Extrema
direita ataca saúde pública para transformar sua mentira em voto
“Hoje
vou virar jacaré”. Era 2021, a vacinação contra a covid-19 já havia iniciado,
apesar do atraso, e essa frase se tornou um símbolo da desinformação acerca da
vacina – que já existia antes mesmo do início da campanha de imunização como
parte da falácia antivacina alavancada pelo líder da extrema direita
brasileira, Jair Bolsonaro.
As
vacinas de covid-19 ainda estão no calendário vacinal, mas a procura é baixa,
mesmo no grupo prioritário, que ainda corre riscos. As consequências da
desinformação propagada na pandemia também são evidentes até hoje na redução da
cobertura de outras vacinas.
O
crescimento de movimentos antivacina e anticiência no Brasil vem acompanhado do
fortalecimento da extrema direita. Essas narrativas são incubadoras de
ideologias extremistas. Há um propósito nisso, e a pandemia não foi a primeira
nem será a última vez em que a saúde pública e a ciência são instrumentalizadas
para controle político. Afinal, a desinformação em saúde é uma engrenagem bem
lubrificada de um projeto que transforma medo em capital político.
Em
2014, quando o governo Dilma Rousseff enfrentou uma campanha difamatória contra
a vacina do HPV — acusada, sem evidências, de incentivar a promiscuidade sexual
em adolescentes —, o Brasil assistia ao nascimento de uma estratégia perigosa:
criar pânicos morais, depois acolher as dúvidas e os medos e, ao mesmo tempo,
deslegitimar a ciência, as instituições, o SUS e a saúde pública.
Boatos
ligavam a vacina a uma “agenda globalista”, e os relatos de eventos adversos,
como convulsões e desmaios, desencorajaram adolescentes a se imunizar. Em 2019,
um estudo conduzido por pesquisadores da USP concluiu que os eventos estavam
relacionados a crises psicogênicas geradas pelo medo, e não à vacina. Enquanto
a desinformação viralizou, meninas deixaram de ser protegidas contra um vírus
que causa câncer.
A
extrema direita aprendeu a encantar pela desconfiança, isso tornou-se seu
método. A partir das ideias discutidas pelo pesquisador Paolo Demuru em
“Políticas do Encanto”, fica evidente que movimentos antivacina e anticiência
não vendem apenas mentiras. Vendem histórias.
São
“heróis” que desafiam “instituições corruptas”, “verdades ocultas” reveladas
nas redes sociais, “liberdade contra o controle da OMS”. São narrativas que
exploram a vulnerabilidade de quem se sente abandonado pelo Estado — seja na
fila do SUS, seja na dificuldade em ingressar em uma universidade pública — e
convertem essa dor em combustível para o ódio.
Quando
uma pessoa afirma, sem pudor, que “as vacinas estão matando”, ela não está
discutindo ciência: está oferecendo um lugar no palco da conspiração. Um lugar
onde o medo é acolhido, o pertencimento a uma comunidade estimula o ódio contra
os pseudo-inimigos e o ódio vira voto.
Para
fortalecer essas narrativas, instituições são sabotadas. Em São Paulo, o
governo de Tarcísio de Freitas, do Republicanos, deixa institutos de pesquisa
sofrerem com defasagens em pessoal, orçamento e estrutura, inviabilizando
estudos e a continuidade de prestação de serviços aos cidadãos. O sucateamento
é calculado: ciência forte é inimiga da narrativa anticiência.
Não à
toa, a Organização Mundial da Saúde, a OMS — alvo recorrente da extrema direita
global — enfrenta ataques coordenados. Donald Trump retirou os EUA da
organização, seguido por Javier Milei, que fez o mesmo com a Argentina. O
deputado federal licenciado Eduardo Bolsonaro, do PL de SP, prometeu que seu
pai, Jair, fará o mesmo caso volte a ser presidente.
O
objetivo? Desmontar qualquer autoridade que conteste o obscurantismo, pois o
obscurantismo favorece o caos — e quem lucra com o caos? É no caos que o
autoritarismo ganha espaço e se fortalece pelo medo. O medo pode ser o carimbo
que certifica intervenções anti-democráticas. E é um poder absoluto, acima da
democracia, que sustenta a extrema direita.
