Responsabilidade
civil médica: o que os tribunais estão realmente dizendo sobre hospitais e
médicos
A
responsabilização civil por erro médico tem evoluído para muito além da análise
meramente técnica da conduta do profissional de saúde. A jurisprudência
brasileira tem consolidado um entendimento que desafia a antiga separação
estanque entre responsabilidade subjetiva do médico e responsabilidade objetiva
do hospital. Mais que uma questão de culpa, o debate gira em torno da
arquitetura contratual que estrutura a prestação dos serviços de saúde.
Nos
tribunais superiores, é crescente o reconhecimento da responsabilidade
solidária entre médicos e hospitais em casos de falhas na prestação do serviço.
A aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) tem sido determinante nesse
processo. O artigo 14 da norma prevê que os fornecedores respondem,
independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos na prestação dos
serviços. Isso inclui não apenas falhas técnicas, mas também vícios
informacionais, como a ausência de consentimento informado.
Essa
lógica impõe ao hospital um duplo papel: prestador direto de serviços
auxiliares (como infraestrutura, higienização e insumos) e responsável indireto
por atos praticados por profissionais com os quais mantém relação de
subordinação ou dependência econômica. A relação jurídica entre médico e
hospital, portanto, passa a ser central para a análise de responsabilização
solidária.
O
Superior Tribunal de Justiça tem reafirmado que, quando o médico está vinculado
ao hospital — seja por vínculo empregatício, seja por contrato de prestação
continuada de serviços — ambos respondem conjuntamente pelos danos causados,
desde que demonstrada a culpa do profissional. Já nos casos em que o hospital
apenas cede estrutura e o médico atua como profissional autônomo, a instituição
tende a ser exonerada da responsabilidade técnica, respondendo apenas por
eventuais falhas nos serviços acessórios.
Do
ponto de vista processual, essa configuração tem impacto direto na tramitação
das ações judiciais. O STJ restringe a admissibilidade da denunciação da lide,
mecanismo por meio do qual o réu busca trazer ao processo um terceiro
potencialmente responsável, em demandas consumeristas, justamente para
preservar a celeridade e a efetividade da tutela jurisdicional. Ainda assim, em
casos excepcionais, o tribunal admite a análise casuística da questão,
sobretudo quando o hospital é demandado por suposta falha de terceiro com o
qual mantém vínculo jurídico.
• Seguros e consentimento informado
Esse
cenário tem repercussões relevantes também nas relações de trabalho no setor da
saúde. A pressão por eficiência e mitigação de riscos tem levado hospitais a
reverem seus contratos com médicos, adotando cláusulas que delimitam com mais
precisão os campos de responsabilidade técnica, administrativa e jurídica. Em
paralelo, cresce o número de profissionais que contratam seguros de
responsabilidade civil, como forma de proteção patrimonial e, em muitos casos,
como pré-requisito para atuação em instituições de maior porte.
Spacca
No
campo preventivo, a exigência do termo de consentimento informado tem se
tornado um divisor de águas. A sua ausência, ainda que o procedimento tenha
sido tecnicamente correto, pode levar à condenação por danos morais, como já
reconhecido em diversos acórdãos. O documento não é mera formalidade, mas
expressão do dever de informação previsto no CDC e no Código de Ética Médica. A
judicialização da Medicina, nesse ponto, não decorre de um suposto excesso de
litigância, mas da omissão reiterada em comunicar riscos de forma clara e
acessível.
• Novos padrões
A
consequência mais relevante dessa nova realidade não é apenas o aumento do
número de demandas judiciais, mas a reestruturação dos próprios padrões de
atendimento. Hospitais têm investido na padronização de protocolos clínicos, em
auditorias internas e em programas contínuos de capacitação profissional — não
como iniciativas de marketing institucional, mas como instrumentos de gestão de
risco jurídico.
Ao
deslocar o centro da análise jurídica do ato médico isolado para o conjunto das
relações jurídicas que compõem o atendimento em saúde, os tribunais têm
contribuído para um novo paradigma. Trata-se de uma medicina cada vez menos
centrada na figura do médico como único responsável e mais orientada à
estrutura organizacional da saúde como um sistema integrado de prestação de
serviços. Essa é, talvez, a mudança mais estrutural em curso no campo da
responsabilidade civil médica.
• Como agir nas gravações em consultas
médicas feitas por pacientes. Por Mariana Mazuco Carlessi
A
gravação de consultas médicas tornou-se uma prática cada vez mais comum no
cotidiano de clínicas e consultórios, trazendo consigo uma série de dúvidas
legais, éticas e práticas.
Entre
elas, questiona-se com frequência se o paciente pode gravar a consulta médica
sem autorização do profissional, se o acompanhante possui o mesmo direito e
como o médico deve agir ao perceber que está sendo gravado sem consentimento.
Do
ponto de vista jurídico, a resposta inicial é afirmativa: o paciente pode
gravar a consulta, mesmo sem o consentimento prévio do médico, desde que
participe diretamente do atendimento. Não há qualquer norma legal que proíba
essa conduta.
