sábado, 31 de maio de 2025

Como os rentistas sabotam o desenvolvimento nacional

Uma análise das estratégias discursivas que mantêm o Brasil refém dos interesses financeiros.

<><> O mito da escassez como arma política 

O Brasil vive sob o domínio de uma narrativa que se tornou senso comum: o Estado está sempre à beira da falência, os gastos públicos são intrinsecamente perigosos, e qualquer política que beneficie a população através do aumento de gastos governamentais representa um risco fiscal inaceitável. Esta narrativa não é acidental – é uma construção deliberada que serve aos interesses de quem lucra com a manutenção da escassez artificial em economias monetárias e capitalistas, os rentistas. 

Para compreender essa dinâmica, é fundamental reconhecer que vivemos em uma economia onde diferentes grupos têm interesses estruturalmente antagônicos. De um lado, encontram-se aqueles que dependem do desenvolvimento real da economia – trabalhadores, empresários produtivos, setores voltados para o mercado interno. Do outro, aqueles que extraem renda através de operações financeiras, beneficiando-se da volatilidade, da escassez de crédito produtivo e das altas taxas de juros. 

<><> A inversão da lógica econômica 

O discurso dominante inverteu completamente a relação entre Estado e economia. Transformou o ente capaz de criar moeda em refém daqueles que dela dependem. Esta inversão não é produto de ignorância – é resultado de uma sofisticada operação ideológica que obscurece deliberadamente como funciona um sistema monetário soberano. 

Quando economistas do mercado financeiro afirmam que “o Estado precisa se ajustar como uma família”, estão propagando uma analogia que sabe ser falsa. Uma família é usuária de moeda; o Estado soberano é seu emissor. Esta diferença não é técnica – é fundamental para compreender o espaço fiscal real de qualquer nação. 

A insistência nesta analogia revela sua funcionalidade política: manter o debate econômico dentro de parâmetros que legitimam a primazia dos interesses rentistas sobre as necessidades nacionais de desenvolvimento. 

<><> O fracasso histórico da conciliação 

A experiência do governo Dilma oferece lições inequívocas sobre os limites da estratégia conciliatória. A tentativa de conquistar credibilidade através do ajuste fiscal radical não apenas falhou em seu objetivo político – aprofundou drasticamente a crise econômica e criou as condições que viabilizaram o golpe de 2016

Este episódio demonstra que o setor rentista não busca políticas “tecnicamente corretas” – busca políticas que maximizem seus rendimentos, independentemente de seus custos sociais. A manutenção de juros elevados, a austeridade fiscal procíclica e a subvalorização cambial inflacionária não são erros de gestão – são características funcionais de um modelo econômico que subordina o desenvolvimento nacional aos imperativos da acumulação financeira. 

<><> Desmistificando o “Risco Fiscal” 

O terror fiscal baseia-se em uma compreensão deliberadamente equivocada sobre as capacidades de um Estado monetariamente soberano. Países que emitem sua própria moeda enfrentam limites reais – inflação, constrangimentos de recursos produtivos, pressões cambiais – mas não enfrentam limites financeiros no sentido convencional. 

Reconhecer esta realidade não significa defender gastos ilimitados ou irresponsáveis. Significa compreender que as restrições relevantes são aquelas relacionadas à capacidade produtiva da economia, não aos saldos nominais de contas públicas. Um Estado que possui recursos ociosos, desemprego em massa e necessidades sociais urgentes enfrenta, na verdade, um imperativo ético de mobilizar estes recursos – não uma restrição fiscal que o impeça de fazê-lo. 

>>>> Estratégias para quebrar o ciclo de sabotagem 

  1. Desmascarar as narrativas falsas

É fundamental que o governo desenvolva uma comunicação sistemática que eduque a população sobre o funcionamento real da economia. Isto inclui explicar as diferenças entre Estados emissores e usuários de moeda, demonstrar como funciona o sistema bancário, e expor os interesses específicos por trás das demandas por austeridade. 

  1. Implementar políticas antifragilidade

Em vez de buscar aprovação dos mercados financeiros, o governo deve construir sua legitimidade através de resultados concretos para a população. Isto inclui políticas de pleno emprego, investimentos massivos em infraestrutura, fortalecimento dos serviços públicos e redução das desigualdades regionais. 

3. Reformular a gestão da política monetária 

A obsessão com metas de inflação descontextualizadas serve principalmente para manter elevados os rendimentos financeiros. Uma política monetária verdadeiramente soberana deveria considerar o pleno emprego como objetivo primário, utilizando a taxa de juros como instrumento de desenvolvimento, não como mecanismo de transferência de renda para rentistas. 