Enquanto
isso, nossa resposta se limita ao campo da razão. Cientistas e jornalistas
insistem em desmentir notícias falsas com gráficos e estudos revisados por
pares, como se dados fossem suficientes para desfazer encantamentos. A batalha
não é entre fatos e mentiras, é entre esperança e desespero.
Enquanto
a ciência fala de probabilidades, quem desinforma vende certezas. Enquanto nós
citamos a OMS e as instituições, eles oferecem o acolhimento de uma comunidade.
Para quebrar o feitiço, precisamos ir além da desmistificação.
• ‘As big techs são coniventes com a
desinformação’
É
preciso responsabilizar quem desinforma, cassar registros de profissionais que
lucram com desinformação e narrativas antivacina e exigir que as plataformas de
redes sociais removam conteúdos anticiência antes que eles viralizem.
As big
techs são coniventes com a desinformação, e não há nenhuma moderação para
impedir que a desinformação em saúde, como os conteúdos antivacina, estimulem o
recrutamento e a formação de comunidades com ideologias extremistas.
Em
2017, a Alemanha implementou uma lei que multa redes sociais em até 50 milhões
de euros por falhas na remoção de conteúdos extremistas. Por aqui, o Congresso
ainda debate se regulamentar as plataformas é censura. Precisamos reconhecer
que a saúde pública e a ciência são territórios de guerra política.
Quando
crianças morrem por sarampo em pleno século XXI, isso mostra o triunfo de um
projeto que enxerga corpos como moeda de troca para a obtenção de votos. A
mesma lógica que nega vacinas também criminaliza abortos legais, patologiza
pesssoas LGBTQIA+ e planeja atentados e massacres.
A
desinformação não é o fim, é o caminho de uma ofensiva que usa da dúvida e do
medo para encantar — e do encanto para manipular e obter poder. A disputa nessa
guerra política não deve ser apenas na defensiva, é preciso atacar. Para ganhar
essa guerra, a estratégia não é destruir o feitiço e, sim, enfraquecer o
feiticeiro.
• Brasil já esqueceu a pandemia, mas
precisa lembrar para sempre o negacionismo e a omissão de Bolsonaro
Em uma
quarta-feira que parecia mais um dia de uma semana normal, a Organização
Mundial da Saúde, OMS, caracterizou a emergência de covid-19 como pandemia. O
Brasil, que já tinha mais de 50 casos confirmados, iniciava ali não apenas uma
crise sanitária sem precedentes como também uma guerra entre a ciência e o
obscurantismo.
O dia
11 de março de 2020 ficou registrado como o último antes de uma crise
civilizatória, marcada por um embate entre a dureza da realidade e o encanto
gerado pela fantasia de que a situação nem era tão grave assim. Mas a realidade
se impôs no dia seguinte. Em 12 de março, morreu no Brasil a primeira vítima da
covid-19. Desde então, o país nunca mais foi o mesmo. Com a adoção de uma
política anticiência, a pandemia se tornou um pretexto para estabelecer poder
por meio da morte.
Cinco
anos se passaram, e a pandemia caiu no esquecimento. O trauma que vivemos como
sociedade impactou não apenas nossa forma de viver coletivamente, já que nos
tornamos mais individualistas. A pandemia também afetou nossa memória. Afetou a
memória de pessoas infectadas, porque a covid-19 pode provocar danos de longo
prazo que incluem prejuízos na memória. Mas a memória coletiva também foi
afetada. Aquela memória que estimula a luta por justiça.
Deletamos
a pandemia. É claro que eventos traumáticos podem ser deletados, como uma
adaptação em resposta ao estresse ou trauma. Mas será que foi isso que nos
deixou menos sensíveis à tragédia? Ou será que há um pacto para nos convencer
de que devemos esquecer o que vivemos?
Esquecer
significa ignorar o horror da covid-19 no Brasil e banalizar a catástrofe que
tem, sim, responsáveis. Foram tantas omissões e conivências que é impossível
acreditar que não havia intencionalidade. A pandemia no Brasil foi marcada pelo
negacionismo como política.
Teorias
e tratamentos sem embasamento científico foram adotados como estratégias para o
enfrentamento da crise sanitária. A “imunidade de rebanho”, conceito
normalmente utilizado para explicar a imunidade coletiva frente à vacinação
populacional, foi instrumentalizada para promover a disseminação do SARS-CoV-2
(vírus causador da covid-19), sob o argumento de que estimularia a imunidade
coletiva para acabar com a pandemia.
