Como
estão crianças com microcefalia, 10 anos após a epidemia de zika
Anne
Caroline Rosa ajeita o filho Moisés no colo e lhe dá um cheirinho no pescoço,
enquanto sua mais nova, Maria, faz cafuné na cabeça do irmão.
O
menino de 9 anos direciona o olhar para as duas e esboça um sorriso. Moisés não
fala e não se movimenta.
Ele é
uma das quase duas mil crianças que nasceram com microcefalia por zika entre
2015 e 2016 no Brasil, filhos de mulheres que foram infectadas pelo vírus
durante a gestação.
Transmitida
pelo mesmo mosquito da dengue, a zika naquela época se espalhou por dezenas de
territórios e fez do país, que se preparava para sediar uma Olimpíada, o
epicentro da primeira grande epidemia já registrada da doença.
A
proliferação de casos levou a Organização Mundial de Saúde (OMS) a declarar em
fevereiro de 2016 emergência de saúde pública de importância internacional,
alerta que se estendeu até novembro daquele ano.
No
Brasil, onde o mundo passou meses acompanhando com apreensão o avanço da
doença, o fim da emergência nacional foi decretado seis meses depois, em maio
de 2017.
Do sofá
da sala de casa, um imóvel de dois quartos no andar térreo de um residencial do
Minha Casa Minha Vida com 4 mil apartamentos em Maceió (AL), Rosa sobe a camisa
de Moisés e mostra o tubo que sai da barriga do menino.
Ele
passou por uma cirurgia de gastrostomia em 2022 porque tinha cada vez mais
dificuldade de se alimentar pela boca.
A
microcefalia é apenas uma das sequelas deixadas pela passagem do vírus no
cérebro dos bebês quando estão no ventre das mães.
A
síndrome congênita associada à infecção pelo vírus zika (SCZ) é caracterizada
por um espectro de alterações: problemas cardíacos, nas articulações,
dificuldade de coordenar a mastigação e a deglutição.
Com a
fala rápida e a voz cheia de energia, Rosa diz que já perdeu as contas das
vezes em que a sonda do filho foi objeto da curiosidade de estranhos na rua.
"A
gente anda muito de ônibus, às vezes está muito quente, tenho que dar água, e o
povo fica olhando…"
Para
dar água a Moisés, ela encaixa um funil na ponta do tubo e derrama o líquido,
que vai direto para o estômago da criança.
"Tem
uns que mexem e falam assim: 'Bichinho…'. Eu digo: 'Bichinho não, viu? Ele é
uma criança. Tem a deficiência dele, mas não é 'bichinho', não'. Eu não abaixo
a cabeça. Boto um sorriso no rosto, beijo ele e pronto."
• Mulheres, as principais vítimas do zika
Rosa é
uma das mulheres afetadas pela zika que a reportagem visitou em Alagoas dez
anos depois do surto de microcefalia, que se concentrou especialmente no
Nordeste e em famílias com poucos recursos.
Em uma
década, cada uma viveu trajetórias singulares, mas não faltaram experiências
parecidas, que acabaram fazendo delas um coletivo e as aproximaram —
literalmente, em alguns casos.
Abraçando
os cuidados dos filhos, a maioria não encontrou alternativa a não ser parar de
trabalhar ou de estudar. Muitas sobrevivem com o Benefício de Prestação
Continuada (BPC) — salário mínimo pago, nesse caso, às pessoas com deficiência
em condição de pobreza — e colecionam relatos de brigas na Justiça para
garantir de cirurgias de média e alta complexidade a cadeiras de rodas,
medicamentos e latas de leite.
As mães
de crianças com síndrome congênita pelo zika de certa forma foram virando
especialistas na condição dos filhos, se apropriaram dos termos da medicina que
mal conheciam e hoje falam com desenvoltura sobre sondas gástricas, sobre
aspiração traqueal e sobre neuroplasticidade, que é a capacidade do cérebro de
se adaptar após sofrer uma lesão.
Quase
300 já perderam os filhos, conforme os dados mais recentes do governo, de 2024,
e pouco mais de 1,5 mil estão vendo as crianças se aproximarem dos 10 anos de
vida, em algumas situações com melhora das sequelas e em tantas outras com
piora no quadro de saúde — como é o caso de Moisés, que hoje não fica mais em
pé e tem as mãos atrofiadas.
