Por
um novo horizonte político de esquerda
A
esquerda está em frangalhos em todo o Ocidente, enquanto partidos de direita e
extrema-direita avançam junto à opinião pública. Sustento que a globalização
está no cerne desses desenvolvimentos e, portanto, é crucial que a esquerda
compreenda os erros em sua abordagem da globalização neoliberal e elabore uma
visão alternativa de ordem mundial.
A
globalização tornou-se uma força dominante em nossas vidas por volta dos anos
1980. Coincidiu com a ascensão do neoliberalismo, embora a globalização não
seja um fenômeno do século XX. O século XIX testemunhou um enorme surto de
globalização. Na verdade, entre 1850 e 1913, a economia mundial estava
provavelmente tão aberta quanto no final do século XX. As tarifas caíram,
acordos de livre-comércio proliferaram, fluxos comerciais dispararam, a
circulação de informações acelerou e migrantes se espalharam por todos os
cantos do globo. Nem a Europa, nem os EUA impunham restrições migratórias. Nos
Estados Unidos, sequer eram necessários vistos ou passaportes para entrar no
país.
Essa
onda de globalização foi interrompida pela Primeira Guerra Mundial, e a onda
seguinte só ocorreria no início dos anos 1980. De muitas formas, o novo
movimento de globalização capitalista foi mais intenso que o anterior, pois
caracterizou-se por uma vasta desregulamentação financeira e aceleração dos
fluxos de capital, enquanto a integração comercial se tornou mais rápida do que
nunca. Nos anos 1990, a nova onda de globalização havia alcançado tal magnitude
que o mundo estava se tornando cada vez mais uma aldeia global. Vamos chamá-la
de onda de hiperglobalização neoliberal.
Porém,
houve uma enorme diferença qualitativa entre as ondas de globalização do século
XIX e do final do século XX. Os movimentos de capital explodiram e as
multinacionais se espalharam pelo mundo em busca de mão de obra mais barata –
mas a migração de trabalhadores foi severamente restringida. Em contraste, ela
havia se tornado um fenômeno global, no fim do século XIX. E a onda de
globalização do século XX, que supostamente traria benefícios incomparáveis
para todos, também teve outro lado sombrio. Embora não fosse abertamente
imperialista como a onda do século XIX, baseou-se em estruturas altamente
exploradoras, não muito diferentes das do colonialismo. Afinal, o capitalismo
sempre alimentou dependência, desigualdade e exploração.
Sob a
onda de hiperglobalização neoliberal, o Norte Global aproveitou-se da
fragilidade do Sul Global, aprisionando milhões de trabalhadores em um ciclo
implacável de exploração, enquanto a terceirização teve impactos dramáticos no
padrão de vida dos cidadãos no próprio Norte Global. Os empregos industriais
bem remunerados tornaram-se escassos, os salários estagnaram e a rede de
proteção social foi desmantelada. Em parte, devido à redução de receitas
governamentais por causa dos cortes de impostos para corporações e ricos; em
parte, por puro raciocínio ideológico. Austeridade para as massas, mas
subsídios, isenções fiscais e resgates para a indústria e o setor financeiro
são aspectos centrais da agenda ideológica neoliberal. E embora algumas nações
em desenvolvimento tenham se beneficiado da grande conectividade na economia
global desencadeada desde o início dos anos 1980, foram principalmente as
elites do Sul Global, assim como as do Norte Global, que mais ganharam com a
onda de hiperglobalização neoliberal.
Entra a
política.
No
final dos anos 1990, os protestos contra os rumos da economia capitalista
mundial levaram multidões a exigir mudanças, e um movimento antiglobalização
surgiu em todo o mundo, denunciando especificamente a onda de hiperglobalização
neoliberal. Protestos e manifestações contra a Organização Mundial do Comércio,
o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional tornaram-se uma
característica comum do movimento antiglobalização em vários países entre 1995
e 2018. Tal movimento foi inspirado por ideologias de esquerda e foi
impressionantemente transnacional. Na América Latina, foi especialmente
bem-sucedido, resultando em apoio e, ao fim, vitória eleitoral para partidos de
esquerda em vários países da região. No início dos anos 1990, 64% dos
presidentes latino-americanos vinham de partidos de direita. Uma década depois,
esse número havia caído pela metade.
O
movimento antiglobalização e anticapitalista não foi menos proeminente na
Europa. No verão de 2001, mais de 300 mil pessoas de toda a Europa reuniram-se
em Gênova, Itália, para expressar sua oposição ao Grupo dos Oito (G8). A
polícia italiana reprimiu com brutalidade nunca vista até então na Europa
Ocidental do pós-guerra. Na primavera de 2002, mais de meio milhão de pessoas
mobilizaram-se em Barcelona contra a reunião de chefes de Estado e de governo
da União Europeia, sob o lema “Contra o Capital e a Guerra”.
