Quinze
teses sobre o partido-movimento
Em
2020, alguns companheiros fundadores do partido Podemos de Espanha pediram-me
um texto sobre uma nova concepção de partido político adaptado às condições
actuais em que a democracia, reduzida a processos eleitorais, corre o risco de
ser destruída por dentro, pelas forças de extrema-direita que usam a democracia
para chegar ao poder, mas não para o exercer democraticamente, uma vez no
governo. O texto foi publicado numa das revistas do partido. Era um tempo, já
longínquo, em que alguns militantes do Podemos acreditavam na renovação do
partido e de toda a esquerda a partir de um novo tipo de partido. Na semana
passada, (23 de maio de 2025), durante a minha estadia no México, foi-me
solicitada uma entrevista por um grupo de militantes de base, de esquerda,
intitulado “Unidade das Esquerdas”. Para minha surpresa, traziam consigo uma
fotocópia do meu texto e queriam discuti-lo comigo. Foi uma conversa muito
interessante. Em face dos recentes resultados eleitorais em Portugal (partido
Chega, de extrema-direita, é a segunda força política) e em face dos processos
eleitorais que se aproximam no Brasil, pensei que talvez fosse útil dá-lo a
conhecer aos democratas de esquerda. Não fiz qualquer alteração ao texto
original.
1. Não
há cidadãos despolitizados; há cidadãos que não se deixam politizar pelas
formas dominantes de politização, sejam elas partidos ou movimentos da
sociedade civil organizada.
Play
Video
Os
cidadãos e as cidadãs não estão fartos da política, mas sim desta política; a
esmagadora maioria dos cidadãos não se mobiliza politicamente nem sai à rua
para se manifestar, mas está cheia de raiva em casa e simpatiza com quem se
manifesta; em geral, não tem condições para aderir a partidos ou participar em
movimentos ou interesse em o fazer, mas quando vem para a rua só surpreende as
elites políticas que perderam o contacto com “as bases”.
2. Não
há democracia sem partidos, mas há partidos sem democracia.
Uma das
antinomias da democracia liberal do nosso tempo reside em ela assentar cada vez
mais nos partidos como forma exclusiva de agência política, ao mesmo tempo que
os partidos são internamente cada vez menos democráticos. Tal como a democracia
liberal, a forma partido-tradicional esgotou o seu tempo histórico. Os sistemas
políticos democráticos do futuro têm de combinar a democracia representativa
com a democracia participativa a todos os níveis de governação. A participação
cidadã tem de ser multiforme e multicanais. Os próprios partidos devem ser
internamente constituídos por mecanismos de democracia participativa.
3. Ser
de esquerda é um ponto de chegada e não um ponto de partida e, portanto,
prova-se nos factos.
A
esquerda tem de voltar às suas origens, aos grupos sociais excluídos, que ela
esqueceu há muito tempo. A esquerda deixou de falar ou de saber falar com as
periferias, com os mais excluídos. Quem fala hoje com as periferias e com os
mais excluídos são as igrejas evangélicas pentecostais ou os agitadores
fascistas. Hoje, o activismo de esquerda parece limitar-se a participar numa
reunião do partido para fazer (quase sempre ouvir quem faz) uma análise de
conjuntura. Os partidos de esquerda, tal como existem hoje, não são capazes de
falar com as vozes silenciadas das periferias em termos que estas entendam.
Para mudar isso, a esquerda, ou melhor, as esquerdas devem ser
reinventadas.
4. Não
há democracia, há democratização.
A
responsabilidade da esquerda reside em que só ela serve genuinamente à
democracia. Não se limita ao espaço-tempo da cidadania (democracia liberal).
Pelo contrário, luta por ela no espaço da família, da comunidade, da produção,
das relações sociais, da escola, das relações com a natureza e das relações
internacionais. Cada espaço-tempo convoca um tipo específico de democracia. Só
democratizando todos os espaços-tempo é que se consegue democratizar o
espaço-tempo da cidadania e da democracia liberal representativa.
5. O
partido-movimento é o partido que contém em si o seu contrário.
Para
ser um pilar fundamental da democracia representativa, o partido-movimento deve
ser construído por processos não representativos, mas sim, participativos e
deliberativos. Nisto consiste a passagem da forma partido-tradicional para a
forma partido-movimento. Consiste em aplicar à vida interna dos partidos a
mesma ideia de complementaridade entre democracia participativa/deliberativa e
democracia representativa que deve orientar a gestão do sistema político em
geral. A participação/deliberação respeita a todos os domínios do
partido-movimento, da organização interna à definição do programa político, da
escolha de candidatos às eleições à aprovação de linhas de ação na conjuntura.
6. Ser
membro da classe política é algo sempre transitório.