Somente o Banco Central tem o poder ilimitado de criar reais na economia brasileira. Se utilizado de forma competente, este poder pode inviabilizar quase completamente a viabilidade das estratégias sabotadoras utilizadas hoje pelo setor financeiro para manter refém o governo brasileiro. A oferta infinitamente elástica de swaps cambiais (aplicações remuneradas pela desvalorização cambial mais algum prêmio) tornariam inviavelmente custosa a especulação cambial. Já a estabilidade da taxa referencial de juros de curto prazo (a Selic) tornaria inviavelmente custosa a especulação contra títulos públicos. 

  1. Fortalecer as instituições democráticas

O combate ao poder rentista requer o fortalecimento das instituições que representam os interesses populares. Isto inclui tanto o parlamento quanto os mecanismos de participação social, criando contrapesos efetivos ao poder econômico concentrado. 

<><> A urgência do momento histórico 

O Brasil enfrenta uma janela de oportunidade que pode não se repetir. O fracasso das políticas neoliberais tornou-se evidente mesmo para setores que antes as apoiavam. A população demonstra crescente ceticismo em relação às promessas do mercado financeiro. O cenário internacional oferece espaços para políticas mais soberanas. 

Desperdiçar esta oportunidade em nome de uma conciliação que sabemos ser impossível representa mais do que um erro político – representa uma traição histórica às possibilidades de transformação que o momento oferece. 

<><> Por um projeto nacional soberano 

O desenvolvimentismo do século XXI não pode repetir as ingenuidades do passado. Deve reconhecer que o setor rentista não é um parceiro relutante do desenvolvimento nacional – é seu adversário estrutural. Políticas que beneficiam genuinamente a população brasileira ameaçam diretamente os mecanismos de extração de renda que sustentam este setor. 

A escolha é clara: ou o Brasil constrói uma economia voltada para as necessidades de seu povo, ou continua sendo uma plataforma de valorização para o capital financeiro internacional. Não há meio-termo técnico que resolva esta contradição fundamental. 

O momento exige coragem para enfrentar os interesses que se beneficiam da subserviência nacional. Exige também a inteligência para construir alternativas viáveis que demonstrem, na prática, que outro modelo econômico é possível. 

A história julgará se soubemos aproveitar esta oportunidade ou se permitimos que mais uma geração fosse sacrificada no altar da ortodoxia rentista. 

¨      PIB sobe 1,4% no 1º tri: por que analistas veem desaceleração da economia à frente

economia brasileira cresceu 1,4% no primeiro trimestre de 2025, em relação ao trimestre anterior, informou nesta sexta-feira (30/5) o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE).

O resultado ficou ligeiramente abaixo do esperado pelos analistas (1,5%), mas bem acima daquele registrado no quarto trimestre de 2024 (0,1% conforme o dado revisado, ante 0,2% divulgado anteriormente).

Em relação ao primeiro trimestre de 2024, o avanço foi de 2,9%, abaixo do trimestre anterior, quando a alta foi de 3,6% na comparação anual.

Uma forte alta de 12,2% da agropecuária garantiu o bom desempenho da economia no começo do ano, graças à safra recorde de grãos, com destaque para a soja e o milho.

Ainda na ponta da oferta, os serviços cresceram 0,3%, e a indústria recuou 0,1% em relação ao trimestre anterior.

No lado da demanda, o maior crescimento foi registrado pelos investimentos, medidos pela Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF), com alta de 3,1%.

Esse indicador mede o quanto as empresas aumentaram seus bens de capital, aqueles usados para produzir outros bens.

O aumento foi impulsionado pontualmente pela importação de uma plataforma de petróleo da China.

O consumo das famílias cresceu 1%, sustentado pelo bom desempenho do mercado de trabalho e pelo crescimento da massa de renda, a soma de todos os rendimentos dos trabalhadores do país. Já o consumo do governo oscilou positivamente em 0,1%.

O mercado externo, por sua vez, teve contribuição negativa para o PIB do trimestre, com as importações (5,9%) crescendo mais do que as exportações (2,9%), um sinal da demanda interna aquecida.

Quando o país importa mais do que exporta, significa que estamos comprando mais coisas de fora do que estamos vendendo para outros países, e isso tira pontos do cálculo do crescimento do PIB.

Apesar do bom desempenho da atividade no início do ano, analistas esperam que a economia perca fôlego nos próximos trimestres, em linha com a expectativa de que o PIB deve crescer menos em 2025 do que no ano passado.

<><> O que esperar para o restante do ano?

A expectativa dos economistas é de uma desaceleração gradual do PIB nos próximos trimestres, em parte por causa da própria sazonalidade da economia, explica Rodolfo Margato, economista da XP Investimentos.

"Quase dois terços da safra de soja são contabilizados [no PIB] entre janeiro e março, e a expectativa é de um aumento da safra de soja na casa de 15%", observa.

Ariane Benedito, economista-chefe da fintech PicPay, destaca ainda que a base de comparação forte do primeiro trimestre dificulta um crescimento mais pujante nos trimestres seguintes.

Isso porque quando a economia já está em um patamar elevado de produção ou consumo, qualquer crescimento adicional exige mais esforço.

