'Avenida
da Morte': a rodovia do Rio onde balas perdidas, ataques fracassados e
resiliência se encontram
Quando
Renato Oliveira embarcou em um ônibus pela Avenida Brasil numa manhã de outubro
passado, deveria ter sido apenas mais um trajeto normal.
Viajando
pela rodovia mais importante do Rio, o frigorífico de 48 anos geralmente levava
pouco menos de uma hora para chegar à sua fábrica – tempo suficiente para um
cochilo. "Não deixe eu perder meu ponto", disse Oliveira a um amigo
antes de cochilar contra a janela.
Foram
suas últimas palavras. Sem o conhecimento dos passageiros do ônibus 493,
policiais armados com fuzis invadiam uma das dezenas de favelas que margeiam a
rua, na esperança de capturar um famoso traficante.
Um
tiroteio começou, fazendo com que os motoristas se dispersassem para se
proteger atrás do canteiro central de concreto. Oliveira foi atingido por uma
bala perdida enquanto cochilava. Logo depois, um vizinho deu a notícia à
família. "Achávamos que era mentira", disse a cunhada da vítima que,
como muitas outras vítimas do derramamento de sangue que assola o Rio, pediu
para não ser identificada.
Quando
a Avenida Brasil foi construída na década de 1940, durante a ditadura de
Getúlio Vargas, ela foi concebida como uma declaração patriótica da ascensão
econômica do país sul-americano, disse Pedro Moraes, autor de um livro sobre a
rodovia.
Oito
décadas depois, a rodovia de 58 quilômetros — que corta mais de 25 bairros ao
longo da estrada que vai da periferia oeste do Rio em direção ao seu centro —
se tornou um símbolo de outra coisa: a incapacidade do governo de controlar a
violência urbana.
“Hoje
em dia, os cariocas não conseguem nem tirar um cochilo no ônibus para o
trabalho”, protestou um importante jornal após o assassinato de Oliveira,
chamando a Avenida Brasil de “um símbolo do fracasso do Estado brasileiro no
combate ao crime organizado”.
De
acordo com o Instituto Fogo Cruzado, grupo que monitora a violência armada, a
Avenida Brasil sofreu 637 tiroteios entre 2017 e 2024 – um a cada cinco dias.
Os tiros mataram 160 pessoas e feriram 383. Na semana passada, três policiais
foram mortos na rodovia após perderem o controle do veículo durante uma
perseguição em alta velocidade.
“A
Avenida Brasil é uma avenida que revela profundamente o que é o nosso país… Ela
representa fielmente o nome que carrega”, disse Antônio Carlos Costa, chefe da
Rio de Paz, uma ONG antiviolência.
Enquanto
os construtores da via imaginavam criar um monumento ao desenvolvimento e à
industrialização, Costa acreditava que ela expunha “um país de brutal
desigualdade, injustiça e exclusão social”.
Costa
lembrou como milhões de migrantes nordestinos empobrecidos migraram para o Rio
e se estabeleceram ao longo da rodovia desde a década de 1950, construindo suas
vidas em conjuntos habitacionais precários e favelas que eram "ignorados
pela sociedade e pelas autoridades" e agora são controlados em sua maioria
por grupos criminosos armados.
Milionários,
celebridades e formadores de opinião usavam a rodovia para chegar a paraísos
praianos e mansões, alheios ao “verdadeiro Rio de Janeiro” por onde passavam no
caminho.
Todas
as esferas da vida estão expostas à violência mortal que assola a Avenida
Brasil, devido a décadas de negligência estatal. Recentemente, o filho de Costa
dirigia para casa na rodovia quando balas traçantes iluminaram o céu noturno.
"Ele me disse que pareciam fogos de artifício voando pela rua", disse
o ativista, falando 24 horas depois que o corpo de um policial foi encontrado
em um veículo crivado de balas abandonado na mesma rodovia.
Entre
as famílias apoiadas pelo grupo de Costa está a de Cátia Sebastiana de Lima, de
43 anos.
O
marido dela, um motorista de Uber chamado Paulo Roberto de Souza, também foi
morto durante a operação policial fracassada de outubro passado, na qual
Oliveira perdeu a vida. Outros três foram baleados, mas sobreviveram.
“Ele
tinha tantos sonhos… ele era um pai tão bom”, disse Lima, derramando lágrimas
ao se lembrar de ter feito uma oração às 5 da manhã com o marido na manhã em
que ele foi baleado.
Seis
meses depois, Lima ainda não recebeu nenhuma indenização e lutava para
sobreviver. "Nunca imaginei que perderia meu marido para a violência
armada... Um ataque cardíaco, talvez. Mas nunca me passou pela cabeça que seria
algo tão trágico quanto isso", disse ela.
A
reputação da Avenida Brasil, marcada pelo caos no trânsito e tiroteios, lhe
rendeu uma série de apelidos sombrios. Alguns a chamam de "Avenida da
Morte", outros de "Avenida Ziquizira". A região ao redor da via,
marcada pela violência, é conhecida como Faixa de Gaza.
Washington
Rimas, um ativista social criado em uma das favelas da Avenida Brasil no início
dos anos 80, admitiu que a infâmia não era totalmente imerecida.
Quando
menino, ele se lembra de criminosos jogando as vítimas no mato do outro lado da
rodovia, em frente à sua casa, em Amarelinho. "Era um mato horrível. Muita
gente vinha de outros lugares e jogava os corpos ali, no mato", disse
Rimas, cuja mãe foi uma das primeiras moradoras da comunidade construída para
operários da construção civil e de fábricas.
Mas
Rimas, de 49 anos, insistiu que a Avenida Brasil era mais do que derramamento
de sangue e rebateu sua notoriedade. A rodovia também era um meio de transporte
essencial para trabalhadores com empregos nas zonas mais ricas do Centro e Sul
do Rio. As favelas da via eram locais de talento e corrupção.
Rimas,
um ex-traficante que abandonou o crime há mais de uma década , disse que sua
nova missão era ajudar crianças locais com atividades extracurriculares, como
música, informática e dança. "Era aqui que vendíamos veneno – e é aqui que
vamos produzir o antídoto", disse ele sobre sua busca para melhorar sua
esquina na Avenida Brasil.
A líder
comunitária Vanessa Galdino também rejeitou a imagem negativa da Avenida Brasil
e das áreas populares que ela conecta. "Tenho orgulho de morar aqui",
disse Galdino, de 29 anos, estudante que administra uma sorveteria para os
jovens de Amarelinho.
Galdino
não tinha planos de partir, apesar de ter perdido o pai para a violência quando
tinha 17 anos. "Somos um povo resiliente e acolhedor", disse ela.
Apesar dos defeitos, a Avenida Brasil era o seu lar.
Entre
as vítimas da violência da Avenida Brasil, esse otimismo é mais difícil de
encontrar.
Sentada
em casa, cercada por fotos do marido morto, Lima pediu às autoridades que
mudassem sua estratégia de combate às gangues de traficantes com ataques no
estilo zona de guerra nas favelas.
“Não se
combate o crime apenas com polícia, tiros e invasões… É preciso projetos
sociais, escolas, música, esporte, saúde e educação… Precisamos convencer
nossas crianças de que elas são o futuro do Brasil”, disse Lima, que duvidava
que as autoridades ouvissem.
Enquanto
assimilava a perda, ela se apegou à fé cristã. "Gosto de dizer que não
perdi meu marido", disse Lima. "Eu o devolvi a Deus."
Fonte:
The Guardian

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