Tal
qualidade não permite que se ganhe mais do que o salário médio do país; os
membros eleitos para os parlamentos não inventam temas ou posições, veiculam os
que provêm das discussões nas estruturas de base; a política partidária tem de
ter rostos, mas não é feita de rostos; o ideal é que haja mandatos coletivos
que permitam a rotação regular de representantes durante a mesma legislatura; a
transparência e a prestação de contas têm de ser totais; o partido é um serviço
dos cidadãos para os cidadãos e por isso deve ser financiado por estes e não
por empresas interessadas em capturar o Estado e esvaziar a democracia.
7. O
partido-movimento é uma contra-corrente contra dois fundamentalismos.
Os
partidos convencionais sofrem de um fundamentalismo anti-movimento social.
Consideram que têm o monopólio da representação política e que esse monopólio é
legítimo, precisamente porque os movimentos sociais não são representativos.
Por sua vez, os movimentos sofrem de um fundamentalismo anti-partido.
Consideram que qualquer colaboração ou articulação com os partidos compromete a
sua autonomia e diversidade e acaba sempre em tentativa de cooptação.
Enquanto
a democracia representativa estiver monopolizada por partidos anti-movimento e
a democracia participativa por movimentos sociais, ou associações de bairros
anti-partido, não será possível qualquer articulação entre democracia
representativa e participativa com prejuízo para ambas. É preciso vencer esses
dois fundamentalismos.
8. O
partido-movimento combina a ação institucional com a ação extra-institucional.
Os
partidos tradicionais privilegiam a ação institucional, dentro dos quadros
legais e com mobilização das instituições, tais como, o parlamento, os
tribunais e a administração pública. Pelo contrário, os movimentos sociais,
embora utilizem também a ação institucional, recorrem muitas vezes à ação
directa, aos protestos e manifestações nas ruas e nas praças, aos sit-ins,
à divulgação de agendas por via da arte (o artivismo). Em face disto, a
complementaridade não é fácil e tem de ser pacientemente construída.
Não
podemos generalizar as condições de acção colectiva: há condições políticas em
que as classes que estão no poder são muito repressivas, muito monolíticas; há
outras em que são mais abertas, menos monolíticas, e há muita competição entre
elas. Quanto mais competição entre elites, mais brechas se abrem para que por
elas entrem o movimento popular e a democracia participativa. O importante é
identificar as oportunidades e não desperdiçar. São muitas vezes desperdiçadas
por razões de sectarismos, dogmatismos, carreirismos.
A
prática dos movimentos tem frequentemente de oscilar entre o legal e o ilegal.
Em alguns contextos, a criminalização da contestação social está a reduzir a
possibilidade tanto da luta institucional como da luta extra-institucional
legal. Nesses contextos, a ação coletiva pacífica pode ter de enfrentar as
consequências da ilegalidade. Sabemos que classes dominantes sempre usaram a
legalidade e a ilegalidade segundo as suas conveniências. Não ser classe
dominante reside precisamente em ter de contar com as consequências da
dialéctica entre legalidade e ilegalidade e proteger-se na medida do possível.
9. A
revolução da informação electrónica e as redes sociais não constituem, em si,
um instrumento incondicionalmente favorável ao desenvolvimento da democracia
participativa.
Pelo
contrário, podem contribuir para manipular a tal ponto a opinião pública que o
processo democrático pode ser fatalmente desfigurado. O exercício da democracia
participativa necessita hoje, mais do que nunca, de reuniões presenciais e
discussões face a face. A tradição das células partidárias, dos círculos de
cidadãos, dos círculos de cultura, das comunidades eclesiais de base tem de ser
reinventada. Não há democracia participativa sem interação de proximidade.
10. O
partido-movimento assenta na pluralidade despolarizada e no reconhecimento das
competências específicas.
A
pluralidade despolarizada é aquela que permite distinguir entre o que separa e
o que une as organizações e promover as articulações entre estas com base no
que as une, sem perder a identidade do que as separa. O que as separa apenas
fica em suspenso por razões pragmáticas.
O
partido-movimento tem de saber combinar questões generalistas com questões
sectoriais. Os partidos tendem a homogeneizar as suas bases sociais e a
centrar-se nas questões que as abrangem a todas ou a largos sectores delas.
Pelo contrário, os movimentos sociais tendem a concentrar-se em temas mais
específicos, tais como, o direito à habitação, a imigração, a violência
policial, a diversidade cultural, a diferença sexual, o território, a economia
popular, etc. Trabalham com linguagens e conceitos distintos dos que são usados
pelos partidos.
Os
partidos podem sustentar uma agenda política com mais permanência que os
movimentos. O problema de muitos movimentos sociais reside na natureza da sua
irrupção social e mediática. Em determinado momento têm uma atividade enorme,
estão todos os dias na imprensa, e no mês seguinte já estão ausentes ou entram
em refluxo com as pessoas a deixarem de ir às reuniões ou às assembleias. A
sustentabilidade da mobilização é um problema muito sério porque, para que se
consiga uma certa continuidade na participação política, é preciso haver
articulação política mais ampla que envolva partidos. Por sua vez, os partidos
estão sujeitos a transformar a continuidade da presença pública na condição
para a sobrevivência de quadros burocráticos.
