Gustavo
Guerreiro: A sombra militar sobre a democracia brasileira
A
história tem o péssimo hábito de nos pregar peças. Quando acreditamos ter
virado definitivamente certas páginas sombrias, eis que elas ressurgem — ora como
farsa, ora como tragédia renovada.
Os
eventos de 8 de janeiro de 2023, com suas cenas dantescas de vandalismo
institucional, revelaram o que muitos preferiam ignorar: a tutela militar sobre
a política brasileira não é relíquia do passado, mas fantasma permanentemente
presente.
A
recente denúncia da Procuradoria-Geral da República contra 37 pessoas —
incluindo generais de quatro estrelas como Braga Netto e Augusto Heleno — expõe
as vísceras de uma conspiração que há muito extrapolou os limites do delírio
golpista de botequim.
Segundo
a PF, estamos diante de uma trama complexa, com núcleos operacionais
estruturados, que envolvia desde a disseminação sistemática de desinformação
até planos concretos de assassinato de autoridades eleitas.
A
“Operação Copa 2022” e o plano “Punhal Verde e Amarelo” não são ficções
distópicas, mas projetos minuciosamente elaborados nos gabinetes fardados.
O que
espanta — ou talvez não devesse espantar — é a naturalidade com que parcela
significativa da oficialidade abraçou a aventura golpista.
O
almirante Almir Garnier Santos, ex-comandante da Marinha; o general Paulo
Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa; o tenente-coronel Mauro Cid, o faz-tudo
de Bolsonaro — todos eles, em diferentes graus hierárquicos, participaram do
que só pode ser descrito como uma insurreição contra a ordem constitucional.
Os
“kids pretos”, esse grupo de militares das forças especiais presos em novembro
de 2024, chegaram ao requinte macabro de planejar execuções sumárias do
presidente eleito, seu vice e do ministro Alexandre de Moraes.
Em toda
essa trama existe ponto crucial: nada disso é novidade na tragicomédia
republicana brasileira.
Como
bem observou José Murilo de Carvalho, um dos nossos mais argutos historiadores
das relações civis-militares, as Forças Armadas funcionam como “poder
desestabilizador” desde os estertores do Império.
A
cultura do “soldado-cidadão”, essa aberração conceitual que confunde quartel
com comitê político, criou uma casta que se julga moralmente superior aos civis
— esses seres venais e corruptos que precisam, vez por outra, ser salvos de si
mesmos.
Para
entender os acontecimentos de 8 de janeiro, é necessário retroceder na
história. A República brasileira emergiu de um golpe militar e nunca superou
por completo esse trauma inicial. De 1889 para cá, poucos foram os períodos em
que as Forças Armadas aceitaram a subordinação hierárquica ao poder civil
eleito democraticamente.
A
história é marcada por diversos exemplos que ilustram essa tensão: a própria
Proclamação da República (1889), as revoltas tenentistas da década de 1920, a
Revolução de 1930, a instauração do Estado Novo (1937), as pressões que levaram
à deposição e ao suicídio de Getúlio Vargas (1945 e 1954), a crise política de
1961 e, por fim, o golpe de 1964.
Cada um
desses episódios não se deu ao acaso, mas revela um padrão de intervenção
castrense na política. O intervencionismo autoritário militar persiste como uma
doença da democracia brasileira.
Como
destaca Carvalho, a influência das FFAA na política decorre de um padrão
estruturado, não de desvios episódicos. As Forças Armadas brasileiras
desenvolveram o que o sociólogo Erving Goffman chamaria de características de
“instituição total” — um mundo fechado, autorreferente, com códigos próprios de
conduta e uma visão messiânica de seu papel na sociedade.
O
resultado disso é uma contraelite técnica formada nas academias militares e que
nutre profundo desprezo pela política — essa atividade suja e corrupta — ao
mesmo tempo em que anseia por exercê-la. É a quadratura do círculo: desprezam a
política mas querem fazê-la; abominam os políticos mas sonham em substituí-los.
Durante
o governo Vargas, essa simbiose perversa atingiu seu ápice. Os militares
ocuparam interventorias, comandaram empresas estatais, formularam políticas
públicas.
O
general Góis Monteiro cunhou a fórmula perfeita: tratava-se de fazer a
“política do Exército”, não mais “política no Exército”. As despesas militares
chegaram a consumir 25% do orçamento federal em 1933, enquanto o certificado de
serviço militar tornava-se pré-requisito para o exercício de qualquer cargo
público.
Aqui
chegamos ao cerne ideológico do problema. Os militares brasileiros
desenvolveram o que um dos principais intelectuais sobre o assunto, o
historiador e cientista político Manuel Domingos Neto, denominou “patriotismo
castrense” — uma construção mental autorreferente e narcísica que justifica
qualquer atropelo institucional em nome de uma concepção muito particular de
“pátria”.
Esse
patriotismo militar difere radicalmente do patriotismo cívico dos cidadãos
comuns. É sacralizado (justifica matar e morrer), maniqueísta (divide o mundo
entre patriotas e traidores), obcecado pela ordem (mesmo que autoritária) e
alimentado por uma narrativa histórica própria, frequentemente delirante.
Mais
grave: é um patriotismo que define unilateralmente quem são os “inimigos
internos” — categoria elástica que pode abranger desde comunistas imaginários
até ministros do Supremo Tribunal Federal.
A
condição de dependência tecnológica das Forças Armadas brasileiras,
importadoras de equipamentos e principalmente de doutrinas, paradoxalmente
alimenta esse narcisismo corporativo. Incapazes de projetar poder externo,
voltam-se para dentro, transformando-se em árbitros autoproclamados da vida
nacional.
É o
complexo de vira-lata às avessas: impotentes no cenário internacional,
compensam exercendo tutela sobre os civis desarmados.
Os
acontecimentos recentes confirmam a permanência desses padrões históricos.
Quando o general Hamilton Mourão, em 2015, celebrou publicamente o golpe de
1964 sem sofrer qualquer sanção, acendeu-se a luz amarela.
Daí em
diante, a escalada foi vertiginosa: o general Villas Bôas pressionando o STF em
2018; militares da ativa manifestando-se abertamente sobre questões políticas;
um capitão reformado (e moralmente deformado), nostálgico da ditadura, eleito
presidente com apoio entusiástico dos quartéis.
A
decisão do ministro Alexandre de Moraes, fixando a competência do STF para
julgar militares envolvidos no 8 de janeiro, provocou mal-estar na caserna. Há
relatos de que o clima nos quartéis era de velório.
A
reação é reveladora: acostumados à impunidade garantida pela Justiça Militar
corporativista, os fardados descobrem, atônitos, que crimes contra a democracia
não são “questões internas” a serem resolvidas entre camaradas.
A
investigação aberta por Moraes sobre a participação de militares nos atos
golpistas representa um marco. Pela primeira vez desde a redemocratização,
abre-se a possibilidade real de responsabilização criminal de oficiais de alta
patente por crimes contra a democracia.
Não se
trata mais de aposentadorias compulsórias ou transferências para a reserva —
pantomimas que historicamente serviram para acobertar crimes graves.
Os
custos dessa eterna tutela militar são incalculáveis. Para além dos períodos
explicitamente ditatoriais, com seus mortos, torturados e desaparecidos, há o
dano permanente às instituições democráticas.
Um país
que vive sob a ameaça latente de intervenção militar se sustenta sobre uma
democracia capenga, sempre olhando por cima do ombro, moderando suas ambições
reformistas para não “provocar” os quartéis.
O 8 de
janeiro é apenas o sintoma mais recente dessa patologia crônica. Enquanto
manifestantes quebravam vidraças e defecavam em tapetes persas, oficiais de
alta patente articulavam nos bastidores.
A
omissão deliberada do Exército, que segundo relatórios impediu forças de
segurança do DF de desmontar acampamentos golpistas, revela cumplicidade
institucional com a sedição.
A
politização das Forças Armadas compromete até mesmo sua função precípua de
defesa externa.
Enquanto
generais conspiram e coronéis publicam nas redes sociais, nossas fronteiras
permanecem esquecidas, nosso equipamento militar envelhece, nossa doutrina
estratégica patina. É o pior dos mundos: militares incompetentes para a guerra
e perigosos para a paz.
A
questão que se impõe é cristalina: ou estabelecemos, de uma vez por todas, o
controle civil democrático sobre as Forças Armadas, ou continuaremos reféns de
seus humores golpistas. Não há meio-termo possível.
A
Constituição de 1988, em momento de fraqueza, manteve o papel das Forças
Armadas como garantidoras da “lei e da ordem”, eufemismo que tem servido
historicamente para justificar toda sorte de aventuras autoritárias.
É
urgente reformar o artigo 142 da Constituição, extirpando qualquer ambiguidade
sobre a subordinação militar ao poder civil. É necessário reformular a formação
dos oficiais, hoje impregnada de doutrinas anacrônicas e ressentimentos
corporativos. É imprescindível responsabilizar criminalmente, sem anistias
preventivas ou contemporizações pusilânimes, todos os envolvidos em tramas
golpistas.
A
sociedade civil, a imprensa, a academia e as instituições políticas precisam
exercer vigilância permanente.
Parte
da responsabilidade pela permanência do problema é dos próprios civis, que por
comodidade, medo ou preconceito evitam enfrentar o espinhoso tema da
interferência militar.
O
julgamento dos militares envolvidos no 8 de janeiro será um teste crucial. Se
houver contemporização, se a responsabilização for apenas simbólica, estaremos
enviando o sinal de que a democracia brasileira continua refém de seus algozes
fardados.
Se, ao
contrário, a Justiça for implacável — como deve ser com todos os que atentam
contra a ordem constitucional —, talvez possamos finalmente exorcizar o
fantasma da tutela militar.
O
patriotismo castrense, com sua visão messiânica e seus delírios salvacionistas,
é fundamentalmente incompatível com a democracia pluralista do século XXI.
Enquanto
parcela significativa da oficialidade continuar acreditando que tem o direito
divino de intervir na política, seja pelas armas, seja pela pressão
institucional, viveremos sob ameaça constante de golpes.
A
história nos ensina que democracias morrem não apenas por ataques frontais, mas
também por erosão gradual de seus alicerces.
Cada
general que se julga acima da lei, cada coronel que conspira nos quartéis, cada
tenente que sonha com aventuras golpistas é um cupim roendo as vigas da
República. É hora de dedetizar, antes que a casa caia.
¨ Haddad: “Hoje vivemos
um quase parlamentarismo no Brasil”
“Hoje
nós vivemos um quase parlamentarismo. Quem dá a última palavra sobre tudo isso
é o Congresso. Não era assim. Um veto presidencial era uma coisa sagrada.
Derrubar um veto do presidente da República era uma coisa que remotamente era
pensada. Hoje é uma coisa: ‘Vamos derrubar?’ E derruba.”
A
análise sobre a atual configuração política brasileira foi feita pelo ministro
da Fazenda, Fernando Haddad, em entrevista ao O Globo. Segundo ele, essa
mudança institucional vem se intensificando nos últimos anos:
“Está
havendo uma mudança institucional no país. O poder está mudando de mãos. Isso
aconteceu no governo Jair Bolsonaro, que terceirizou o governo para o
Congresso. Não faltava base. Faltava poder. Está um pouco mais equilibrado
hoje, mas está longe do que já foi. Nos governos Fernando Henrique e Lula,
havia presidencialismo. Hoje, há uma variante disso, que muita gente já chama
de parlamentarismo, de semipresidencialismo. É outra coisa.”
Sobre
os desafios para manter o arcabouço fiscal, o ministro foi enfático ao apontar
que o sucesso das medidas econômicas depende mais do Legislativo:
“Não
abro mão de nada. Não há bala de prata para resolver um problema do tamanho do
Brasil. Desde 2015, nós estamos com déficit estrutural. Queremos vencer essa
etapa, mas depende muito mais do Congresso.”
Questionado
sobre a economia brasileira, Haddad destacou a necessidade de corrigir
desigualdades históricas:
“Não
existe uma economia robusta no mundo com o nível de desigualdade que a economia
brasileira tem. Não faz sentido assumirmos pela quinta vez o governo federal e
não tocarmos em algumas feridas abertas.”
O
ministro defendeu com veemência a reforma do Imposto de Renda como medida de
justiça fiscal:
“Por
que até os economistas liberais estão defendendo a mudança no Imposto de Renda?
Porque ela é justa. Imagine ganhar mais de R$ 1 milhão por ano e pagar 2% de
IR, enquanto a professora de escola pública e o policial militar pagam 10%.”
Sobre
possíveis pressões internas no governo para aumentar gastos visando melhorar a
popularidade do presidente, Haddad negou categoricamente:
“Não
está rolando isso. Seria injusto se eu dissesse. Ninguém está pressionando em
nada por gasto. Começou um ano atrás essa discussão sobre setor elétrico. Eu
falei: ‘Não tem orçamento pra isso’. Demorou um tempo, mas chegamos a um
entendimento. No momento que eu falo ‘vai ter que ser de outro jeito’, gera uma
rusga. É natural. Não ganho todas.”
Ao
comentar sua relação com o ministro da Casa Civil, Rui Costa, com quem teria
divergências, o chefe da equipe econômica minimizou os atritos:
“Isso
já foi verdade. Acredito que no começo do governo nós tínhamos duas linhas um
pouco diferentes. Mas isso foi se alinhando. Não vejo problema em divergir. A
Gleisi estava lá na presidência do PT e divergia. Hoje, está no governo e tem
tentado ajudar. Quem não convive com a adversidade não está preparado para a
vida pública.”
Quanto
às eleições de 2026, o ministro afirmou que não pretende ser candidato e
considera natural a manutenção da chapa Lula-Alckmin:
“Seria
natural. O Alckmin tem sido um grande parceiro do presidente Lula. Uma pessoa
honrada, uma pessoa séria, uma pessoa comprometida, uma pessoa leal. O tempo
deu razão à decisão do presidente de convidá-lo para a chapa. Foi uma decisão
acertada. Significou muito em 2022 e tem significado muito.”
Sobre
sua permanência no cargo, Haddad destacou que seu foco está nas entregas e no
legado:
“Para
mim, fazer uma entrega é um objetivo. Estamos fazendo entregas relevantes:
recompondo o orçamento da saúde, da educação, valorizando o salário mínimo,
garantindo o pleno emprego, taxas de crescimento superiores à média do período
anterior. Depois fica o legado: a Reforma Tributária, a reforma da renda, do
crédito. São coisas que me satisfazem. A permanência no cargo tem a ver com
isso.”
Fonte:
Viomundo/O Cafezinho

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