quinta-feira, 29 de maio de 2025

Extrema direita ataca saúde pública para transformar sua mentira em voto

“Hoje vou virar jacaré”. Era 2021, a vacinação contra a covid-19 já havia iniciado, apesar do atraso, e essa frase se tornou um símbolo da desinformação acerca da vacina – que já existia antes mesmo do início da campanha de imunização como parte da falácia antivacina alavancada pelo líder da extrema direita brasileira, Jair Bolsonaro.

As vacinas de covid-19 ainda estão no calendário vacinal, mas a procura é baixa, mesmo no grupo prioritário, que ainda corre riscos. As consequências da desinformação propagada na pandemia também são evidentes até hoje na redução da cobertura de outras vacinas.

O crescimento de movimentos antivacina e anticiência no Brasil vem acompanhado do fortalecimento da extrema direita. Essas narrativas são incubadoras de ideologias extremistas. Há um propósito nisso, e a pandemia não foi a primeira nem será a última vez em que a saúde pública e a ciência são instrumentalizadas para controle político. Afinal, a desinformação em saúde é uma engrenagem bem lubrificada de um projeto que transforma medo em capital político.

Em 2014, quando o governo Dilma Rousseff enfrentou uma campanha difamatória contra a vacina do HPV — acusada, sem evidências, de incentivar a promiscuidade sexual em adolescentes —, o Brasil assistia ao nascimento de uma estratégia perigosa: criar pânicos morais, depois acolher as dúvidas e os medos e, ao mesmo tempo, deslegitimar a ciência, as instituições, o SUS e a saúde pública.

Boatos ligavam a vacina a uma “agenda globalista”, e os relatos de eventos adversos, como convulsões e desmaios, desencorajaram adolescentes a se imunizar. Em 2019, um estudo conduzido por pesquisadores da USP concluiu que os eventos estavam relacionados a crises psicogênicas geradas pelo medo, e não à vacina. Enquanto a desinformação viralizou, meninas deixaram de ser protegidas contra um vírus que causa câncer.

A extrema direita aprendeu a encantar pela desconfiança, isso tornou-se seu método. A partir das ideias discutidas pelo pesquisador Paolo Demuru em “Políticas do Encanto”, fica evidente que movimentos antivacina e anticiência não vendem apenas mentiras. Vendem histórias.

São “heróis” que desafiam “instituições corruptas”, “verdades ocultas” reveladas nas redes sociais, “liberdade contra o controle da OMS”. São narrativas que exploram a vulnerabilidade de quem se sente abandonado pelo Estado — seja na fila do SUS, seja na dificuldade em ingressar em uma universidade pública — e convertem essa dor em combustível para o ódio.

Quando uma pessoa afirma, sem pudor, que “as vacinas estão matando”, ela não está discutindo ciência: está oferecendo um lugar no palco da conspiração. Um lugar onde o medo é acolhido, o pertencimento a uma comunidade estimula o ódio contra os pseudo-inimigos e o ódio vira voto.

Para fortalecer essas narrativas, instituições são sabotadas. Em São Paulo, o governo de Tarcísio de Freitas, do Republicanos, deixa institutos de pesquisa sofrerem com defasagens em pessoal, orçamento e estrutura, inviabilizando estudos e a continuidade de prestação de serviços aos cidadãos. O sucateamento é calculado: ciência forte é inimiga da narrativa anticiência.

Não à toa, a Organização Mundial da Saúde, a OMS — alvo recorrente da extrema direita global — enfrenta ataques coordenados. Donald Trump retirou os EUA da organização, seguido por Javier Milei, que fez o mesmo com a Argentina. O deputado federal licenciado Eduardo Bolsonaro, do PL de SP, prometeu que seu pai, Jair, fará o mesmo caso volte a ser presidente.

O objetivo? Desmontar qualquer autoridade que conteste o obscurantismo, pois o obscurantismo favorece o caos — e quem lucra com o caos? É no caos que o autoritarismo ganha espaço e se fortalece pelo medo. O medo pode ser o carimbo que certifica intervenções anti-democráticas. E é um poder absoluto, acima da democracia, que sustenta a extrema direita.

