Oriente, com exceção da China, que hoje é uma potência. Mas o
domínio ideológico, cultural, econômico vem do Ocidente, da Europa Ocidental e
dos Estados Unidos. Daí, o peso que o papado tem, porque as figuras e os
líderes desses países ocidentais metropolitanos, gostem ou não, eles pelo menos
respeitam o papa. Eles podem não concordar, podem falar mal, mas respeitam.
Quando o papa decide ir a esses países, nenhum deles cria obstáculo, porque se
sabe da importância política que tem a visita de um papa e até econômica. Agora,
de outro lado, existem coisas na Igreja que são questões adquiridas. Nenhum
papa vai conseguir acabar com a Teologia da Libertação [corrente nascida na
América Latina, na década de 1970, busca interpretar a fé cristã à luz da
realidade social, especialmente da pobreza e da opressão, e defender os
direitos dos pobres e oprimidos]. Isso já está entranhado já na teologia
daqueles que atuam junto aos pobres, não tem como fazer retroceder. Tanto que o
João Paulo II ensinava a condená-la e não conseguiu. Ele conseguiu censurá-la
como Bento XVI, mas não condená-la. E, no fim, ele teve até que fazer uma
autocrítica, quando num dos documentos ele disse que a teologia da libertação
era imprescindível para a igreja da América Latina.
É
verdade que hoje ela existe também na África, na Ásia e mesmo em setores
mais populares da Europa. Então, a essa conflitividade que tem hoje vai exigir
um papa bem preparado que tenha espírito e habilidades diplomáticas, isso é
fundamental, porque senão o retrocesso será brutal. Se tivermos um Papa obtuso,
sem visão global, sem conhecimento dessa conjuntura internacional, realmente
nós teremos aí um retrocesso vergonhoso até, eu diria. Vamos esperar que os
cardeais tenham bom senso e elejam alguém que seja digno de representar uma
instituição que tem tanto peso e congrega 1 bilhão e 300 milhões de fiéis.
¨
Reformas pendentes, o papel das mulheres e medos de
cisma: as questões que o próximo papa enfrentará
"Com
o pontificado de Francisco, o século XX realmente terminou", diz o
historiador da Igreja Alberto Melloni em entrevista a este jornal. Uma era
muito incerta e complexa está surgindo, em um mundo em rápida mudança, no qual
o falecido Papa tentou abrir novos caminhos, tentou reformar a Igreja e, pela
primeira vez, ofereceu uma visão do Sul global. Gestos e cuidados sociais e
pastorais ganharam prioridade, deixando questões institucionais e jurídicas em
segundo plano. Tudo isso causou enormes tensões internas e externas. O grande
dilema do conclave agora é para onde ir, se seguir os passos de Francisco ou
corrigir o curso, e quem será responsável por fazer isso. Abaixo estão os
tópicos mais comentados.
• Onde morar: o pátio paralelo de Santa
Marta
Francisco
marcou a primeira grande ruptura simbólica com a tradição ao deixar o
apartamento no Palácio Apostólico, onde os papas sempre viveram, e se mudar
para a residência Santa Marta, um edifício moderno construído por João Paulo II
dentro do Vaticano para abrigar clérigos visitantes e, acima de tudo, cardeais
durante o conclave. Isso causou confusão, porque tinha um certo tom acusatório,
como se eles vivessem no luxo. Mas além de literalmente deixar o castelo do
Vaticano. Francisco saiu do quadro institucional e quis ser mais independente,
o que significou criar um tribunal paralelo, mais pessoal, fora do controle da
Secretaria de Estado. A coisa foi mal recebida pela Cúria. Além disso,
Francisco logo começou a criar sua própria agenda de reuniões, fora da Casa
Pontifícia, sem saber exatamente quem ele estava vendo, quem estava entrando e
quem estava saindo. Ele tomou decisões por conta própria, e a cúria descobriu
mais tarde. De fato, Santa Marta se tornou, nos últimos anos, um símbolo
negativo para parte da hierarquia, um ecossistema único de vícios e defeitos
atribuídos ao Papa, como, por vezes, cercar-se de pessoas inadequadas que ele
escolhia instintivamente. Havia má vontade em relação ao fato de ser um enclave
sul-americano, e espalhou-se a sensação de que isso criava amigos e inimigos;
às vezes alguém caía em desgraça, outros temiam ser excluídos. “Em Santa Marta,
há um círculo mágico que decide tudo”, protestou o cardeal Gerhard Ludwig
Müller, um dos líderes da oposição conservadora em 2023. Uma das primeiras
decisões do novo Papa já será um sinal: ele retornará ao palácio ou permanecerá
afastado? Retornar pode trazer alguma restauração, mas talvez também possa ser
considerada uma fórmula que causou problemas ou era muito pessoal para
Bergoglio, adequada apenas a ele.