Em meio
ao aumento no número de casos, internações e óbitos pela doença, que tipo de
pessoa seria capaz de promover a disseminação do vírus? Algo que implicaria em
aumento de mortalidade não só por covid-19. Afinal, com o aumento no número de
casos, o sistema de saúde entra em colapso e consequentemente, até pessoas
doentes por outras causas não têm hospitais e profissionais disponíveis para o
cuidado.
A
imunização por contágio não tem respaldo científico, é antiética, ainda mais no
contexto de uma crise sanitária. Porém, essa foi uma das bases da política de
Jair Bolsonaro na gestão da pandemia.
A
política anticiência deste governo promoveu também o “tratamento precoce”.
Entre os medicamentos, que não têm comprovação de eficácia na covid-19, estavam
as famosas hidroxicloroquina e ivermectina. Desde 2020, o tratamento é
criticado pela comunidade científica. A OMS emitiu alerta recomendando que
hidroxicloroquina e cloroquina não fossem usadas na covid-19, pois as
evidências que embasavam o tratamento eram frágeis.
Em
2021, já havia uma série de estudos com metodologia robusta evidenciando que o
tratamento não era eficaz, apresentava riscos e a mortalidade por covid-19
poderia até aumentar com o tratamento. Mesmo assim, Bolsonaro insistiu.
Insistiu
tanto que lançou o TrateCov para estimular a prescrição dos medicamentos.
Acontece que o aplicativo foi retirado do ar sob críticas, pois recomendava o
tratamento até para quem não tinha covid-19. O algoritmo tinha um único fim:
prescrever tratamento precoce. A culpa disso, segundo o governo, foi de um
ataque hacker ao TrateCov.
A crise
de oxigênio em Manaus também não teve responsabilidade assumida. Ninguém era
culpado. Aliás, a culpa do caos de Manaus, segundo Bolsonaro, foi da falta de
tratamento precoce. Pessoas que dependiam de suporte de oxigênio morreram
porque o suporte acabou, embora o governo tenha sido avisado do aumento na
demanda.
Uma
crise sanitária enfrentada com imunização por contágio, promovendo um
tratamento sem eficácia, deixando faltar suporte de oxigênio para os doentes e,
por fim, com a propagação de desinformação sobre as vacinas de covid-19.
Bolsonaro
criticou a vacinação e atrasou a compra de vacinas, embora milhares de pessoas
estivessem morrendo. Inventou que as vacinas provocavam Aids, que você poderia
virar um jacaré caso se vacinasse, desestimulou o quanto pôde a vacinação. Como
acreditar que, depois disso tudo, a tragédia da pandemia no Brasil não tem
culpados?
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“Fazer memória é fortalecer a luta por justiça”
Apesar
das evidências, o então procurador-geral da República, Augusto Aras, entendeu
que a CPI da covid-19 não trouxe indícios de crimes na gestão Bolsonaro.
Engavetou as denúncias. E, cinco anos depois do início da pandemia, as pessoas
já se esqueceram mesmo.
Já que
o Brasil tem memória fraca para eventos traumáticos, algumas iniciativas tentam
ajudar. O Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência (SoU_Ciência) da
Universidade Federal de São Paulo, Unifesp, lançou o Acervo da Pandemia de
Covid-19, um acervo digital que reúne um material extenso evidenciando a
política anticiência que ajudou a ampliar a tragédia da pandemia no Brasil.
Os
itens – vídeos, áudios, documentos oficiais, entre outros – passaram por uma
curadoria coletiva e foram catalogados por pesquisadores do SoU_Ciência. O
acervo é uma importante iniciativa para a memória coletiva e ferramenta
essencial no combate à desinformação e na luta por justiça e reparação.
Esquecer
nosso passado implica em não se preparar para o futuro. Novos eventos
traumáticos serão vividos, novas pandemias virão. Não fechamos a ferida aberta
pela dureza da realidade vivida. Essa ferida só será fechada com a justiça.
Fazer memória é fortalecer a luta por justiça. E, se a paz é fruto da justiça,
somente no dia em que a justiça acontecer, poderemos viver em paz.
Fonte:
Por Leticia Sarturi, em The Intercept

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