Enquanto isso, nossa resposta se limita ao campo da razão. Cientistas e jornalistas insistem em desmentir notícias falsas com gráficos e estudos revisados por pares, como se dados fossem suficientes para desfazer encantamentos. A batalha não é entre fatos e mentiras, é entre esperança e desespero.

Enquanto a ciência fala de probabilidades, quem desinforma vende certezas. Enquanto nós citamos a OMS e as instituições, eles oferecem o acolhimento de uma comunidade. Para quebrar o feitiço, precisamos ir além da desmistificação.

•        ‘As big techs são coniventes com a desinformação’

É preciso responsabilizar quem desinforma, cassar registros de profissionais que lucram com desinformação e narrativas antivacina e exigir que as plataformas de redes sociais removam conteúdos anticiência antes que eles viralizem.

As big techs são coniventes com a desinformação, e não há nenhuma moderação para impedir que a desinformação em saúde, como os conteúdos antivacina, estimulem o recrutamento e a formação de comunidades com ideologias extremistas.

Em 2017, a Alemanha implementou uma lei que multa redes sociais em até 50 milhões de euros por falhas na remoção de conteúdos extremistas. Por aqui, o Congresso ainda debate se regulamentar as plataformas é censura. Precisamos reconhecer que a saúde pública e a ciência são territórios de guerra política.

Quando crianças morrem por sarampo em pleno século XXI, isso mostra o triunfo de um projeto que enxerga corpos como moeda de troca para a obtenção de votos. A mesma lógica que nega vacinas também criminaliza abortos legais, patologiza pesssoas LGBTQIA+ e planeja atentados e massacres.

A desinformação não é o fim, é o caminho de uma ofensiva que usa da dúvida e do medo para encantar — e do encanto para manipular e obter poder. A disputa nessa guerra política não deve ser apenas na defensiva, é preciso atacar. Para ganhar essa guerra, a estratégia não é destruir o feitiço e, sim, enfraquecer o feiticeiro.

•        Brasil já esqueceu a pandemia, mas precisa lembrar para sempre o negacionismo e a omissão de Bolsonaro

Em uma quarta-feira que parecia mais um dia de uma semana normal, a Organização Mundial da Saúde, OMS, caracterizou a emergência de covid-19 como pandemia. O Brasil, que já tinha mais de 50 casos confirmados, iniciava ali não apenas uma crise sanitária sem precedentes como também uma guerra entre a ciência e o obscurantismo.

O dia 11 de março de 2020 ficou registrado como o último antes de uma crise civilizatória, marcada por um embate entre a dureza da realidade e o encanto gerado pela fantasia de que a situação nem era tão grave assim. Mas a realidade se impôs no dia seguinte. Em 12 de março, morreu no Brasil a primeira vítima da covid-19. Desde então, o país nunca mais foi o mesmo. Com a adoção de uma política anticiência, a pandemia se tornou um pretexto para estabelecer poder por meio da morte.

Cinco anos se passaram, e a pandemia caiu no esquecimento. O trauma que vivemos como sociedade impactou não apenas nossa forma de viver coletivamente, já que nos tornamos mais individualistas. A pandemia também afetou nossa memória. Afetou a memória de pessoas infectadas, porque a covid-19 pode provocar danos de longo prazo que incluem prejuízos na memória. Mas a memória coletiva também foi afetada. Aquela memória que estimula a luta por justiça.

Deletamos a pandemia. É claro que eventos traumáticos podem ser deletados, como uma adaptação em resposta ao estresse ou trauma. Mas será que foi isso que nos deixou menos sensíveis à tragédia? Ou será que há um pacto para nos convencer de que devemos esquecer o que vivemos?

Esquecer significa ignorar o horror da covid-19 no Brasil e banalizar a catástrofe que tem, sim, responsáveis. Foram tantas omissões e conivências que é impossível acreditar que não havia intencionalidade. A pandemia no Brasil foi marcada pelo negacionismo como política.

Teorias e tratamentos sem embasamento científico foram adotados como estratégias para o enfrentamento da crise sanitária. A “imunidade de rebanho”, conceito normalmente utilizado para explicar a imunidade coletiva frente à vacinação populacional, foi instrumentalizada para promover a disseminação do SARS-CoV-2 (vírus causador da covid-19), sob o argumento de que estimularia a imunidade coletiva para acabar com a pandemia.

