quinta-feira, 29 de maio de 2025

Responsabilidade civil médica: o que os tribunais estão realmente dizendo sobre hospitais e médicos

A responsabilização civil por erro médico tem evoluído para muito além da análise meramente técnica da conduta do profissional de saúde. A jurisprudência brasileira tem consolidado um entendimento que desafia a antiga separação estanque entre responsabilidade subjetiva do médico e responsabilidade objetiva do hospital. Mais que uma questão de culpa, o debate gira em torno da arquitetura contratual que estrutura a prestação dos serviços de saúde.

Nos tribunais superiores, é crescente o reconhecimento da responsabilidade solidária entre médicos e hospitais em casos de falhas na prestação do serviço. A aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) tem sido determinante nesse processo. O artigo 14 da norma prevê que os fornecedores respondem, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos na prestação dos serviços. Isso inclui não apenas falhas técnicas, mas também vícios informacionais, como a ausência de consentimento informado.

Essa lógica impõe ao hospital um duplo papel: prestador direto de serviços auxiliares (como infraestrutura, higienização e insumos) e responsável indireto por atos praticados por profissionais com os quais mantém relação de subordinação ou dependência econômica. A relação jurídica entre médico e hospital, portanto, passa a ser central para a análise de responsabilização solidária.

O Superior Tribunal de Justiça tem reafirmado que, quando o médico está vinculado ao hospital — seja por vínculo empregatício, seja por contrato de prestação continuada de serviços — ambos respondem conjuntamente pelos danos causados, desde que demonstrada a culpa do profissional. Já nos casos em que o hospital apenas cede estrutura e o médico atua como profissional autônomo, a instituição tende a ser exonerada da responsabilidade técnica, respondendo apenas por eventuais falhas nos serviços acessórios.

Do ponto de vista processual, essa configuração tem impacto direto na tramitação das ações judiciais. O STJ restringe a admissibilidade da denunciação da lide, mecanismo por meio do qual o réu busca trazer ao processo um terceiro potencialmente responsável, em demandas consumeristas, justamente para preservar a celeridade e a efetividade da tutela jurisdicional. Ainda assim, em casos excepcionais, o tribunal admite a análise casuística da questão, sobretudo quando o hospital é demandado por suposta falha de terceiro com o qual mantém vínculo jurídico.

•        Seguros e consentimento informado

Esse cenário tem repercussões relevantes também nas relações de trabalho no setor da saúde. A pressão por eficiência e mitigação de riscos tem levado hospitais a reverem seus contratos com médicos, adotando cláusulas que delimitam com mais precisão os campos de responsabilidade técnica, administrativa e jurídica. Em paralelo, cresce o número de profissionais que contratam seguros de responsabilidade civil, como forma de proteção patrimonial e, em muitos casos, como pré-requisito para atuação em instituições de maior porte.

Spacca

No campo preventivo, a exigência do termo de consentimento informado tem se tornado um divisor de águas. A sua ausência, ainda que o procedimento tenha sido tecnicamente correto, pode levar à condenação por danos morais, como já reconhecido em diversos acórdãos. O documento não é mera formalidade, mas expressão do dever de informação previsto no CDC e no Código de Ética Médica. A judicialização da Medicina, nesse ponto, não decorre de um suposto excesso de litigância, mas da omissão reiterada em comunicar riscos de forma clara e acessível.

•        Novos padrões

A consequência mais relevante dessa nova realidade não é apenas o aumento do número de demandas judiciais, mas a reestruturação dos próprios padrões de atendimento. Hospitais têm investido na padronização de protocolos clínicos, em auditorias internas e em programas contínuos de capacitação profissional — não como iniciativas de marketing institucional, mas como instrumentos de gestão de risco jurídico.

Ao deslocar o centro da análise jurídica do ato médico isolado para o conjunto das relações jurídicas que compõem o atendimento em saúde, os tribunais têm contribuído para um novo paradigma. Trata-se de uma medicina cada vez menos centrada na figura do médico como único responsável e mais orientada à estrutura organizacional da saúde como um sistema integrado de prestação de serviços. Essa é, talvez, a mudança mais estrutural em curso no campo da responsabilidade civil médica.

•        Como agir nas gravações em consultas médicas feitas por pacientes. Por Mariana Mazuco Carlessi

A gravação de consultas médicas tornou-se uma prática cada vez mais comum no cotidiano de clínicas e consultórios, trazendo consigo uma série de dúvidas legais, éticas e práticas.

Entre elas, questiona-se com frequência se o paciente pode gravar a consulta médica sem autorização do profissional, se o acompanhante possui o mesmo direito e como o médico deve agir ao perceber que está sendo gravado sem consentimento.

