Memória:
As crianças banidas pela ditadura
Utilizar
bebês, crianças e adolescentes como alvos para aniquilar os opositores é uma estratégia
que está presente na longa história da ditadura civil-militar brasileira.
Infelizmente, esta foi uma das táticas de guerra da doutrina
antirrevolucionária aplicadas pelas forças militares no período 1964-1985. O
objetivo era aniquilar o inimigo, os opositores ao regime ditatorial.
Utilizava-se a força militar, em todos seus sentidos e facetas, para manter o
poder. Não importando se o alvo era um adulto, homens, mulheres, idosos ou
bebês, crianças e adolescentes. Utilizar bebês, crianças e adolescentes como
alvos era uma atitude suja e horrenda. Primeiro, pela covardia do método. Era
ultrapassar os limites dos valores humanos. O alvo eram os filhos daqueles
considerados inimigos do governo. Para que serve o sequestro, a tortura, a
prisão e o exílio dessas crianças? Várias delas vão responder a essa pergunta
nos depoimentos contidos neste livro. É repulsivo quando se estabelece uma
tática militar que atinge seres humanos nessa faixa etária. Este conceito de
guerra também aliena a população, escala o ódio, a violência, cria narrativas
erradas e equivocadas. Faz florescer muito ressentimento e joga para baixo da
linha do chão a razão, a ética, a civilização e o próprio ser humano. Expõe
ações demoníacas.
Durante
os 21 anos do período de repressão, especialmente na fase pós-AI-5, imposto em
13 de dezembro de 1968, o governo militar, com apoio de boa parte da sociedade
civil, religiosa e empresarial, teve como orientação basilar a chamada Doutrina
de Segurança Nacional (DSN). A prática dessa guerra suja tinha como missão
combater o chamado “inimigo interno” para manter a soberania nacional. Era a
guerra contra o fantasma do comunismo. Estratégia da extrema direita vigente
até os dias atuais, onde são formatadas histórias que estão num patamar pouco
civilizado. A técnica usada pelos generais que estavam no poder combatia toda e
qualquer forma de oposição, fosse ela originada entre os trabalhadores nas
fábricas, nos camponeses, nos ribeirinhos, nos movimentos religiosos
progressistas, nos estudantes, nas mulheres, na cultura, na comunicação e
educação, no movimento feminista e até nas crianças. Não que crianças fossem
protagonistas de uma movimentação que pudesse abalar os alicerces dos
governantes de farda, desestabilizar o país. Era uma estratégia de prevenção
segregacionista que visava acabar com o comunismo. Os bebês, as crianças
representavam o futuro de gerações de opositores aos militares, ao governo
linha-dura. E dentro da lógica da guerra antirrevolucionária deveriam ser
exterminadas para que não pudessem levar adiante, propagar a ideologia
comunista.
• AI-5
No ano
de 1969, os generais ditadores que tinham o poder da vida e da morte
consideravam que o Brasil passava por momentos delicados e precisava de uma
mudança radical no modo de governar. Elaboraram o AI-5. O texto de abertura do
ato – que reproduz o preâmbulo do AI-1, de 9 de abril de 1964 – comprova isso.
Diz o ato: “Considerando que a Revolução Brasileira de 31 de março de 1964
teve, conforme decorre dos Atos com os quais se institucionalizou fundamentos e
propósitos que visavam a dar ao país um regime que, atendendo às exigências de
um sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem democrática,
baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à
subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra
a corrupção, buscando, deste modo, ‘os meios indispensáveis à obra de
reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a
poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de
que depende a restauração da ordem interna e prestígio internacional de nossa
pátria’”.
Assim,
o AI-5 – um dos 17 atos institucionais aplicados pela ditadura – endureceu o
modo de governar, permaneceu vigente por uma década inteira, fechou o Congresso
Nacional e as Assembleias Legislativas nos estados, cassou mais de 170 mandatos
de deputados, senadores e vereadores, instituiu a censura, proibiu reuniões
políticas não autorizadas. E institucionalizou a tortura, perseguições e
violações de direitos humanos, permitiu a prisão ilegal, desaparecimentos de
opositores e o assassinato em nome de um Brasil ideal. Também deu legalidade
para o sequestro de bebês e crianças. O endurecimento do sistema ditatorial
provocou reação da sociedade civil organizada. Mas os generais agiram
impiedosamente, de forma a ignorar a ética, o respeito ao ser humano, aos
direitos do cidadão e à civilidade. “Às favas, senhor presidente, neste
momento, todos os escrúpulos de consciência”, disse o coronel Jarbas
Passarinho, então ministro do Trabalho do general ditador Artur da Costa e
Silva, na assinatura do AI-5. Outro ex-ministro que assinou o ato, Delfim
Netto, também foi contundente ao apoiar o endurecimento do regime. Disse que
estava “plenamente de acordo com a proposição que está sendo analisada no
Conselho. E, se Vossa Excelência me permitisse, direi mesmo que creio que ela
não é suficiente”.
Crianças
também se tornaram preocupação dos militares, assim como os pobres, moradores
das periferias. Não para promover um futuro promissor, com educação e saúde.
Havia um desassossego especial para com aqueles que eram descendentes de
opositores ao regime.
Tal
inquietação colocava numa mesma situação os filhos e filhas de militantes
progressistas contrários à ditadura, que lutaram por democracia e liberdade.
Tornava alvo da repressão os pequenos brasileiros pobres que viviam em situação
de vulnerabilidade nas periferias das grandes cidades. À época, vigiam a
chamada Doutrina da Situação Irregular (DSI) e o Direito Penal do Menor. A DSI
determinava que a educação e a recuperação das crianças envolvidas em delitos
seriam realizadas com o encaminhamento delas para reformatórios e abrigos.
Estava pavimentado o caminho jurídico para atacar as crianças e adolescentes,
fossem elas os trombadinhas, praticantes de pequenos delitos, ou os pobres
moradores em favelas e ruas, além dos chamados minissubversivos. A legislação
permitia colocar esses pequenos brasileiros e brasileiras diretamente sob a
custódia do Estado, cuja política de atendimento variava entre o total
assistencialismo até a completa segregação da sociedade. Ficavam submetidos a
todo e qualquer tipo de violação dos direitos humanos. “No Brasil, fomos
fichados como subversivos”, afirma Nadejda Marques, uma das crianças exiladas e
uma das histórias descritas nesta obra.
• Perigo para o futuro
Nos
anos da ditadura civil-militar no Brasil, o Estado, suas instituições e seus
agentes violaram, de forma massiva e sistemática, direitos humanos e
fundamentais de cidadãos, especialmente daqueles considerados subversivos ou
adversários políticos do regime oficial. “Contudo, não só adultos foram vítimas
dos crimes ditatoriais cometidos pelo Estado. Crianças sofreram igualmente
violências múltiplas. Os depoimentos coletados pela Comissão Nacional da
Verdade e outros organismos de pesquisa relatam histórias de terror, sofrimento
e trauma de suas infâncias. São relatos de crianças que sofreram o terror e o
sofrimento gerado por invasão dos domicílios, trauma pelo exílio, banimentos,
necessidade de viver em clandestinidade ou sob constante vigilância, comparecimento
forçados ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops), afastamento forçado
ou morte dos pais, familiares ou amigos”, destaca o advogado Pedro Affonso D.
Hartung, doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP) e
autor do livro Levando os direitos das crianças a sério. Foi exatamente sob o
manto da Doutrina da Situação Irregular e do Direito Penal do Menor, hoje
revogados, que a ditadura militar avançou sobre bebês, crianças e adolescentes
filhos de militantes políticos que eram opositores ao regime. Representavam
para os militares o perigo futuro no Brasil. “Constata-se que no período da
ditadura civil-militar, o Estado, além de propagar institucionalmente uma
cultura repressiva e opressora por meio das políticas da Funabem e suas
respectivas unidades da Febem, violou de forma grave, massiva e sistemática os
direitos fundamentais de crianças, em especial filhas de cidadãos considerados
inimigos da ideologia do governo vigente”, observa Hartung.
A
Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem) foi fundada em 1º de dezembro
de 1964, exatos nove meses após o golpe de Estado. Era um órgão normativo com
objetivo de criar e colocar em prática uma política nacional de bem-estar do
menor. Foi a Funabem que elaborou as diretrizes políticas e técnicas com a
finalidade de internação e reclusão de crianças e adolescentes. Esses
equipamentos podiam ter caráter educacional ou terapêutico. Nos estados da
federação foram criadas as Febem – Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor
–, órgãos executivos responsáveis pela prática das orientações elaboradas pela
Funabem. Hartung chama a atenção para o claro objetivo dessas instituições à
época, que desenvolviam políticas públicas e leis manipuladas pelos interesses
do governo ditatorial: “A Funabem nasce para responder à necessidade que era
lidar com crianças e adolescentes em conflito com a lei e a falta de
parentalidade”. O conflito para com a lei citado por Hartung é entendido como
uma situação que vai além das crianças em situação irregular ou carentes.
Atinge em cheio os filhos e filhas de opositores da ditadura, potenciais
propagadores do comunismo, socialismo e democracia defendida pelos pais.
“Crianças carentes e abandonadas eram consideradas um perigo moral para a
sociedade. E isso tem muita relação com os opositores à ditadura. Filhos e
filhas dos opositores tiveram seu caminho violentado pela ditadura. Os
militares utilizaram a legislação à época como base jurídica para atuar sobre
essas crianças e adolescentes, tudo a serviço de um modelo maior de sociedade”,
explica Hartung ao se referir às crianças e adolescentes que foram para o
exílio para escapar de uma punição dentro de seu país natal. Ou até mesmo da
morte. Trocando em miúdos, a mão pesada dos militares estava sobre bebês,
crianças e adolescentes com parentesco em primeiro grau com militantes
políticos de oposição. Criava-se assim uma nova modalidade de violência do
Estado. O objetivo era eliminar a propagação de ideologia não condizente com os
preceitos defendidos pelos militares e em defesa da chamada família de bem. A
estratégia era levar essas crianças para as Febem, onde passariam por períodos
de internação forçada, segregação, reeducação. Ainda poderiam ser colocadas
para adoção, embora tivessem família com capacidade financeira/educacional e
estrutura para sustentá-las. Uma saída encontrada pelos familiares dos
militantes de esquerda foi levar suas crianças para o exterior. Algumas foram
trocadas junto com militantes políticos por diplomatas que haviam sido
capturados pela resistência armada. Outras já nasceram no exílio. Mas muitas
cresceram longe dos pais – presos, mortos ou desaparecidos – em uma dezena de
países pelo planeta. Muitas dessas histórias permaneceram invisibilizadas por
décadas e agora estão contadas em primeira pessoa neste livro. Algumas dessas
crianças aparecem em fotografias dos grupos de militantes trocados pelo
embaixador Ehrenfried Von Hollebem, em dezembro de 1970, e pelo embaixador
suíço Enrico Bucher, em janeiro de 1971.
