sábado, 31 de maio de 2025

'Avenida da Morte': a rodovia do Rio onde balas perdidas, ataques fracassados e resiliência se encontram

Quando Renato Oliveira embarcou em um ônibus pela Avenida Brasil numa manhã de outubro passado, deveria ter sido apenas mais um trajeto normal.

Viajando pela rodovia mais importante do Rio, o frigorífico de 48 anos geralmente levava pouco menos de uma hora para chegar à sua fábrica – tempo suficiente para um cochilo. "Não deixe eu perder meu ponto", disse Oliveira a um amigo antes de cochilar contra a janela.

Foram suas últimas palavras. Sem o conhecimento dos passageiros do ônibus 493, policiais armados com fuzis invadiam uma das dezenas de favelas que margeiam a rua, na esperança de capturar um famoso traficante.

Um tiroteio começou, fazendo com que os motoristas se dispersassem para se proteger atrás do canteiro central de concreto. Oliveira foi atingido por uma bala perdida enquanto cochilava. Logo depois, um vizinho deu a notícia à família. "Achávamos que era mentira", disse a cunhada da vítima que, como muitas outras vítimas do derramamento de sangue que assola o Rio, pediu para não ser identificada.

Quando a Avenida Brasil foi construída na década de 1940, durante a ditadura de Getúlio Vargas, ela foi concebida como uma declaração patriótica da ascensão econômica do país sul-americano, disse Pedro Moraes, autor de um livro sobre a rodovia.

Oito décadas depois, a rodovia de 58 quilômetros — que corta mais de 25 bairros ao longo da estrada que vai da periferia oeste do Rio em direção ao seu centro — se tornou um símbolo de outra coisa: a incapacidade do governo de controlar a violência urbana.

“Hoje em dia, os cariocas não conseguem nem tirar um cochilo no ônibus para o trabalho”, protestou um importante jornal após o assassinato de Oliveira, chamando a Avenida Brasil de “um símbolo do fracasso do Estado brasileiro no combate ao crime organizado”.

De acordo com o Instituto Fogo Cruzado, grupo que monitora a violência armada, a Avenida Brasil sofreu 637 tiroteios entre 2017 e 2024 – um a cada cinco dias. Os tiros mataram 160 pessoas e feriram 383. Na semana passada, três policiais foram mortos na rodovia após perderem o controle do veículo durante uma perseguição em alta velocidade.

“A Avenida Brasil é uma avenida que revela profundamente o que é o nosso país… Ela representa fielmente o nome que carrega”, disse Antônio Carlos Costa, chefe da Rio de Paz, uma ONG antiviolência.

Enquanto os construtores da via imaginavam criar um monumento ao desenvolvimento e à industrialização, Costa acreditava que ela expunha “um país de brutal desigualdade, injustiça e exclusão social”.

Costa lembrou como milhões de migrantes nordestinos empobrecidos migraram para o Rio e se estabeleceram ao longo da rodovia desde a década de 1950, construindo suas vidas em conjuntos habitacionais precários e favelas que eram "ignorados pela sociedade e pelas autoridades" e agora são controlados em sua maioria por grupos criminosos armados.

Milionários, celebridades e formadores de opinião usavam a rodovia para chegar a paraísos praianos e mansões, alheios ao “verdadeiro Rio de Janeiro” por onde passavam no caminho.

Todas as esferas da vida estão expostas à violência mortal que assola a Avenida Brasil, devido a décadas de negligência estatal. Recentemente, o filho de Costa dirigia para casa na rodovia quando balas traçantes iluminaram o céu noturno. "Ele me disse que pareciam fogos de artifício voando pela rua", disse o ativista, falando 24 horas depois que o corpo de um policial foi encontrado em um veículo crivado de balas abandonado na mesma rodovia.

Entre as famílias apoiadas pelo grupo de Costa está a de Cátia Sebastiana de Lima, de 43 anos.

O marido dela, um motorista de Uber chamado Paulo Roberto de Souza, também foi morto durante a operação policial fracassada de outubro passado, na qual Oliveira perdeu a vida. Outros três foram baleados, mas sobreviveram.

“Ele tinha tantos sonhos… ele era um pai tão bom”, disse Lima, derramando lágrimas ao se lembrar de ter feito uma oração às 5 da manhã com o marido na manhã em que ele foi baleado.

Seis meses depois, Lima ainda não recebeu nenhuma indenização e lutava para sobreviver. "Nunca imaginei que perderia meu marido para a violência armada... Um ataque cardíaco, talvez. Mas nunca me passou pela cabeça que seria algo tão trágico quanto isso", disse ela.

A reputação da Avenida Brasil, marcada pelo caos no trânsito e tiroteios, lhe rendeu uma série de apelidos sombrios. Alguns a chamam de "Avenida da Morte", outros de "Avenida Ziquizira". A região ao redor da via, marcada pela violência, é conhecida como Faixa de Gaza.

Washington Rimas, um ativista social criado em uma das favelas da Avenida Brasil no início dos anos 80, admitiu que a infâmia não era totalmente imerecida.

Quando menino, ele se lembra de criminosos jogando as vítimas no mato do outro lado da rodovia, em frente à sua casa, em Amarelinho. "Era um mato horrível. Muita gente vinha de outros lugares e jogava os corpos ali, no mato", disse Rimas, cuja mãe foi uma das primeiras moradoras da comunidade construída para operários da construção civil e de fábricas.

Mas Rimas, de 49 anos, insistiu que a Avenida Brasil era mais do que derramamento de sangue e rebateu sua notoriedade. A rodovia também era um meio de transporte essencial para trabalhadores com empregos nas zonas mais ricas do Centro e Sul do Rio. As favelas da via eram locais de talento e corrupção.

Rimas, um ex-traficante que abandonou o crime há mais de uma década , disse que sua nova missão era ajudar crianças locais com atividades extracurriculares, como música, informática e dança. "Era aqui que vendíamos veneno – e é aqui que vamos produzir o antídoto", disse ele sobre sua busca para melhorar sua esquina na Avenida Brasil.

A líder comunitária Vanessa Galdino também rejeitou a imagem negativa da Avenida Brasil e das áreas populares que ela conecta. "Tenho orgulho de morar aqui", disse Galdino, de 29 anos, estudante que administra uma sorveteria para os jovens de Amarelinho.

Galdino não tinha planos de partir, apesar de ter perdido o pai para a violência quando tinha 17 anos. "Somos um povo resiliente e acolhedor", disse ela. Apesar dos defeitos, a Avenida Brasil era o seu lar.

Entre as vítimas da violência da Avenida Brasil, esse otimismo é mais difícil de encontrar.

Sentada em casa, cercada por fotos do marido morto, Lima pediu às autoridades que mudassem sua estratégia de combate às gangues de traficantes com ataques no estilo zona de guerra nas favelas.

“Não se combate o crime apenas com polícia, tiros e invasões… É preciso projetos sociais, escolas, música, esporte, saúde e educação… Precisamos convencer nossas crianças de que elas são o futuro do Brasil”, disse Lima, que duvidava que as autoridades ouvissem.

Enquanto assimilava a perda, ela se apegou à fé cristã. "Gosto de dizer que não perdi meu marido", disse Lima. "Eu o devolvi a Deus."

 

Fonte: The Guardian

 

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