Do ponto de vista jurídico, a resposta inicial é afirmativa: o paciente pode gravar a consulta, mesmo sem o consentimento prévio do médico, desde que participe diretamente do atendimento. Não há qualquer norma legal que proíba essa conduta.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em especial na MC nº 7.625/SP, de 2003, entendeu que a gravação feita por um dos interlocutores da conversa — no caso, o próprio paciente — é considerada lícita e pode ser utilizada como prova em ações judiciais. Essa gravação pode, inclusive, ter uma função útil e legítima, como auxiliar o paciente a reter melhor as orientações médicas, especialmente em situações mais complexas ou sensíveis.

No entanto, do ponto de vista das boas práticas, o ideal seria que o paciente informasse previamente ao médico sobre a intenção de gravar, permitindo que o médico organize melhor a lógica do atendimento para que o paciente faça melhor proveito.

Digno destacar que a relação médico-paciente deve estar fundada na confiança, transparência e respeito mútuo. Como destaca França (2020), o vínculo terapêutico pressupõe uma relação de confiança, e condutas que possam abalar essa estrutura devem ser tratadas com sensibilidade e prudência. Assim, ainda que legal, a gravação sem aviso pode impactar negativamente o relacionamento, sobretudo se não houver diálogo claro.

<><> Outra situação

Quando a gravação parte de um acompanhante, o cenário muda. A não ser que esse acompanhante esteja formalmente autorizado como representante legal do paciente — como nos casos de pais de menores, tutores ou curadores — ele não possui legitimidade para gravar a consulta. Se o faz por conta própria, mesmo estando presente na sala, essa prática pode ser considerada ilícita, principalmente se não houver o consentimento do médico e / ou do próprio paciente. A situação se aproxima da figura jurídica da escuta ambiental, que é vedada pelo ordenamento jurídico brasileiro.

O Conselho Federal de Medicina (CFM), por meio do Despacho Sejur 386/2016, reconhece que o paciente pode gravar seu atendimento, mas também reforça o direito do médico de recusar a continuidade da consulta nessas condições, bem como de ter sua imagem e voz preservadas.

Importante ressaltar que a gravação, embora possa ser lícita, não autoriza automaticamente sua divulgação. Compartilhar, publicar ou expor esse conteúdo sem o consentimento do médico constitui violação dos direitos da personalidade (voz, imagem e honra), protegidos pela Constituição (artigo 5º, inciso X) e outras legislações, incluindo a LGPD.

Assim, o uso indevido da imagem, da voz ou de trechos da consulta pode ensejar responsabilização civil, com eventual indenização por danos morais, e até configurar crime contra a honra, nos termos dos artigo 138, 139 e 140 do Código Penal, conforme o caso.

<><> Como proceder?

Se o médico perceber que está sendo gravado sem ter sido informado previamente, a lei não determina um procedimento padrão. Assim, a conduta deve ser avaliada conforme o caso concreto, levando em conta o comportamento do paciente, o contexto do atendimento e o possível impacto na relação de confiança.

O mais recomendado é manter a serenidade e buscar um diálogo respeitoso. Muitas vezes, a gravação não tem o objetivo de prejudicar, mas sim de reforçar a segurança do paciente. Uma conversa clara, firme e respeitosa pode ser suficiente para esclarecer a situação e preservar o bom vínculo.

Se, mesmo após o diálogo, o médico se sentir desconfortável, pode solicitar de forma educada que a gravação seja interrompida. É aconselhável registrar o ocorrido no prontuário de maneira objetiva e sem juízo de valor. Caso entenda que a relação profissional foi comprometida, e desde que não se trate de situação de urgência ou emergência, o médico poderá encerrar a consulta ou até renunciar ao acompanhamento do paciente, nos termos do artigo 36, §1º do Código de Ética Médica.

Outra medida recomendável é evitar confrontos ou atitudes impulsivas. Em vez disso, o médico deve buscar orientação de assessoria jurídica, que poderá indicar medidas preventivas, como a adoção de termos de confidencialidade (NDAs), ou medidas legais caso a gravação seja divulgada de forma indevida. Como reforça Fernandes (2000), a prudência e o registro documental são pilares fundamentais para a segurança jurídica do profissional da saúde, especialmente diante de potenciais conflitos.

Como forma de prevenção, é altamente indicado que o consultório adote uma política clara sobre gravações. Isso pode incluir avisos visuais afixados no ambiente, informando que qualquer gravação deve ser previamente comunicada, além da utilização de termos de consentimento e outros documentos que formalizem as regras da relação médico-paciente.

Mais importante do que a formalidade, no entanto, é a manutenção de um canal de comunicação aberto com os pacientes, acolhendo suas dúvidas e inseguranças de forma empática e profissional.

Em resumo, gravar a consulta médica é um direito do paciente, mas deve ser exercido com responsabilidade e respeito. A divulgação não autorizada desse material é passível de sanções legais, e o médico tem o direito de proteger sua imagem, sua voz e a integridade da relação profissional. Com equilíbrio, bom senso e apoio jurídico, é possível lidar com essas situações de forma ética, segura e construtiva.

 

Fonte: Por Sandro Schulze, para Conjur

 

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