O
movimento antiglobalização havia atingido a maturidade. As perspectivas de
mudança radical nunca pareceram mais promissoras do que durante a primeira
década do novo milênio. Os ventos da mudança ainda estavam no ar na segunda
década do novo milênio, quando a ascensão ao poder da Coalizão da Esquerda
Radical (Syriza) na Grécia trouxe esperança para movimentos de esquerda em todo
o mundo – embora fosse bastante claro, para quem prestasse atenção à política
grega, que a liderança do partido havia decidido mudar seu perfil ideológico do
radicalismo para o pragmatismo ainda antes de sua chegada ao poder.
Há de
fato algo impressionante nas mudanças rápidas e abrangentes trazidas pela onda
de hiperglobalização neoliberal, e isso deve-se ao fato de que o mundo agora
gira mais rápido. Mudanças sociais, políticas e ideológicas extraordinárias
podem acontecer de uma década para outra. E eis que, no final da segunda década
do novo milênio, não apenas a crítica da esquerda radical à globalização perdeu
seu apelo entre a classe trabalhadora e grandes parcelas da juventude, mas o
antiglobalismo emergiu como um princípio ideológico fundamental da
extrema-direita.
A
crítica ao “globalismo” por partidos de direita e extrema-direita não se baseou
em uma crítica contundente do capitalismo neoliberal. Mas a globalização passou
a ser vista por muitos como um projeto político promovido pelo marxismo e pela
esquerda radical, com o duplo objetivo de destruir a cultura nacional e
substituir o Estado-nação por instituições de governança global. É,
evidentemente, distorcer o que realmente significa a globalização capitalista,
mas seria ingênuo pensar que a reação da extrema-direita contra o “globalismo”
não tem raízes socioeconômicas. O sentimento antiglobalista que levou o Donald
Trump ao poder nos Estados Unidos, e vários outros líderes políticos
autoritários pelo mundo, é impulsionado por fatores culturais e socioeconômicos
e é alimentado pela mentalidade de “nós contra eles”. A extrema-direita, claro,
não é antissistêmica e, na verdade, conta com o apoio de magnatas digitais como
Elon Musk. Está enganando os eleitores com promessas de uma nova ordem. O
antiglobalismo da extrema-direita começa e termina com a imposição de medidas
draconianas contra a imigração e a criação de uma cultura de crueldade.
O
antiglobalismo da extrema-direita é perverso e irracional, e pode dizer muito
sobre a necessidade de uma cidadania ampla e publicamente educada para
sustentar a democracia. Mas também chama a atenção para os graves fracassos
políticos dos partidos de esquerda que chegaram ao poder durante o auge do
período antiglobalização. Embora as contradições da globalização neoliberal
levassem a vitórias eleitorais de partidos de esquerda em vários países nas
últimas décadas, o projeto global do neoliberalismo não foi confrontado pelos
partidos de esquerda que assumiram o poder. Eles criticaram a hiperglobalização
neoliberal enquanto estavam na oposição mas, ao chegarem ao poder, fizeram
muito pouco para combater seus efeitos destrutivos. No máximo, aumentaram alguns
gastos em programas sociais, mas não tentaram diminuir o avanço da globalização
capitalista em suas economias e sociedades. Ao não serem capazes de
enfrentá-la, viram seu capital político declinar repidamente e os cidadãos
mudarem de lado, no espectro político. Este é o principal fator que desencadeou
uma guinada para a extrema-direita no Ocidente – inclusive nos Estados Unidos,
embora o trumpismo também precise ser considerado à luz das peculiaridades
sociais, culturais e ideológicas do país.
O
problema da esquerda reformista em relação à globalização neoliberal persiste.
Ela ensaia uma crítica das consequências da globalização capitalista, mas
parece aceitar o fenômeno como inevitável e inalterável. Ao fazer isso, deixa o
campo aberto para populistas de extrema-direita conquistarem eleitores
descontentes, apelando para seus piores instintos, como no caso da imigração.
Também
sabemos que a pressão “de baixo” para domar ou mesmo reverter a globalização
neoliberal – uma visão defendida pelo núcleo do movimento antiglobalização dos
anos 1990 e 2000 – é uma estratégia falha. A saída da globalização neoliberal
está em desenvolver uma nova globalização que esteja livre das tendências
destrutivas da acumulação capitalista e opere através de processos políticos em
que democracia e globalização estejam em uma relação simbiótica e, assim,
apoiem-se e se reforcem mutuamente.
A
esquerda tem a obrigação histórica de propor uma visão alternativa de ordem
mundial, além do capitalismo. Uma ordem mundial onde os direitos do trabalho
estejam no ápice dos valores da sociedade humana e, portanto, os meios de
produção sejam coletivamente possuídos pelos trabalhadores, enquanto a
exploração da natureza seja vista como injustiça.
Em
suma, um projeto para superar a hiperglobalização neoliberal exige consciência
antissistêmica e um programa político abrangente para uma nova ordem mundial.
Se a esquerda não desenvolver a coragem necessária para se engajar econômica,
política, ideológica e culturalmente na construção de uma ordem mundial
alternativa, a globalização capitalista continuará a reinar suprema, e a
extrema-direita será sua principal beneficiária política.
Fonte:
Por C.J. Polychroniou, em Outras Palavras

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