11. O
partido-movimento prospera numa luta constante contra a inércia.
Podem
gerar-se duas inércias: por um lado, a inércia e o refluxo dos movimentos
sociais que não se conseguem multiplicar e densificar a luta e, por outro, os
partidos que não mudam em nada as suas políticas ficam sujeitos à estagnação
burocrática. Superar estas inércias é o maior desafio para a construção do
partido-movimento.
Trabalhando
com experiências concretas, nota-se que os partidos, ao ter vocação de poder,
costumam lidar bem com a questão dos desequilíbrios dentro do espaço público.
Mas porque competem pelo poder, não querem transformá-lo, querem tomá-lo. Os
movimentos sociais, ao contrário, sabem que as formas de opressão tanto vêm do
Estado, como de actores económicos e sociais muito fortes. Em algumas
situações, a distinção entre a opressão pública e a opressão privada não é
demasiado importante. Os sindicatos, por exemplo, têm uma experiência notável
de luta contra actores privados: os patrões e as empresas. Tanto os movimentos
sociais como os sindicatos estão hoje marcados por uma experiência muito
negativa: os partidos de esquerda nunca descumpriram tanto as suas promessas
eleitorais quando chegaram ao poder como ultimamente. Esse descumprimento faz
com que a deslegitimação dos partidos seja cada vez maior em mais países. Essa
perda do controle da agenda política somente pode ser recuperada por meio dos
movimentos sociais enquanto articulados nos novos partidos-movimentos.
12.
A educação política popular é a chave para sustentar o partido-movimento.
As
diferenças entre partidos e movimentos são ultrapassáveis. Para isso é
necessário promover o interconhecimento por via de novas formas de educação
política popular: rodas de conversas, ecologias de saberes, oficinas da
Universidade Popular dos Movimentos Sociais; discussão de possíveis práticas de
articulação entre partidos e movimentos: orçamentos participativos, plebiscitos
ou consultas populares, conselhos sociais ou de gestão de políticas públicas.
Até agora as experiências são sobretudo de escala local. Há que desenvolver a
complementaridade em nível nacional e global.
13. O
partido-movimento vai para além da articulação entre partido e movimento
social.
Depois
de mais de quarenta anos de capitalismo neoliberal, de colonialismo e de
patriarcado sempre renovados, de concentração escandalosa da riqueza e de
destruição da natureza, as classes populares, o povo trabalhador, quando
explode ou irrompe de indignação, tende a fazê-lo fora dos partidos e dos
movimentos sociais. Uns e outros tendem a ficar surpreendidos e a ir atrás da
mobilização. Para além de partidos e movimentos, há que contar com os
movimentos espontâneos, com as presenças colectivas nas praças públicas. O
partido-movimento tem de estar atento a estas irrupções e ser solidário com
elas sem tentar dirigi-las ou cooptá-las.
14. Vivemos
um período de lutas defensivas. Compete ao partido-movimento
travá-las, não perdendo de vista as lutas ofensivas. A ideologia de
que não há alternativa ao capitalismo – que, de facto, é uma tríade:
capitalismo, colonialismo (racismo) e patriarcado (sexismo) –acabou por ser
interiorizada por muito do pensamento de esquerda. O neoliberalismo conseguiu
combinar o fim supostamente tranquilo da história com a ideia da crise
permanente (por exemplo, a crise financeira). Por esta razão, vivemos hoje sob
o domínio do curto prazo. É preciso atender às suas exigências porque quem está
com fome ou é vítima de violência doméstica não pode esperar pelo socialismo
para comer ou ser libertada.
Mas não
se pode perder de vista o debate civilizatório que põe a questão das lutas de
médio prazo e ofensivas. A pandemia, ao mesmo tempo que tornou o curto prazo em
urgência máxima, criou a oportunidade para pensar que há alternativas de vida e
que se não queremos entrar num período de pandemia intermitente temos de
atender aos avisos que a natureza nos está a dar. Se não alterarmos os nossos
modos de produzir, de consumir e de viver, caminharemos para um inferno
pandêmico.
15. Só
o partido-movimento pode defender a democracia liberal como ponto de partida e
não como ponto de chegada.
Num
momento em que os fascistas estão cada vez mais perto do poder, quando não
estão já no poder, uma das lutas defensivas mais importantes é defender a
democracia. A democracia liberal é de baixa intensidade porque é pouca. Aceita
ser uma ilha relativamente democrática num arquipélago de despotismos sociais,
económicos e culturais. Hoje em dia, a democracia liberal é boa como ponto de
partida, mas não como ponto de chegada. O ponto de chegada é uma profunda
articulação entre a democracia liberal, representativa e a democracia
participativa, deliberativa. Neste momento de lutas defensivas é importante
defender a democracia liberal, representativa para neutralizar os fascistas e
para a partir dela radicalizar a democratização da sociedade e da política. Só o
partido-movimento pode travar esta luta.
Fonte:
Por Boaventura Sousa Santos, em Brasil 247

Nenhum comentário:
Postar um comentário