Muitas
foram abandonadas pelos maridos. Os relatos são cheios de momentos de
ansiedade, depressão e solidão.
Rosa
perdeu os pais quando era criança, não tem familiares próximos com quem possa
contar e se separou do marido quando descobriu que ele estava
"aprontando".
Ela
conta que o pai das crianças dá pouca assistência e praticamente não leva os
filhos para passear, apesar dos pedidos insistentes dela. Rosa acha que ele tem
vergonha de andar com Moisés em público.
"Saio
com ele de ônibus para cima e para baixo, vou para o shopping, levo para a
piscina, levo para a praia", diz Rosa.
"A
mãe tem que enfrentar o preconceito, que é em todo canto que tem, né?",
diz, olhando para Moisés. "Eu não tenho apoio de ninguém", ela
continua. "Sou mãe solo, vivo para os dois."
E
namorado?
"Ai,
não vou mentir, eu já arrumei namorado, mas a maioria dos homens, quando vê que
tem uma criança que depende de você… é muito diferente", relata a
alagoana.
"E
eu já deixo bem claro que, se ele quiser ficar comigo, vai ter que aceitar meus
filhos também."
• 'Elas são meu esteio'
Quando
precisa, Rosa recorre a duas vizinhas, a pernambucana Rute Freires e Lenice
França, ambas também mães de crianças com síndrome congênita pelo zika, Tamara
e Enzo.
Unidas
pelo zika, as três se tornaram melhores amigas e a rede de apoio que nunca
tiveram.
Foi por
meio dela que Freires teve a chance de retomar os estudos e concluir o ensino
médio. No último ano, França e Rosa cuidaram de Tamara enquanto ela cursava o
ensino noturno.
"Elas
são meu esteio", diz Freires, que agora planeja estudar Pedagogia e sonha
em um dia comprar um carro.
França
aprendeu a manusear a sonda de gastrostomia para ajudar as amigas. Seu filho
Enzo é uma das crianças com síndrome congênita pelo zika que falam, têm
mobilidade e alguma autonomia.
Por
essa razão, ela nunca pensou que alimentaria uma criança por sonda: "Eu
tremia só de pensar, mas aprendi".
• 'É a gente que segura uma a mão da
outra'
No
residencial em que as três moram, são quase 15 as mulheres com filhos afetados
pela síndrome congênita pelo zika. Não é coincidência: todas fazem parte da
Associação das Famílias de Anjos do Estado de Alagoas (Afaeal), por meio da
qual elas se organizaram para pleitear os apartamentos.
Desde
2009, a legislação dá prioridade de acesso ao Minha Casa Minha Vida a famílias
com pessoas com deficiência e, em 2016, uma portaria do Ministério das Cidades
passou a priorizar as famílias com crianças com microcefalia.
"O
nosso intuito foi que elas ficassem uma perto na outra para se ajudarem, para
serem uma rede de apoio, que a grande maioria não tem", diz Alessandra
Hora, fundadora e presidente da associação.
"Eu
falo que nós, mulheres, a gente é quem aprendeu a se mobilizar e é a gente que
segura a mão da outra", diz ela, que abraçou a criação do neto Erik,
afetado pela síndrome congênita pelo zika, depois de perder o filho
assassinado.
Para as
que não estão geograficamente próximas, a tecnologia encurta a distância. A
maioria das mulheres se comunica diariamente em grupos pelo WhatsApp, tiram
dúvidas umas com as outras, desabafam.
"Várias
mães já vieram conversar comigo de madrugada por questão de suicídio. E a gente
conversando dá reviravolta, né, tira isso da cabeça", pontua Alessandra.
A
reportagem da BBC News Brasil a encontrou na sede da associação, no bairro
Benedito Bentes, também na periferia de Maceió. A Afaeal hoje reúne 425
associados, entre familiares de crianças com microcefalia pela síndrome
congênita do zika e por outras causas.
O
imóvel amplo, com sala de fisioterapia e serviço de psicólogo, começou como um
casebre sem vidro na porta, que molhava quando chovia. Foi emprestado pela mãe
de Alessandra, uma senhorinha pequena que anda pela casa com o passo apressado
distribuindo sorrisos.
