Educadora
sexual defende direito ao prazer de mulheres da periferia
Taís
colocou sete filhos no mundo, mas só mais tarde passou a conhecer o prazer
sexual. Diana não sabia que podia ter prazer sem depender do parceiro – até
ganhar um vibrador. Evelyn passou por uma série de relacionamentos abusivos até
aprender a identificar que aquelas situações não eram aceitáveis.
Moradoras
do Parque Analândia, favela no município de São João de Meriti (RJ), na Baixada
Fluminense, essas e outras mulheres da comunidade passaram a trilhar um caminho
de descobertas e autoconhecimento já em idades maduras, depois de conhecerem a
Ana Autoestima.
Ana,
como chamam a "amiga", é negra, corpulenta e estilosa. Usa óculos de
aro preto, brincão, cabelo cheio e um blazer amarelo-manga. Seu rosto simpático
está grafitado em um muro colorido no Parque Analândia, ao lado de outras
figuras femininas com corpos de diferentes padrões e tons de pele.
No topo
do painel, a frase: "Nunca deixe algo ou alguém apagar seu brilho".
Ana
Autoestima é uma personagem virtual criada pela empresa social Tabu Tabu para
promover, usando grupos de WhatsApp, a educação sexual, o autoconhecimento e o
direito ao prazer entre mulheres de periferias.
A
iniciativa busca preencher lacunas ligadas às vulnerabilidades que acompanham a
pobreza – como maior exposição a violência urbana e doméstica, falta de acesso
a saúde e educação de qualidade, além da falta de tempo e recursos para se
informar.
De
acordo com a educadora sexual Laura Ramos Tomás, cocriadora do projeto,
mulheres de periferias em geral não buscam informações sobre sexo no sistema de
saúde. Isso porque, quando o fazem, encontram abordagens mais ligadas a
contracepção e prevenção de doenças do que saúde sexual.
Muitas
vezes, elas também enfrentam estigma e julgamento.
"Quando
procuram postos de saúde, ouvem comentários como 'toma, leve essas camisinhas
porque você já tem muitos filhos', em vez de abordagens mais adequadas a suas
realidades", afirma Laura.
Espanhola
radicada no Rio, Laura conta que teve a ideia para a iniciativa depois de
realizar uma roda de conversa sobre sexualidade com adolescentes na favela e
ser abordada por uma mulher mais velha.
A
mulher disse que aquelas informações seriam importantes para ela também, porque
ela não tinha acesso a algo do tipo.
"Queríamos
dialogar com essas mulheres de uma forma que os serviços de saúde não fazem.
Então, viemos até onde elas estão, suas comunidades, e usamos o WhatsApp, o
aplicativo mais usado no Brasil."
O
projeto começou a ser gestado em 2021 e teve o primeiro grupo de WhatsApp
lançado em 2023, com as mulheres do Parque Analândia.
Hoje, a
iniciativa está presente em quatro favelas do Rio, somando cerca de 200
participantes.
Também
estão sendo desenvolvidos núcleos em novos bairros, chegando às mulheres
através do boca a boca e de parcerias com projetos sociais nas comunidades.
Taís
dos Reis Motta, mãe, dona de casa e moradora do Parque Analândia, diz que os
ensinamentos da personagem ajudaram a aumentar sua autoestima, a gostar mais do
seu corpo e a entender que pode dizer "não" para o sexo quando não
quer.
Sua
vida sexual também melhorou, diz ela.
"Melhorou
e muito! Porque eu nem gostava. Eu fazia por fazer. Por uma vida passada que eu
tive, eu nem sabia o que era sentir prazer. Você acredita?", pergunta.
"Eu,
com 35 anos, mãe de sete filhos. E não sabia. Foi através daqui [que
aprendi]", disse Taís à reportagem, durante um encontro do projeto.
"[A
Ana Autoestima] me ensinou a ter o meu autoconhecimento, explorar o meu corpo.
Hoje eu me sinto muito mais feliz do que antes."
• Virtual e presencial
Nos
grupos de WhatsApp, Ana Autoestima posta vídeos simples e divertidos para
abordar temas variados sem tabu, sempre começando por "oi, amiga!".
A
personagem ensina sobre sexo seguro e prevenção, mas também sobre prazer,
consentimento, direitos e autocuidado.
Os
títulos exemplificam a gama de assuntos.
"Nem
todo prazer sexual é sexo", ensina um vídeo.