A economista também avalia que, na segunda metade do ano, deverão ser sentidos com maior força os efeitos dos juros elevados pelo Banco Central.

Os juros altos tornam mais caro a tomada de crédito, reduzindo o consumo das famílias e os investimentos das empresas, o que funciona como um freio para a economia.

Quanto aos riscos para o ano, os economistas avaliam que o principal deles seria um possível recrudescimento da guerra comercial entre Estados Unidos e China que provoque uma desaceleração mais relevante da economia mundial, impactando o preço das commodities, que têm grande peso nas exportações do Brasil.

Mas eles avaliam que esse não é o cenário mais provável, diante dos reiterados recuos do presidente americano Donald Trump, que já suspendeu e reduziu tarifas aplicadas a diversos países, inclusive para a China.

No cenário interno, Luciano Sobral, economista-chefe da Neo Investimentos, avalia que a gripe aviária pode ter impacto para inflação e balança comercial.

Após a identificação de um caso da doença no Rio Grande do Sul, 23 países e a União Europeia restringiram totalmente a importação de carne de aves do Brasil, segundo informações do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) divulgadas na quarta-feira (28/5).

Outros 16 países suspenderam importações apenas para o Rio Grande do Sul e dois limitaram compras ao município de Montenegro (RS), onde foi identificado o foco de influenza aviária.

No entanto, Sobral diz que isso não deverá afetar o PIB, porque uma eventual queda das exportações de aves deve ser compensada por maiores vendas no mercado interno, o que pode baratear a carne de frango, sem que haja impacto relevante no volume de produção.

No entanto, Sobral diz que isso não deve afetar o PIB, porque a produção que deixará de ser exportada provavelmente será absorvida pelo mercado interno.

A maior oferta de frango no Brasil levaria a uma queda do preço doméstico, o que estimularia as vendas, compensando a queda da exportação sem haver um impacto relevante na produção total.

Já o aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) pode tornar os empréstimos mais caros para as empresas.

A alíquota passou de 1,88% para um teto de 3,5% ao ano no crédito a pessoa jurídica, e de 0,88% para 1,95% no caso das empresas do Simples.

A medida foi decretado pelo governo Lula há uma semana junto com outras mudanças, mas há uma movimentação no Congresso para derrubá-la.

Sobral avalia, no entanto, que, se passar pelo Congresso, o aumento do IOF não deverá ter um impacto muito relevante para a atividade econômica, porque as condições de crédito já são consideradas bastante restritivas devido ao aumento dos juros nos últimos meses.

Em 14,75% ao ano, a Selic está no patamar mais alto em quase 20 anos.

Este é um cenário que analistas avaliam como de riscos relativamente limitados, porque, embora a guerra comercial, a crise de gripe aviária e a disputa em torno do IOF criem incertezas, seus efeitos sobre a economia não devem ser significativos.

Neste contexto, os economistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que a desaceleração da economia deve acontecer de forma gradual, graças à demanda sustentada pelo mercado de trabalho ainda aquecido e pelos gastos do governo, que tendem a aumentar à medida que se aproximam as eleições de 2026.

Para Margato, da XP, os dados divulgados nesta semana sobre o mercado de trabalho no início do segundo trimestre reforçam essa percepção.

Em abril, o Brasil registrou a criação de 257 mil empregos formais, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), bem acima da expectativa, que era de 170 mil.

Já a taxa de desemprego ficou em 6,6% no trimestre encerrado em abril, menor do que o esperado e nível mais baixo para o mês da série histórica da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE.

"São exemplos que reforçam nosso cenário de atividade resiliente, de uma demanda ainda aquecida e de um mercado de trabalho robusto", diz Margato.

Sobral e Margato destacam ainda que os estímulos fiscais do governo têm representado um peso importante na sustentação da atividade econômica.

O economista da XP cita como exemplos recentes disso o aumento do salário mínimo acima da inflação; o empréstimo consignado do trabalhador; a liberação de cerca de R$ 12 bilhões em saldos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS); e o pagamento de R$ 90 bilhões em precatórios (dívidas da União já reconhecidas pela Justiça, sem possibilidade de novos recursos).

Sobral lembra ainda que há outros estímulos a caminho, como a ampliação do programa Minha Casa, Minha Vida; o aumento do vale-gás; e a redução da conta de luz para famílias de baixa renda com baixo consumo de energia.

A contrapartida desse crescimento puxado pelo gasto público é uma inflação que se mantém elevada, dizem os economistas, o que deve fazer com que o Banco Central mantenha os juros também em um nível alto por mais tempo.

A inflação alta e o crédito mais caro ajudam a explicar o mau humor dos brasileiros com a economia, mesmo com o desemprego em baixa e o aumento da renda.

 

Fonte: Por Daniel Negreiros Conceição, no Le Monde

 

Nenhum comentário: