“Brasil
não pode ser petroestado e líder climático ao mesmo tempo”, alerta Suely Araújo
Em
entrevista ao podcast Entrando no Clima, a ex-presidente do Ibama Suely Araújo,
coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima, alertou para a
contradição central da política ambiental brasileira: enquanto o País busca se
posicionar como líder nas negociações climáticas globais, avança com planos
para ampliar a produção de petróleo. Para ela, insistir nesse caminho em meio à
crise climática é uma escolha que compromete não apenas a imagem internacional
do Brasil, mas também seu próprio futuro ambiental e econômico.
“Mesmo
que esse petróleo que venhamos a produzir seja exportado, ele vai gerar
aquecimento global onde for queimado. Pode até não contar nas emissões
brasileiras diretamente, mas vai contar nas emissões de algum outro país”, diz
a especialista.
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Confira a entrevista:
• A gente tem ouvido falar nessa intenção
do Brasil de aumentar a exploração no País. Quando a gente fala isso, do que
estamos falando exatamente?
Suely
Araújo: O Brasil já é um grande produtor de petróleo, ele é o oitavo maior
produtor mundial, com cerca de 3,4 milhões de barris por dia. Então, o Brasil
já está no jogo como um grande player, mas a área de energia do governo, o
ministro de Minas e Energia, principalmente, e a Agência Internacional de
Petróleo, têm planos de que o Brasil fique na quarta posição. Isso briga com a
Arábia Saudita e companhia, isso em plena crise climática. Esse é o
questionamento: por que optar por essa expansão da produção quando estamos
falando de um produto que, uma hora ou outra, vai cair em declínio?
O mundo
vai precisar reduzir o uso do petróleo se quiser continuar com condições de
sobrevivência. A própria Agência Internacional de Petróleo, há uns dois anos
atrás, publicou que, se o mundo quisesse manter o limite de 1,5°C de aumento de
temperatura, considerando os níveis pré-industriais, que é um limite assumido a
partir do Acordo de Paris, não poderia existir mais expansão de petróleo para
novas áreas. Isso não é uma ONG ambientalista falando. Não há como não
questionar essa proposta do governo de ampliar, e muito, a produção de petróleo
no País.
• Existe uma briga interna no governo por
esse aumento de expansão. O Lula já falou que o Ministério do Meio Ambiente
está tendo uma lenga-lenga na liberação. Como está isso dentro do governo?
Tem uma
briga e tem uma confusão de escalas na hora de fazer a crítica, porque o centro
da discussão foi direcionado pelo bloco 59, na foz do Amazonas, na bacia
sedimentar da Foz do Amazonas, que é uma licença de perfuração. Nós estamos no
meio do processo da cadeia do petróleo; não é uma licença de produção. Eles
ainda vão perfurar para ver se tem petróleo e se tem quantidade suficiente para
futura produção. Entre perfurar agora e produzir, vai uma década, em média.
Então, estamos no meio da cadeia, e esse bloco virou uma espécie de símbolo.
Nós
temos no offshore, no mar, mais de 2 mil blocos de perfurações que foram feitas
com licença do Ibama. Todas as licenças offshore são feitas pelo Ibama. Eles
estão falando: “Neste bloco não dá”, e o mundo caiu. Eu, como presidente do
Ibama, em 2018, neguei cinco blocos na Foz do Amazonas para a empresa Total,
também perfuração, pelos mesmos motivos, e nem saiu nos jornais. Saiu na página
do Ibama avisando que eu tinha negado.
Se
criou uma narrativa em que o bloco 59 virou o símbolo desse projeto
expansionista. Então, é o bloco na bacia sedimentar da Foz que está com o
licenciamento mais avançado, e, se eles conseguirem essa licença, o Ibama
provavelmente terá muita dificuldade em negar os futuros licenciamentos. Só no
leilão da ANP de 17 de junho agora, tem 47 blocos a mais na Foz do Amazonas.
Eles estão estudando mais de 100 na mesma bacia. É uma grande aposta que se tem
bastante petróleo na bacia sedimentar da Foz do Amazonas e o bloco 59 virou a
‘porteira’, virou o que obteria a licença de perfuração mais cedo.
Essa é
a questão: quando se trata do licenciamento desse bloco, o que o Ibama está
debatendo é se a Petrobras tem condições de agir em casos de incidentes, porque
mesmo sendo só perfuração — não é ainda produção, nas condições que aquele
local tem —, há risco de acidente. É uma área com correntes fortíssimas, muito
mais fortes do que a Petrobras está acostumada a trabalhar em outros locais da
nossa costa, e a Petrobras não mostrou, até agora, real capacidade de
gerenciamento em casos de acidentes. Estão debatendo a questão sobre os
animais, mas tudo isso faz parte do gerenciamento de acidentes. É o que pegou
quando neguei as licenças da empresa Total, e é o que está pegando agora.
Mas
isso não é a discussão, o Ibama não está discutindo o futuro do petróleo do
País, isso não cabe a ele; o que cabe é o licenciamento do 59 em si. O futuro
do petróleo no País, na minha opinião, deveria caber a todos os brasileiros,
porque nós estamos no meio de uma crise climática, com eventos extremos para
todo lado, durante o ano inteiro, e apostar em petróleo hoje é olhar para o
passado. Vai trazer dinheiro a que custo? Até quando o mundo vai aguentar esse
aumento no uso dos combustíveis fósseis? Eu acho que, em termos de opções para
o futuro do País, é um caminho extremamente equivocado, até do ponto de vista
econômico, que é um produto que vai cair a demanda ao longo dos anos. Tem que
cair, se a gente quiser sobreviver.
• Tem uma corrida contra o tempo, porque a
autorização para o bloco 59 vence no dia 18 de junho, que é um dia depois de
quando está marcado o leilão. Você usou uma expressão de que o presidente do
Ibama está sofrendo uma pressão com rompante de assédio. É por conta dessa data
de vencimento da autorização?
Sim,
essa autorização é um “ok” para os órgãos ambientais tocarem adiante, não
substitui o licenciamento, é um “ok” prévio que dura cinco anos. Os cinco anos
completam dia 18 de junho, exatamente por isso o leilão foi marcado um dia
antes. Esse “ok” que está vencendo não é só para os blocos da bacia sedimentar
da Foz, tem vários blocos que estão no leilão que estão com esse timing
vencido. E, se isso vencer, eu acredito que eles terão muita dificuldade para
renovar essa autorização dos órgãos ambientais no atual governo, com Marina no
Ministério, com outro olhar. Há cinco anos, nós estávamos no governo Bolsonaro.
Eles estão correndo contra o tempo, tem até prazos anteriores, que é o prazo de
manifestação de interesse das petroleiras.
Tem um
processo que a legislação certamente estabelece, mas estão com a autorização
dos órgãos ambientais para seguir adiante, realmente, é um dos grandes motivos
dessa pressão toda no presidente do Ibama, que eu considero absolutamente
inaceitável. O presidente do Ibama está tomando as decisões com base nos
pareceres da equipe técnica, e essa pressão, na verdade, só piora a situação. O
Ibama tem a Petrobras como um de seus grandes ‘clientes’, vamos dizer assim. No
período Lula 3, entre janeiro de 2023 e fevereiro deste ano, o Ibama deu 1.150
licenças e autorizações na diretoria de licenciamento ambiental; quase 30%
foram petróleo e gás. É, de longe, a área que tem mais licença, não tem porque
questionar alguma coisa do Ibama nessa área, porque eles estão priorizando ela.
O governo não tem do que se queixar; é totalmente injusto impor que o órgão
licenciador não possa falar um “não”. Essa é a questão: falar “Senhora empresa,
essa área é muito sensível, pouco estudada, com concorrentes fortíssimos, e o
que você me mostrou neste processo em termos de gestão de acidentes não é o
suficiente, então a resposta é não”. O órgão licenciador pode ter essa
liberdade. É um absurdo não dar espaço para isso.
• A queima de combustíveis fósseis é
responsável por 80% das emissões globais. Como você vê essa situação que o
Brasil está passando agora, de querer, por um lado, aumentar a exploração e,
por outro, ter toda uma agenda de liderança climática?
Eu acho
os dois papéis realmente incompatíveis: ser um megaprodutor de petróleo e, ao
mesmo tempo, um líder climático que quer que os outros países sigam pelo
exemplo, e o nosso exemplo não está bom. O Brasil não pode ser um petroestado e
um líder climático ao mesmo tempo.
Para
mim, a principal contradição na política ambiental do governo Lula — que tem
avanços no controle do desmatamento, evidentes, aliás — está justamente aí. O
desmatamento é a origem de 46% das emissões de gases de efeito estufa no caso
brasileiro (com base nos números de 2013), então, eles têm avanços. Eles
construíram a governança da política ambiental, da política climática em
específico e nós não podemos negar isso, mas não dá para querer ser um
megapetroestado, a essa altura do campeonato, com 2024 sendo o ano mais quente
já registrado na história, e o segundo mais quente sendo 2023. A curva do
aumento da temperatura está se verticalizando.
Então,
no lugar de conseguirmos reduzir as emissões e o aquecimento global, o mundo
inteiro está piorando. Mesmo que esse petróleo que venhamos a produzir seja
exportado, ele vai gerar aquecimento global onde for queimado. A Petrobras e
outras autoridades do governo costumam dizer que têm bons resultados em termos
de emissões de petróleo, mas, na verdade, estão falando da planta de produção
em si — que representa menos de 20% da emissão. Combustíveis fósseis emitem na
queima. Esse petróleo, que vai ser exportado, vai ser queimado em algum lugar,
pode até não contar nas emissões brasileiras diretamente, mas vai contar nas
emissões de algum outro país.
Eles
falam muito de demanda interna, mas o Brasil não precisa de mais petróleo para
isso. Hoje, metade do que produzimos já é exportado. Já é o principal produto
na nossa pauta de exportações — superou, no ano passado, a soja. O que eles
querem é crescer — e dinheiro. E a dúvida é: esse dinheiro vai trazer riqueza?
Uma riqueza com justiça social? O petróleo traz dinheiro, mas ele é altamente
concentrador de renda. É essa a riqueza que o País quer? Quem realmente vai
ganhar com isso? Porque o dano vai para todo mundo. Quem vai botar esse
dinheiro no bolso? Essa é a discussão que eu acho que deveria ser feita de
forma muito clara com a população.
Para
mim, esse caminho é olhar para trás. É um caminho para piorar uma situação de
crise climática que já ultrapassou todos os limites possíveis, e estamos
querendo contribuir para que essa crise não tenha solução. É uma solução
equivocada em termos de investimentos, em termos de políticas públicas, pode
ser um caminho sem retorno. A ministra Marina Silva costuma falar que a licença
do bloco 59 é uma questão apenas do Ibama – e ela está coberta de razão. Não
cabe recurso, quem tem que falar é o presidente do Ibama, e acabou. Mas eu acho
que também é uma questão da população brasileira; e nós temos que deixar muito
claro para eles quais são as consequências dessa opção equivocada.
• O PL da Devastação e a falsa promessa do
progresso
Imagine
viver em um país que, diante da maior emergência da história da humanidade — a
climática —, decide abrir mão de sua principal ferramenta de controle
ambiental. Um país que, em vez de fortalecer os mecanismos de prevenção e
combate, escolhe enfraquecer ainda mais as leis, desmontar a fiscalização,
silenciar povos tradicionais e abrir as porteiras para o desmatamento, a
grilagem e a poluição em larga escala.
Esse
país é o Brasil, e o projeto de lei 2159/2021 — apelidado de “PL da Devastação”
— é o retrato desse caminho suicida travestido de “modernização”.
Apresentado
como uma “Lei Geral de Licenciamento Ambiental”, o PL está sendo vendido pela
bancada ruralista como um marco de eficiência e desburocratização. Mas o que
ele entrega é o oposto: fragiliza os órgãos ambientais, ameaça comunidades,
ignora completamente a crise climática e ainda fere a Constituição. A começar
pela proposta de dispensar licenciamento para diversas atividades agropecuárias
em larga escala, ignorando decisões do Supremo Tribunal Federal e, na prática,
institucionalizando o desmatamento — especialmente no Cerrado e na Amazônia.
Sob o pretexto de acelerar o “desenvolvimento”, libera-se o uso predatório da
terra e o avanço sobre áreas protegidas,
premiando grileiros e desmatadores.
Mais do
que um retrocesso, o PL representa um risco direto à vida de milhões. A
proposta permite, por exemplo, que empreendimentos de médio porte façam
autolicenciamento ambiental — bastando preencher um formulário para começar a
operar, sem vistoria, estudo prévio ou qualquer análise técnica. Também permite
que as licenças ambientais sejam renovadas automaticamente, tornando as
vistorias uma exceção e enfraquecendo drasticamente a fiscalização. Em um país
que já sofre com desastres ambientais recorrentes — como os crimes de Mariana e
Brumadinho (MG), o crime que fez Maceió afundar, a poluição em Volta Redonda
(RJ) —, retirar o poder dos órgãos de controle é o mesmo que assinar um cheque
em branco para novos desastres.
O texto
ainda abre espaço para uma guerra regulatória ao permitir que estados e
municípios decidam, sozinhos, o que precisa ou não de licença. O resultado? Um
cenário de insegurança jurídica, decisões arbitrárias e conflitos
interestaduais crescentes: vence aquele que protege menos para atrair mais
indústrias. Além disso, o PL separa o licenciamento do uso da água, ignorando
completamente a gestão hídrica, o que pode agravar crises de escassez em várias
regiões. Nem mesmo o básico foi garantido: a palavra “clima” não aparece uma
única vez no texto. Isso, às vésperas da COP 30, em que o Brasil tenta se
posicionar como liderança global na pauta ambiental.
Como se
não bastasse, o projeto silencia povos e comunidades tradicionais,
desconsiderando terras indígenas não homologadas e territórios quilombolas não
titulados. A consulta à Funai, ao Iphan e ao ICMBio torna-se mera formalidade —
um rito simbólico que pode ser ignorado por quem quiser licenciar
empreendimentos em territórios tradicionais. Os conselhos ambientais perdem
poder, e decisões cruciais, como a exigência de Estudos de Impacto Ambiental,
passam a ser tomadas por quem emite a licença — abrindo espaço para decisões
tomadas sob pressão política, lobby ou corrupção.
Em ano
de Conferência do Clima no Brasil, desmantelar o licenciamento pode ter como
consequência aumentar o desmatamento, e assim, elevar, o Brasil — que hoje figura entre 0 6º e o 7º
lugar — ao topo dos maiores emissores de GEE do planeta, nos tornando um caso
emblemático de país subdesenvolvido com responsabilidade de país rico.
O PL
2159/2021 é um retrato cruel do que o capitalismo faz quando quer aumentar suas
taxas de lucro: acelera sua máquina de destruição, mesmo que isso signifique
colocar toda a sociedade em risco. O discurso do “progresso” nunca foi neutro —
e nunca foi para todos. Quando se fala em crescimento a qualquer custo, esse
custo costuma ser pago com a vida dos povos da floresta, das populações
periféricas, dos trabalhadores e trabalhadoras que vivem na linha de frente da
crise ecológica.
Não é
progresso se destrói a natureza. Não é progresso se seca os rios. Não é
progresso se envenena o ar. Isso é devastação, mascarada de desenvolvimento. A
luta contra o PL da Devastação deve ser a luta por um outro modelo de sociedade
— ecossocialista, popular, que coloque a vida, os biomas e os territórios no
centro das decisões e a ecologia como premissa de qualquer ação, no lugar da
economia e do lucro.
Precisamos
romper com essa lógica de destruição em nome do lucro. Precisamos pressionar os
parlamentares, ocupar as redes e as ruas, denunciar o que está em curso. Porque
o que está em jogo não é apenas a Amazônia ou o Pantanal — é o nosso futuro. A
conta do colapso climático já chegou, e se não barrarmos esse projeto agora,
estaremos assinando embaixo de uma tragédia anunciada.
Fonte:
((O))eco

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