A
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em especial na MC nº 7.625/SP,
de 2003, entendeu que a gravação feita por um dos interlocutores da conversa —
no caso, o próprio paciente — é considerada lícita e pode ser utilizada como
prova em ações judiciais. Essa gravação pode, inclusive, ter uma função útil e
legítima, como auxiliar o paciente a reter melhor as orientações médicas,
especialmente em situações mais complexas ou sensíveis.
No
entanto, do ponto de vista das boas práticas, o ideal seria que o paciente
informasse previamente ao médico sobre a intenção de gravar, permitindo que o
médico organize melhor a lógica do atendimento para que o paciente faça melhor
proveito.
Digno
destacar que a relação médico-paciente deve estar fundada na confiança,
transparência e respeito mútuo. Como destaca França (2020), o vínculo
terapêutico pressupõe uma relação de confiança, e condutas que possam abalar
essa estrutura devem ser tratadas com sensibilidade e prudência. Assim, ainda
que legal, a gravação sem aviso pode impactar negativamente o relacionamento,
sobretudo se não houver diálogo claro.
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Outra situação
Quando
a gravação parte de um acompanhante, o cenário muda. A não ser que esse
acompanhante esteja formalmente autorizado como representante legal do paciente
— como nos casos de pais de menores, tutores ou curadores — ele não possui
legitimidade para gravar a consulta. Se o faz por conta própria, mesmo estando
presente na sala, essa prática pode ser considerada ilícita, principalmente se
não houver o consentimento do médico e / ou do próprio paciente. A situação se
aproxima da figura jurídica da escuta ambiental, que é vedada pelo ordenamento
jurídico brasileiro.
O
Conselho Federal de Medicina (CFM), por meio do Despacho Sejur 386/2016,
reconhece que o paciente pode gravar seu atendimento, mas também reforça o
direito do médico de recusar a continuidade da consulta nessas condições, bem
como de ter sua imagem e voz preservadas.
Importante
ressaltar que a gravação, embora possa ser lícita, não autoriza automaticamente
sua divulgação. Compartilhar, publicar ou expor esse conteúdo sem o
consentimento do médico constitui violação dos direitos da personalidade (voz,
imagem e honra), protegidos pela Constituição (artigo 5º, inciso X) e outras
legislações, incluindo a LGPD.
Assim,
o uso indevido da imagem, da voz ou de trechos da consulta pode ensejar
responsabilização civil, com eventual indenização por danos morais, e até
configurar crime contra a honra, nos termos dos artigo 138, 139 e 140 do Código
Penal, conforme o caso.
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Como proceder?
Se o
médico perceber que está sendo gravado sem ter sido informado previamente, a
lei não determina um procedimento padrão. Assim, a conduta deve ser avaliada
conforme o caso concreto, levando em conta o comportamento do paciente, o
contexto do atendimento e o possível impacto na relação de confiança.
O mais
recomendado é manter a serenidade e buscar um diálogo respeitoso. Muitas vezes,
a gravação não tem o objetivo de prejudicar, mas sim de reforçar a segurança do
paciente. Uma conversa clara, firme e respeitosa pode ser suficiente para
esclarecer a situação e preservar o bom vínculo.
Se,
mesmo após o diálogo, o médico se sentir desconfortável, pode solicitar de
forma educada que a gravação seja interrompida. É aconselhável registrar o
ocorrido no prontuário de maneira objetiva e sem juízo de valor. Caso entenda
que a relação profissional foi comprometida, e desde que não se trate de
situação de urgência ou emergência, o médico poderá encerrar a consulta ou até
renunciar ao acompanhamento do paciente, nos termos do artigo 36, §1º do Código
de Ética Médica.
Outra
medida recomendável é evitar confrontos ou atitudes impulsivas. Em vez disso, o
médico deve buscar orientação de assessoria jurídica, que poderá indicar
medidas preventivas, como a adoção de termos de confidencialidade (NDAs), ou
medidas legais caso a gravação seja divulgada de forma indevida. Como reforça
Fernandes (2000), a prudência e o registro documental são pilares fundamentais
para a segurança jurídica do profissional da saúde, especialmente diante de
potenciais conflitos.
Como
forma de prevenção, é altamente indicado que o consultório adote uma política
clara sobre gravações. Isso pode incluir avisos visuais afixados no ambiente,
informando que qualquer gravação deve ser previamente comunicada, além da
utilização de termos de consentimento e outros documentos que formalizem as
regras da relação médico-paciente.
Mais
importante do que a formalidade, no entanto, é a manutenção de um canal de
comunicação aberto com os pacientes, acolhendo suas dúvidas e inseguranças de
forma empática e profissional.
Em
resumo, gravar a consulta médica é um direito do paciente, mas deve ser
exercido com responsabilidade e respeito. A divulgação não autorizada desse
material é passível de sanções legais, e o médico tem o direito de proteger sua
imagem, sua voz e a integridade da relação profissional. Com equilíbrio, bom
senso e apoio jurídico, é possível lidar com essas situações de forma ética,
segura e construtiva.
Fonte:
Por Sandro Schulze, para Conjur

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