Notas
sobre a esquerda latino-americana
O
desmoronamento da maioria dos Estados burocráticos, no começo da década de
1990, foi um dos fatos mais marcantes do final do século XX. Embora tenha sido
um processo de vários anos, que passa por crises em países como China e
Alemanha Oriental e pelo desmantelamento da União Soviética, reverberando
também algumas rebeliões nas décadas anteriores em países como Tchecoslováquia e
Polônia, possivelmente o evento simbólico mais lembrado é a chamada queda do
Muro de Berlim, em 1989. Construído em 1961, dividindo a cidade de Berlim, o
muro foi um dos principais símbolos das disputas políticas ao longo do século
XX. Essa disputa, que se desdobrou desde o final da Segunda Guerra Mundial, foi
marcada por embates retóricos, diplomáticos e, em alguns casos, militares,
conhecida como Guerra Fria.
Embora
a queda do Muro de Berlim seja o evento mais importante de um ponto de vista
simbólico, o acontecimento de maior impacto político foi a queda do governo da
burocracia stalinista na União Soviética. Esse processo impactou as esquerdas,
em especial os setores mais afinados com a política desenvolvida pela União
Soviética e por seus satélites.
Embora
fossem repúblicas controladas por uma burocracia, cujo regime político não
estava estruturado em organismos de poder dirigidos pelos trabalhadores, no
cenário de disputa mundial acabavam reunindo em torno de si a maior parte das
tendências teóricas e políticas à esquerda. Esses regimes, independente do
modelo que construíram, mostravam que era possível expropriar o capitalismo e,
a partir disso, iniciar a construção de uma nova sociedade. Embora não sejam
nem simples nem fáceis as explicações para esses regimes de transição não terem
avançado ao socialismo, sabe-se que os fatores passam necessariamente pelas
derrotas da revolução em diversos países e pelas opções políticas das direções
dos processos revolucionários.
O fim
de quase todos esses países que expropriaram o capitalismo e levaram ao poder
partidos que se reivindicam socialistas ou mesmo comunistas permite pensar
diferentes elementos importantes para compreender o período posterior a 1989. O
período está marcado por um avanço brutal do capitalismo, que, por meio de seus
organismos internacionais e governos nacionais, impõe um modelo econômico de
aprofundamento da dominação dos países, pela privatização de serviços e
empresas públicas e pela flexibilização de direitos dos trabalhadores, em
especial aqueles associados ao welfare state, como os trabalhistas e
previdenciários. Em diversos países foram realizadas reformas dos mais variados
tipos, buscando reduzir gastos com serviços e ampliar o apoio financeiro a empresas
e bancos.
No
âmbito da esquerda, a crise dos países governados pela burocracia stalinista
impactou o desenvolvimento teórico. O marxismo acabou sendo associado, de
maneira bastante equivocada, aos regimes políticos autoritários que ruíram no
Leste Europeu e na União Soviética. Em todo o mundo, na década de 1990, a
maioria da intelectualidade, inclusive parte dos que se colocavam como de
esquerda, aderiu à propaganda conservadora que apresentava o marxismo como algo
nocivo e que deveria ser combatido. Conceitos centrais do marxismo, como luta
de classes e modo de produção, passaram a ser atacados como obsoletos e
insuficientes para analisar a realidade histórica. O passo seguinte foi negar a
existência inclusive das classes sociais, ainda que cotidianamente trabalhadores
em todo o mundo tentassem resistir à ofensiva capitalista.
Produto
dessa crise foi também o recuo da utopia. No contexto de queda dos aparatos
stalinistas, muitos declararam o fim do socialismo ou mesmo o “fim da
história”. Nessa lógica, os regimes construídos no Leste Europeu teriam sido
exatamente o que havia previsto Marx (mesmo que sejam raros os seus escritos
que descrevem uma sociedade futura) e sua queda seria a prova de que sua utopia
teria se mostrado um grande desastre para a humanidade. O comunismo, confundido
na retórica reacionária com os regimes controlados pela burocracia stalinista,
seria impossível de ser alcançado e, por isso, todos deveriam aceitar o
capitalismo como realidade social e histórica para a humanidade.
Outro
elemento evidente foi a profunda mudança ocorrida em numerosos partidos
comunistas, que passaram para o campo do centro ou mesmo da direita, como no
Brasil e na Itália. Outro elemento foi a migração da maior parte dos partidos
de tradição social-democrata ou trabalhista para a defesa da exploração
capitalista, abandonando até mesmo a perspectiva de reformas, em vários países
fazendo governos que aplicaram projetos de interesse da burguesia, como ocorreu
na Inglaterra. Percebe-se também casos de partidos que, mesmo não sendo de uma
tradição comunista ou social-democrata, mas que tiveram expressiva importância
em lutas dos trabalhadores e em outro momento defenderam uma perspectiva
nacionalista, passarem ao terreno das reformas estruturais impostas pelo
imperialismo, como na Argentina e no México.
Na
América Latina, diante da crise das principais organizações vistas pelos
trabalhadores como seus representantes políticos, foram construídas novas
organizações de importante relevância social e política. O zapatismo no México
se constituiu logo no começo da década de 1990. No mesmo período também houve o
crescimento do PT no Brasil, paulatinamente aumentando sua atuação parlamentar
e vencendo as eleições presidenciais de 2002. O PT, dessa forma, ocupou um
protagonismo que outrora tinha sido de trabalhistas e de comunistas. Na
Argentina, em 2003, uma versão renovada do peronismo ganhou as eleições e
diminuiu a instabilidade política pela qual o país vinha passando desde os anos
anteriores. Fazem parte desse contexto também diferentes governos, normalmente
adjetivados como “progressistas”, no Equador, no Uruguai, na Colômbia e no
Peru, além das sucessivas vitórias de uma esquerda mais tradicional no Chile.
O
protagonismo desse contexto coube a uma das mais profundas tentativas de
construir um novo projeto político. Na Venezuela, Hugo Chávez encabeçou um
projeto que chamou de “socialismo do século XX”, apontando para uma alternativa
política com elementos nacionalistas, mesmo diante de um cenário marcado pelo
avanço dos interesses do imperialismo. O processo conhecido como “revolução
bolivariana”, mesmo sem romper com o capitalismo, avançou em importantes
reformas sociais e colocou em cena setores da classe trabalhadora organizada.
Na
Bolívia, no mesmo sentido, além de reformas importantes, Evo Morales apostou na
construção de um Estado que respeitasse a diversidade política e cultural do
país. O movimento político organizado em torno do presidente mostrava
características bastante particulares, em que a ideia de classe se mostrava
bastante imprecisa. No movimento cocalero, desde sua conformação em defesa dos
interesses imediatos, observou-se a organização das suas ações em direção à
criação de uma centralidade não de classe, mas de identidades culturais e
policlassistas.
Embora
essas organizações e projetos políticos não se propusessem a romper com o
capitalismo, a América Latina se viu movimentado por mobilizações sociais e
políticas e governos que apontaram para a necessidade de construir uma
alternativa que, mesmo não sendo necessariamente socialista, mostravam no
mínimo uma perspectiva de tentar um desenvolvimento autônomo de suas economias,
colaborando entre si e com países da África e da Ásia. Contudo, esses
movimentos e organizações foram vítimas de seus próprios limites, sendo
possível na atualidade ver a crise ou mesmo a degeneração desses setores em
países como Bolívia, Equador e Venezuela.
As
formas tradicionais de organização também foram transformadas ou mesmo
superadas. Os presidentes Hugo Chávez e Evo Morales dirigiram, de início,
movimentos que posteriormente viriam a se transformar em partidos. Em 2000, no
Equador uma ampla frente de setores populares chegou ao poder por meio do
Parlamento dos Povos, ainda que esta tenha sido uma experiência efêmera. Muitas
das políticas dos governos considerados “progressistas”, como os de Lula no
Brasil, foram elaboradas e discutidas no interior do movimento
antiglobalização, em espaços de lutas e debates de trabalhadores de todo o
mundo, e que ganharam mais corpo nas sucessivas edições do Fórum Social
Mundial.
No
período posterior ao final da União Soviética, os grupos marxistas se limitaram
a pequenas e cada vez mais fragmentadas organizações. Essa condição, em grande
medida, tem relação com sua falta de enraizamento na classe trabalhadora, o que
leva muitos desses grupos a buscar se construir dentro de partidos eleitorais.
Muitos desses grupos marxistas participaram da construção de partidos de
vanguarda organizados de forma ampla, reunindo um campo genericamente
anticapitalistas, como é o caso do PSOL, no Brasil. Possivelmente a única
exceção a essa tendência se deu na Argentina, onde dois partidos independentes,
o PTS e o PO, aliados a outros grupos menores, alcançaram uma importante
inserção no movimento de trabalhadores, construindo uma aliança eleitoral que
ainda perdura e que vem conquistando importantes votações eleição após eleição.
No
período posterior ao fim da União Soviética, se percebe na esquerda
latino-americana uma tentativa de encontrar novos caminhos tanto organizativos
como teóricos. Uma forte marca de todas essas organizações e projetos políticos
continua a ser o anti-imperialismo, em especial no enfrentamento direto com os
Estados Unidos. Em termos estratégicos, consolida-se o abandono quase completo
da perspectiva socialista, buscando-se utopias ou embasadas na diversidade de
tradições culturais, como se percebe na experiência boliviana, ou em uma
estratégia nacionalista, como na Venezuela. O discurso socialista continua
principalmente no programa de pequenos grupos marxistas, bem como quando se faz
menção à defesa de Cuba, mas está longe de ter alguma relevância nas discussões
mais amplas das organizações dos trabalhadores.
Portanto,
é preciso refletir acerca dessas questões mostrando as alternativas teóricas e
políticas que foram debatidas e construídas nos últimos trinta anos na América
Latina. Os trabalhadores seguiram se mobilizando, construindo novas
organizações, organizando suas próprias mobilizações e reelaborando táticas e
estratégias políticas. Diante disso, é possível analisar suas perspectivas
teóricas e propostas programáticas, problematizando sua caminhada e, também, os
passos que podem apontar para o futuro.
Fonte:
Por Michel Goulart da Silva, em Outras Palavras

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