"Você
tem certeza que conhece o clitóris todinho?", pergunta outro.
"Já
ouviu falar da montanha-russa do prazer?", questiona um terceiro,
descrevendo a potência orgástica feminina como um carrinho que sobe uma
montanha-russa e precisa de carga progressiva até chegar ao topo.
A
personagem fala em uma voz gerada por inteligência artificial (IA), mas seus
roteiros são cuidadosamente elaborados pela equipe por trás da iniciativa.
São 13
mulheres, entre pedagogas, psicólogas, educadoras e comunicadoras, assim como
mulheres que contribuem com relatos de suas experiências pessoais.
Além de
trocar mensagens no grupo, as participantes podem escrever para Ana "no
privado" quando o assunto pede discrição, e recebem respostas elaboradas
pela equipe.
Mas o
trabalho não é apenas virtual. De tempos em tempos, as participantes – todas
mulheres, e já em idade adulta – são convidadas para rodas de conversas com a
equipe por trás do projeto.
Os
encontros dão espaço a dúvidas, gargalhadas, choro e desabafos.
A BBC
News Brasil acompanhou um desses eventos, que reuniu cerca de 15 mulheres em um
domingo de sol quente.
Na
entrada do Parque Analândia, barricadas de concreto fechavam a rua de acesso à
comunidade, demarcando o território controlado pelo Comando Vermelho.
Traficantes
com fuzis armavam um ponto de venda de drogas na rua principal, perto da quadra
esportiva da comunidade. Na camiseta de um deles, a frase: "Que Deus
proteja minhas costas porque o resto eu bato de frente."
O
encontro foi realizado no galpão de uma ONG local, a Há Esperança.
Enquanto
um pagode alto tocava na casa vizinha, a equipe organizava cadeiras de plástico
brancas em círculo e punha a mesa do lanche – bolo, refrigerante e misto-quente
no pão francês.
As
mulheres foram chegando, a maioria de shorts, chinelos e blusas sem manga para
aplacar o calor.
O tema
do dia era autocuidado. O encontro começou com uma meditação conduzida por uma
psicóloga e uma conversa sobre a importância de se cuidar.
Todas
olhavam atentas enquanto a pedagoga Tayana Leôncio falava sobre o fato de a
maioria ali trabalhar em escala 6x1, e sobre seus corpos estarem sempre
"na linha de frente", seja no mercado de trabalho ou nos serviços
domésticos.
"O
nosso corpo racializado está sempre cuidando do outro, sempre servindo a
alguém. Nossas ancestrais também estiveram nesse lugar", disse Tayana.
"Na
nossa geração, é importante a gente resgatar e reverter esse cuidado para a
gente, para o nosso corpo", afirmou, enfatizando a importância de mulheres
pretas se olharem no espelho e amarem o que vêem, em uma sociedade que
padroniza corpos e não valoriza o biotipo negro.
"A
Ana Autoestima fala com mulheres que trabalham de segunda a segunda, 12 horas
por dia, e quando chegam em casa ainda têm que cuidar da casa e dos filhos,
vivendo em condições de extrema violência social", diz Tayana à BBC News
Brasil.
"Nesse
contexto, o autocuidado fica esquecido, ou essa mulher sequer teve oportunidade
na vida de pensar a respeito. Porque desde muito nova, sempre esteve envolvida
no cuidado com o outro", ressalta.
• Aprender a dizer 'não'
Evelyn
Cristina dos Santos tem 36 anos e acabou de começar um novo emprego como
auxiliar de serviços gerais.
A mãe
de cinco filhos comemora a carteira de trabalho assinada, mas a rotina é
puxada: ela trabalha das 7h às 19h, de segunda a sexta-feira.
Evelyn
é uma colaboradora-chave do projeto dentro da comunidade, onde mora desde os
dez anos. Ela ajudou a conceber a Ana Autoestima desde o princípio.
Para o
projeto dar certo, era essencial que as mulheres se identificassem com a
personagem.
Assim,
Ana foi criada como uma mulher negra, empoderada e com uma fala acessível,
sempre se comunicando por áudio além de textos.
"Sempre
tivemos uma preocupação de que ela não falasse apenas por mensagens escritas,
porque aqui há muitas idosas e mulheres que não sabem ler", diz Evelyn.
Como
para outras mulheres da comunidade, a chegada do projeto de educação sexual
trouxe mudanças importantes para Evelyn.