• Operação de limpeza e renovação
Francisco
foi eleito em uma emergência, porque um Papa, Bento XVI, havia renunciado,
sobrecarregado de problemas, e esperava-se que ele limpasse e colocasse as
coisas em ordem. Nas contas, na burocracia do Vaticano, no escândalo da
pedofilia, flagelos crônicos do longo reinado de 27 anos de João Paulo II. Ele
chegou até aqui motivado por um preconceito generalizado contra o Vaticano e a
Itália entre os cardeais. E ele certamente era enérgico, lançando-se em uma
verdadeira guerra em várias frentes, porque também gosta do elemento surpresa.
Esse espírito revolucionário foi sentido nas ruas e, logo nos primeiros meses,
um mural apareceu perto do Vaticano retratando-o como o Superman. “Com Bento
XVI, a melhor carta de um papado conservador, veio uma grande desordem, ele
chegou a renunciar, e Francisco foi um Papa que tomou o caminho oposto, uma
grande figura de caráter aberto e inclusivo, mas há um sentimento de que muitos
aspectos do governo foram tratados às pressas, houve um governo muito vertical
da Igreja, o que foi um problema sério para o papado”, diz o historiador
Melloni. Em 2017, já circulava um livro anônimo intitulado O Papa Ditador.
No
início, ele era popular por suas decisões anômalas e pessoais, diante de um
sistema estagnado. Com o tempo, muitos consideram que isso foi uma fonte de
caos e de trabalhos malfeitos. E começou a resistência e a rebelião interna, o
que também contribuiu para criar a sensação de que se abriam caminhos, mas não
se chegava ao fim de nenhum deles. Ele criou um conselho de nove cardeais,
chamado C-9, para empreender grandes reformas, sobre as quais pouco se sabia. A
reforma da Cúria Romana provou ser mais lenta e difícil do que o esperado,
levando nove anos. Foi aprovado em março de 2022. Com uma administração
altamente personalista, enfraqueceu a Secretaria de Estado e até a diplomacia
perdeu importância. O caso da pedofilia também é significativo. Ele só abordou
o assunto seriamente em 2018, após o escândalo no Chile, ao se encontrar com as
vítimas e perceber que as informações que recebia dos bispos eram manipuladas.
Ele forçou toda a liderança episcopal chilena a renunciar, uma decisão radical
e sem precedentes. Mas isso nunca se repetiu, porque deveria ter começado a
fazer a mesma coisa em vários países. Diante desse escândalo, ele aprovou novos
regulamentos e fez discursos impecáveis, mas cada bispo e cada ordem
continuaram fazendo o que bem entendiam. A máquina do Vaticano também continuou
a se arrastar. "A ideia agora no Vaticano é que esse problema está no
caminho certo", confidencia um prelado. Isso está sendo deixado para trás,
embora aqueles que estão sendo deixados para trás em muitos casos sejam as vítimas,
cansadas de esperar ou que estão morrendo de velhice. O próximo pontífice pode
enterrar o problema ou enfrentá-lo de uma vez por todas.
• O toque humano e pessoal
São
inúmeras as pessoas com quem o Papa falou ao telefone, sem filtros, qualquer
pessoa. Ele tem sido impressionante em sua abordagem humana e gestos altamente
eficazes em nível de base. Ele investiu recursos e pessoal nos pobres, chegando
a instalar chuveiros na Colunata de São Pedro para os desabrigados. Em 2019,
ele enviou seu esmoler, o cardeal Konrad Krajewski, a um prédio ocupado por 450
pessoas no centro de Roma para pagar a dívida de € 300.000 em contas de luz, e
o próprio cardeal, com seu conhecimento de eletricidade, restaurou a energia. Ele
foi um pontífice que se abaixou para beijar os pés dos líderes das duas facções
rivais no Sudão do Sul, buscando a paz, e lavou os pés de prisioneiros e
imigrantes. Sua última viagem para fora do Vaticano foi na Quinta-feira Santa,
para visitar prisioneiros em uma prisão romana. Ele acolheu transexuais no
Vaticano. Para todos os pobres, marginalizados e necessitados que ele ajudou, e
que o viam como um milagre, a questão agora é se outro como ele virá, ou se Francisco
foi uma miragem.