A ideia
de montar uma associação nasceu em 2017, quando Alessandra e outras mulheres
sentiram que o grupo de apoio formado pela Secretaria Municipal de Saúde para
dar apoio às famílias na fase mais aguda da epidemia de zika não estava dando o
suporte de que precisavam.
Rute
Freires lembra, por exemplo, que chegaram a negar atendimento à filha, Tamara,
porque elas não eram naturais de Alagoas.
Com o
tempo, a associação construiu contatos com médicos e especialistas da área e
passou a ter suporte de organizações como a Anis — Instituto de Bioética,
Direitos Humanos e Gênero, que foca em políticas públicas para promoção da
cidadania, igualdade e direitos humanos. Alessandra foi alfabetizada nos
meandros do terceiro setor — e da política.
"A
gente faz o papel do Estado quando ele não faz, então a gente precisa estar
dentro do Orçamento [público], a gente precisa saber como briga, como
cobra", afirma.
A
associação faz parte de pelo menos quatro conselhos municipais e um estadual,
conseguiu uma van financiada pelo Estado para recolher as doações de alimentos
oferecidas por feirantes e chegou a captar recursos de emendas parlamentares de
deputados estaduais e vereadores de Maceió.
Alessandra
chegou a se candidatar pelo União Brasil a deputada estadual em 2022
"sabendo que ia perder, para dar visibilidade à associação".
E, em
janeiro, uma reviravolta a levou a Brasília, onde ela vinha fazendo política
com líderes de redes de mulheres com "crianças da zika" de Estados
como Ceará, Tocantins, Pernambuco e Rio Grande do Norte.
Depois
de dez anos tramitando no Congresso, um projeto de lei que previa reparo
financeiro às famílias de crianças com síndrome congênita pelo zika foi
aprovado em dezembro de 2024, mas vetado no mês seguinte pelo presidente Luiz
Inácio Lula da Silva.
O PL
6064/23 previa uma indenização de R$ 50 mil e o pagamento de uma pensão
vitalícia equivalente ao teto da Previdência às crianças com síndrome congênita
pelo zika.
Criticado,
o governo federal argumentou ter substituído o PL por uma medida provisória que
previa uma indenização única de R$ 60 mil, regulamentada por meio de portaria
no último dia 20 de maio.
À BBC
News Brasil, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência declarou que o
projeto foi vetado "por não obedecer à Lei de Diretrizes
Orçamentárias", argumentando que ele criaria "despesa obrigatória de
caráter continuado sem a devida estimativa de impacto orçamentário e
financeiro, identificação da fonte de custeio, indicação de medida de
compensação e sem a fixação de cláusula de vigência para o benefício
tributário".
As
famílias consideram o valor injusto e insuficiente e, reunidas em torno da
Unizika, que reúne associações de familiares de crianças com síndrome congênita
pelo zika, vinham se encontrando nos últimos meses com dezenas de parlamentares
de todo o espectro ideológico, da deputada Taliria Petrone (PSOL-RJ) às
senadoras Mara Gabrilli (PSD-SP) e Damares Alves (Republicanos-DF), em busca de
apoio para derrubar o veto presidencial ou para costurar um novo projeto de lei
que se aproximasse do anterior.
Elas
também tentaram, sem sucesso, reuniões com o presidente, o vice-presidente e a
primeira-dama. A reportagem questionou os gabinetes sobre os pedidos de
audiência e só teve retorno sobre o assunto da vice-presidência, que afirmou
ter recebido representantes da Unizika em 2023 e disse estar analisando o
pedido feito neste ano para verificar quando seria possível atendê-lo.
• 'É um tratamento caro'
A
maioria das mães sabe exatamente o que faria com o dinheiro. Anne Caroline
Rosa, por exemplo, que hoje vive com o salário mínimo do BPC, começaria
contratando um plano de saúde para Moisés.
Também
colocaria um ar condicionado no quarto dele e providenciaria para ele novas
órteses, que são dispositivos ortopédicos para alinhar melhor o corpo.
"A
maioria dessas crianças, elas estão ficando atrofiadas. A gente dá entrada numa
órtese do pé, da mão e, quando vai sair, já não dá mais na criança", ela
diz, queixando-se da demora no Sistema Único de Saúde (SUS).
"É
um tratamento que custa caro", diz a infectologista Mardjane Lemos, que
diagnosticou os primeiros casos de síndrome congênita pelo zika em Alagoas em
2015.
O dano
causado pelo vírus no cérebro dos bebês é irreversível, mas, segundo ela, é
possível garantir qualidade de vida para as crianças com um acompanhamento de
especialistas, por exemplo, em fisioterapia, fonoaudiologia, odontologia,
terapia ocupacional.
"São
muitos profissionais envolvidos, tem uma rede de cuidados muito intensa. Não
tem plano de saúde que oferte tudo que uma criança dessa necessite — no SUS,
então, é o básico", ela completa, falando à reportagem no pequeno jardim
nos fundos do Hospital de Doenças Tropicais de Maceió, onde trabalha.
E esses
cuidados, acrescenta a médica, são fundamentais para determinar o grau de
comprometimento da criança, que também depende do próprio dano provocado pelo
vírus.
Lemos
diz que é difícil estimar uma expectativa de vida, mas que muitas têm morrido
antes do que se esperava por problemas que seriam contornáveis, "porque
não tiveram uma pneumonia diagnosticada a tempo, porque não conseguiram acesso
a uma cirurgia de gastrostomia".
Na
visão da especialista, o Estado errou em não dar "acolhimento rápido e
oportuno a essas crianças, para garantir que elas tivessem estimulação adequada
e conseguissem ter uma vida mais próxima do normal possível", e por não
proporcionar condições para que as mães pudessem voltar a estudar ou ao mercado
de trabalho.
Falhou
também, ela prossegue, em prevenir o surto de zika que deu início a toda essa
história dez anos atrás, com a falta de saneamento básico e de políticas
robustas para controlar o vetor de transmissão, que é o mosquito.
• Perguntas sem resposta
Os
casos de zika e de nascimentos de bebês com síndrome congênita pelo zika
diminuíram drasticamente, mas, ela alerta, isso não significa que um novo surto
não possa voltar a acontecer, já que não se sabe exatamente o que provocou o
declínio.
"O
grande boom de casos parece ter cessado espontaneamente. Então, isso leva à
teoria de que há alguma imunidade natural. Quanto tempo ela dura? Ela é real?
Nós não sabemos", pontua Lemos.
Essas
são algumas entre muitas perguntas que, dez anos depois, seguem sem resposta.
Outra
questão importante ainda em aberto é por que o Nordeste foi mais afetado.
O mais
recente boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, de março de 2024, fala
que 1.828 casos de síndrome congênita pelo zika foram confirmados no país entre
2015 e 2023, sendo 1.380 (75,5%) deles no Nordeste. Outros 2.877 casos
permanecem em investigação, sendo 1.898 (65,9%) de nascimentos entre 2019 e
2023.
Há
pesquisas que sugerem que a maior incidência na região pode estar relacionada
com subnutrição materna, já que a maior parte das mães de bebês com
microcefalia vivia em situação de vulnerabilidade social.
Outras
estudam uma possível relação com a contaminação da água de reservatórios
durante a seca severa de 2015 por bactérias que produzem uma neurotoxina que
pode ter potencializado a ação do vírus zika no cérebro dos bebês.
Especialistas
como a biomédica Patrícia Garcez e o neurocientista Stevens Rehen, que
estiveram à frente dessas duas investigações, disseram à BBC News Brasil
acreditar que a resposta possa ser uma combinação desses e de outros fatores.
"A
gente sabe um pouquinho mais agora que tem fatores ambientais que podem estar
contribuindo para essa maior prevalência, mas a gente não entende completamente
como eles estão contribuindo. E são poucos os estudos", afirma Garcez, que
atualmente dá aulas na King's College London, na Inglaterra.
Mardjane
Lemos concorda: "Sinto que algumas lacunas de resposta estão muito
atreladas ao fato de que tivemos uma população afetada que é negligenciada por
políticas públicas, que não estão nos nichos de pesquisa, que estão mais
concentrados no Sul e Sudeste".
Fonte:
BBC News Brasil

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