"Eu
me casei muitas vezes e tive muitos casamentos abusivos, onde sofri muito,
apanhei, fui muito traída", conta a auxiliar de serviços gerais.
"Um
deles dizia que minhas roupas marcavam o corpo, eram indecentes, que eu não
devia usar brinco, batom", lembra ela.
"Quando
eu conheci a Ana, entendi que a gente não está sendo vulgar nem querendo chamar
atenção, mas sim se valorizando, né? Se mantendo viva, feliz consigo
mesma", afirma.
Na
comunidade, diz Evelyn, muitas mulheres são coagidas a fazerem o que não
querem.
"A
Ana tem um papel muito importante na minha vida, me fez descobrir quem eu sou.
E que eu não preciso fazer só aquilo que o meu companheiro quer, eu posso fazer
também o que eu quero. Eu posso dizer não."
• Vulva de pelúcia
Na roda
de conversas, os ânimos se afloram quando chega a hora de distribuir para as
mulheres um kit com camisinhas (masculina e feminina), lubrificante e um
pequeno espelho para incentivá-las a conhecer melhor suas anatomias íntimas.
Laura
Ramos Tomás leva para o centro da roda uma vulva de pelúcia laranja do tamanho
de uma bola de basquete e indica cada parte – os lábios, a entrada do canal
vaginal e o clitóris com suas ramificações, ensinando que este é o único órgão
do corpo que serve apenas para gerar prazer.
"Eu
não sabia que a minha perereca tinha tanta parte, tinha tanta camada!",
diz Taís à BBC News Brasil.
"Eu
juro para você. Para mim, era um negócio que eu fazia xixi, menstruava e botava
filho para fora. Não, é um negócio complexo..."
A vulva
de pelúcia é um de diversos objetos que a equipe usa nas rodas de conversa para
"tornar tudo um pouco menos intimidador", explica Laura.
"Usamos
acessórios para quebrar o gelo e ajudá-las a visualizar coisas que podem não
ter visto nem ter familiaridade em seus próprios corpos", conta a
educadora sexual.
"Muitas
vezes, vemos a imagem de um pênis grafitada em muros, ou crianças o desenham na
escola. Mas vulvas são subrepresentadas neste mundo, e vulvas são lindas. Se
estamos desenhando pênis, deveria haver o mesmo número de vulvas em nossos
muros", defende.
O
evento termina com um sorteio: três vibradores são presenteados às mulheres.
O
modelo é cor de rosa claro, no formato de um golfinho. As mulheres caem na
risada quando o nome de Diana Alves é anunciado. É a terceira vez que ela ganha
um vibrador em sorteios do projeto.
"Eu
não sabia que se eu usasse algum brinquedinho, eu ia ter o mesmo prazer que eu
tinha com um homem", conta Diana à BBC News Brasil.
"Após
conhecer, eu me interessei e comprei um. Só que o brinquedinho era meio
ruinzinho. Aí eu ganhei um da Ana e foi maravilhoso. Aí eu ganhei outro, e o
negócio ficou mais intenso. Eu até esqueço que tenho um namorado às
vezes", brinca ela, que tem 33 anos e trabalha como revendedora de
revistas.
Ela não
guarda segredo com o namorado, e contou a ele: "Arrumei um brinquedinho
que faz tudo que você faz. Só não engravida e não me traz doença nenhuma."
• 'Grito de guerra'
O evento
termina alegre e animado. Do lado de fora, as mulheres se reúnem em frente ao
grafite da personagem Ana Autoestima para uma foto coletiva.
A
repórter é designada para tirar o retrato e pergunta, antes de fazer o clique:
"Qual é o grito de guerra?"
"Vulva!",
todas gritam em uníssono.
Laura
Ramos Tomás afirma que o projeto tem mostrado que quebrar barreiras para falar
de sexo tem efeitos que vão muito além das quatro paredes.
"Quando
as mulheres envolvidas no projeto praticam o prazer, e entendem que é um
direito, isso permite que elas se sintam fortalecidas em outras áreas de suas
vidas... E se encorajem para ter uma conversa difícil com o parceiro sobre a
carga de trabalho em casa, ou pedir ajuda para escrever um currículo atrás de
um emprego, ou se alfabetizar aos 45 anos", exemplifica.
"O
valor do que fazemos é lembrar às mulheres que elas são as mais preparadas e
têm o que é preciso para seguir em frente em suas vidas."
Fonte:
BBC News Brasil

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