• Números vermelhos e um buraco nas
pensões
Não se
fala muito nisso, mas um dos maiores problemas do Vaticano é muito pé no chão,
como o de outros Estados: está no vermelho (€ 83 milhões no último balanço) e
não sabe como vai pagar suas pensões; o déficit em seu fundo é de cerca de €
650 milhões. As igrejas em cada país estão enviando cada vez menos dinheiro,
até mesmo as mais poderosas, como os Estados Unidos e a Alemanha. "Houve
um declínio, inicialmente atribuído à COVID, mas não se recuperou; é
estrutural", admite uma autoridade do Vaticano. Limpar as contas foi outra
das principais prioridades de Francisco, pois ele criou uma Secretaria para a
Economia (SPE) e nomeou o cardeal australiano George Pell como o novo Prefeito
de Assuntos Econômicos, com plenos poderes para limpar a situação. Começou a
pôr ordem nas caóticas contas do Vaticano, com novos mecanismos de controle, e
limpou o IOR, o banco do Vaticano com lendária má fama e escândalos notórios,
por suas contas secretas onde até a máfia lavou dinheiro. Mas é uma batalha
muito difícil, cada departamento é independente e difícil de controlar. Pell
foi forçado a renunciar em 2019 após alegações de abuso, das quais foi
posteriormente absolvido, mas já havia alertado que tinha inimigos que se
opunham às reformas. A história do primeiro auditor geral nomeado no Vaticano,
Libero Milone, é significativa. Ele chegou em 2015 e permaneceu dois anos, em
meio a conspirações internas, até que o Papa perdeu a confiança nele.
"Algumas pessoas estavam preocupadas que eu fosse descobrir algo que não
deveria. Estávamos nos aproximando demais de informações que eles queriam
manter em segredo, então eles armaram um plano para me eliminar", disse
ele ao Financial Times em 2019. Em 2020, o Papa aprovou uma nova lei sobre a
adjudicação de contratos no Vaticano, uma das fontes mais frequentes de
corrupção interna, e interveio na Fábrica de São Pedro, a entidade que
supervisiona a basílica do Vaticano. O Papa pediu austeridade e cortou os
salários dos cardeais três vezes nos últimos anos. Mas todos os esforços de
imagem sofreram um duro golpe quando um escândalo típico estourou, derrubando o
Cardeal Becciu, um de seus confidentes mais próximos. Ele era o número três do
Secretário de Estado e acabou sendo condenado por fraude por um tribunal do
Vaticano, um caso sem precedentes. É de se perguntar se outro papa ousaria
colocar um cardeal no banco dos réus, algo que escandalizou muitos deles. A
gestão econômica, de qualquer forma, continua em discussão, e seu sucessor
ainda enfrenta esse desafio.
• Rebeliões internas e medo de um cisma
A
iniciativa reformista de Francisco logo criou uma ampla frente de
descontentamento. Em 2015, dois anos após sua eleição, as tensões já eram
altas. Seu teólogo de confiança, Víctor Manuel Fernández, que de fato seria o
novo Prefeito da Doutrina da Fé em 2017, foi questionado se um conclave teria
reeleito Bergoglio naquela época, e ele respondeu: "Não sei, talvez não,
mas aconteceu". Uma frente hostil surgiu, já que algumas decisões do Papa
foram vistas como erráticas e problemáticas pelo setor conservador. O cardeal
Gerhard Ludwig Müller, prefeito da Doutrina da Fé até 2017, estabeleceu-se como
o guardião da essência e o líder visível das críticas a um Papa que ele via
como tendo uma tendência a agir sozinho, que era um jesuíta e não europeu. O
cardeal Gianfranco Ravasi disse que depois de um papa latino-americano — mesmo
que ele fosse de ascendência europeia — precisaríamos retornar a um papa
ocidental com rigor teológico e cultural para equilibrar o nacional-populismo
de Bergoglio. E é verdade que o Papa era enormemente popular, mas
principalmente entre os não crentes. Müller até pediu ao Papa que ouvisse e
desse atenção aos seus críticos sem descartá-los como "fariseus ou
rabugentos", porque havia o risco de uma "dinâmica cismática".
Houve
várias cartas muito fortes de grupos de cardeais levantando objeções teológicas
ao Papa sobre decisões como permitir a comunhão para pessoas divorciadas e
recasadas, a bênção de casais do mesmo sexo, a sinodalidade e a possibilidade
de ordenar mulheres. Mas o Papa disse aos repórteres em 2019: “Não tenho medo
de cismas. É o povo de Deus que salva dos cismas (...) os cismáticos se separam
do povo e da fé do povo de Deus. Os cismas sempre foram elitistas, a ideologia
separada da doutrina.” No entanto, ao mesmo tempo, a agitação crescia entre uma
frente progressista, liderada pela Igreja Alemã, que via uma oportunidade para
grandes mudanças e pisava no acelerador para acabar com o celibato, o
sacerdócio feminino e o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Até ao ponto de
um cisma, mas por razões opostas.