Em meio ao aumento no número de casos, internações e óbitos pela doença, que tipo de pessoa seria capaz de promover a disseminação do vírus? Algo que implicaria em aumento de mortalidade não só por covid-19. Afinal, com o aumento no número de casos, o sistema de saúde entra em colapso e consequentemente, até pessoas doentes por outras causas não têm hospitais e profissionais disponíveis para o cuidado.

A imunização por contágio não tem respaldo científico, é antiética, ainda mais no contexto de uma crise sanitária. Porém, essa foi uma das bases da política de Jair Bolsonaro na gestão da pandemia.

A política anticiência deste governo promoveu também o “tratamento precoce”. Entre os medicamentos, que não têm comprovação de eficácia na covid-19, estavam as famosas hidroxicloroquina e ivermectina. Desde 2020, o tratamento é criticado pela comunidade científica. A OMS emitiu alerta recomendando que hidroxicloroquina e cloroquina não fossem usadas na covid-19, pois as evidências que embasavam o tratamento eram frágeis.

Em 2021, já havia uma série de estudos com metodologia robusta evidenciando que o tratamento não era eficaz, apresentava riscos e a mortalidade por covid-19 poderia até aumentar com o tratamento. Mesmo assim, Bolsonaro insistiu.

Insistiu tanto que lançou o TrateCov para estimular a prescrição dos medicamentos. Acontece que o aplicativo foi retirado do ar sob críticas, pois recomendava o tratamento até para quem não tinha covid-19. O algoritmo tinha um único fim: prescrever tratamento precoce. A culpa disso, segundo o governo, foi de um ataque hacker ao TrateCov.

A crise de oxigênio em Manaus também não teve responsabilidade assumida. Ninguém era culpado. Aliás, a culpa do caos de Manaus, segundo Bolsonaro, foi da falta de tratamento precoce. Pessoas que dependiam de suporte de oxigênio morreram porque o suporte acabou, embora o governo tenha sido avisado do aumento na demanda.

Uma crise sanitária enfrentada com imunização por contágio, promovendo um tratamento sem eficácia, deixando faltar suporte de oxigênio para os doentes e, por fim, com a propagação de desinformação sobre as vacinas de covid-19.

Bolsonaro criticou a vacinação e atrasou a compra de vacinas, embora milhares de pessoas estivessem morrendo. Inventou que as vacinas provocavam Aids, que você poderia virar um jacaré caso se vacinasse, desestimulou o quanto pôde a vacinação. Como acreditar que, depois disso tudo, a tragédia da pandemia no Brasil não tem culpados?

<><> “Fazer memória é fortalecer a luta por justiça”

Apesar das evidências, o então procurador-geral da República, Augusto Aras, entendeu que a CPI da covid-19 não trouxe indícios de crimes na gestão Bolsonaro. Engavetou as denúncias. E, cinco anos depois do início da pandemia, as pessoas já se esqueceram mesmo.

Já que o Brasil tem memória fraca para eventos traumáticos, algumas iniciativas tentam ajudar. O Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência (SoU_Ciência) da Universidade Federal de São Paulo, Unifesp, lançou o Acervo da Pandemia de Covid-19, um acervo digital que reúne um material extenso evidenciando a política anticiência que ajudou a ampliar a tragédia da pandemia no Brasil.

Os itens – vídeos, áudios, documentos oficiais, entre outros – passaram por uma curadoria coletiva e foram catalogados por pesquisadores do SoU_Ciência. O acervo é uma importante iniciativa para a memória coletiva e ferramenta essencial no combate à desinformação e na luta por justiça e reparação.

Esquecer nosso passado implica em não se preparar para o futuro. Novos eventos traumáticos serão vividos, novas pandemias virão. Não fechamos a ferida aberta pela dureza da realidade vivida. Essa ferida só será fechada com a justiça. Fazer memória é fortalecer a luta por justiça. E, se a paz é fruto da justiça, somente no dia em que a justiça acontecer, poderemos viver em paz.

 

Fonte: Por Leticia Sarturi, em The Intercept

 

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