O que
aconteceu no Sínodo da Amazônia de 2019 resume o clima: houve uma tentativa de
introduzir a novidade dos padres casados, dada a escassez de padres na floresta
tropical, e um escândalo monumental estourou. Surgiu uma carta, assinada por
cerca de cem figuras não tão importantes, exigindo que o Papa "se
arrependesse publicamente" de várias decisões e "pecados". O
Papa acabou cedendo diante das violentas tensões internas e também decepcionou
os mais progressistas, que sentiam que o progresso havia sido tímido e
esperavam pela revolução que ele havia prometido. O mesmo aconteceu com a
tentativa de aumentar a participação de mulheres e leigos na tomada de decisões
da Igreja, conhecida como sinodalidade, que seus oponentes veem como uma
tentativa desastrosa de democratizar a instituição. O cardeal australiano
George Pell, que era um de seus confidentes e acabou se desentendendo com ele,
escreveu um relatório anônimo distribuído aos cardeais em 2022, antes de sua
morte, descrevendo o pontificado como "uma catástrofe". Esse setor
tentará por todos os meios fazer uma reviravolta no conclave. De qualquer
forma, muitos moderados acreditam que, após a tempestade de Bergoglio, é
necessário um período calmo e estável.
• Um pontífice para a era de Trump e do
populismo
Francisco
entrou em conflito com Trump desde que chegou ao poder em 2017, e agora voltou
a atacá-lo desde o início, condenando as deportações em massa de migrantes. É
um choque profundo, porque Bergoglio, a partir de uma perspectiva do Sul
global, não ocidental, fez uma crítica radical ao capitalismo e ao atual modelo
de consumo, à depredação dos recursos do planeta e à negação das mudanças
climáticas. Mas nos EUA, um poderoso mundo ultraconservador foi forjado nos
últimos anos. “Nos Estados Unidos, há um movimento católico neotradicionalista
e neoconservador que tem sua própria força, representada por JD Vance e todo
aquele trumpismo católico, e o conclave é apenas uma etapa de um projeto muito
mais longo”, explica Massimo Faggioli, que acaba de publicar o livro Da Dio a
Trump. Crisi cattolica e politica Americana (De Deus a Trump. Crise católica e
política americana), Editora
Scholé (13 janeiro 2025). Ele acredita que o cenário global mudou e que há um
desafio sem precedentes para a Igreja: “O que emergiu com Francisco e explodiu
agora é que, entre as várias incógnitas no cenário global, estão também os
Estados Unidos. Houve um tempo em que sabíamos mais ou menos o que os Estados
Unidos eram: democracia, soft power, domínio global sobre a economia, aliança
com a Europa, com a OTAN, mas agora é assim. Moro aqui há 17 anos e vejo um
país que está mudando, e você não sabe mais se é uma democracia ou não. E esta
é uma nova incógnita para o conclave em comparação com o século passado.” Além
disso, 53 milhões de católicos americanos têm uma arma decisiva: é o país que
mais envia dinheiro ao Vaticano, um terço do total que recebe. O trumpismo está
tendo efeitos profundos na capacidade de operação da Igreja. O Vaticano precisa
de dinheiro, mas basta olhar para Roma nos últimos anos, para onde foi
destinado o dinheiro estratégico dos Estados Unidos: certas escolas e
universidades, certos think tanks, certos meios de comunicação. Eles têm uma
ideia de um projeto católico conservador para as próximas décadas que já
existe.
• A árdua chegada das mulheres ao Vaticano
Francisco
se tornou o primeiro papa a falar em "desmasculinização"e tentou dar
um impulso inicial à presença de mulheres nas estruturas do Vaticano, uma
batalha na qual encontrou grande resistência. Ele agiu com muita cautela e
somente no final de seu mandato impôs suas duas maiores conquistas: uma freira,
Raffaella Pertini, à frente do governo da Cidade do Vaticano, com quase 2.000
funcionários; e, acima de tudo, Simona Brambilla, outra religiosa, como chefe
de um dicastério, os ministérios da Santa Sé, cargo que sempre foi ocupado por
um cardeal. Esta última nomeação agitou o setor conservador.É um caminho
aberto, um mundo de possibilidades, que o novo pontífice pode continuar ou
esquecer. Da mesma forma, a ordenação de mulheres ainda parece muito distante,
se a primeira tentativa tímida de permitir que elas fossem diáconas foi
rapidamente interrompida por não ser "madura".
Fonte:
Por Claudia Jardim, Andrea DiP, Stela Diogo e Ricardo Terto, da Agência Pública/El País

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