Um dos
casos envolve a família de Zuleide do Nascimento e seus irmãos Samuel, Ernesto
e Luís Carlos, que foram levados inicialmente para a Argélia junto a 40 presos
políticos. Já Tatiana Piola e duas irmãs foram exiladas junto com 70 outros
ativistas de oposição ao regime. “A exigência do governo militar é que
deveríamos sair do país, sermos banidos pois éramos ‘persona non grata’. A
imagem que guardo desse fato é de estarmos dentro de um avião sendo escoltados
por militares armados. Lembro deles perfilados, dentro do avião que nos levou
de São Paulo para o Rio de Janeiro, onde encontraríamos os outros companheiros,
completando a lista dos quarenta. Isso ocorreu no mês de junho de 1970 e fomos
enviados para Argélia, onde permanecemos por aproximadamente trinta dias; e de
lá, me recordo do medo que eu tinha ao ver as mulheres com burca”, lembra
Zuleide do Nascimento. A música cantada no dia da partida do país natal ficou
gravada na cabeça da gaúcha Tatiana Piola: “Com idade de 8 anos, eu era banida
do Brasil juntamente com meus familiares, todos pertencentes àquela lista de 70
pessoas que partiriam do país sem destino conhecido. Tenho lembrança do voo de
avião militar de Porto Alegre ao aeroporto do Galeão no Rio de Janeiro onde nos
juntaríamos aos demais. Lembro também do dia em que partimos e todos cantavam
‘está chegando a hora’ a famosa marchinha de carnaval”. A memória distante dos
pequenos exilados tem a capacidade de mexer com a sensibilidade de quem escuta
ou lê suas narrativas. Danilo Curtis Alvarenga cita um terremoto presenciado em
Santiago, no Chile. “De repente começou um barulho como se uma frota de
tratores estivesse passando na rua, Patrícia já ia reclamar de mais um esbarrão
na mesa, mas reparou que estávamos todos distante dela, o chão começou a
trepidar, foi quando o Billy e a Patrícia gritaram: É terremoto!” – pois já
estavam informados da possibilidade desses eventos no Chile. É de Danilo também
outra recordação impactante, que demonstra que o cruel tratamento dado aos
adultos era o mesmo para as crianças. “Não me lembro como, mas soube de uma
fala do ministro de segurança do Brasil: Filho de peixe, peixinho é, declarou,
querendo dizer que os filhos dos exilados e banidos políticos também eram
considerados exilados e banidos. Sendo assim, para mim ficou que eu, aos oito
anos de idade, estava banido e sendo considerado um terrorista para o povo
brasileiro, que não podia pisar em terras brasileiras”.
• O slogan marqueteiro
Os
militares criaram uma campanha publicitária para ridicularizar a saída de
intelectuais, políticos e militantes progressistas do Brasil na década de 1970,
rumo ao exílio. Elaboraram o slogan Brasil, ame-o ou deixe-o, que atacava
diretamente quem precisou sair do país, sem planejamento, sem futuro, para
salvar suas próprias vidas e a de seus filhos. Adesivos com a frase foram
distribuídos aos milhões, propagandas eram veiculadas nos intervalos de
programas televisivos, nas rádios, nos jornais e revistas. Essas crianças
exiladas eram vistas como elementos perigosos para o governo militar. Ganharam
a pecha de persona non grata da ditadura. Assim, foram banidas do Brasil.
Passaram a ser tratadas como apátridas, filhas de subversivos ou
miniterroristas. Hoje, os exilados tentam curar traumas e cicatrizar feridas e
se esforçam para mostrar aos brasileiros as dificuldades e as agruras que uma
ditadura impõe a todos, às futuras gerações. “Pensar sobre esse emaranhado de
desmemórias tem me feito considerar que essa velha infância teceu, a finas
tramas, uma espécie de para sempre. Assim como os felizes para sempre que
ancoram finais de diversos contos infantis, minha infância foi, também,
esquecida para sempre. E, acredito que esse esquecimento foi necessário e, até
mesmo vital por um determinado período, pois o não lembrar possibilitou o
seguir em frente. Porém, assim como a semente que germina em solo infértil e
encontra formas de romper muros, revisitar o esquecimento e buscar as condições
propícias para desaguar o silêncio é fundamental pelo mesmo motivo. Ou seja,
para seguir – de fato – em frente. Porque é preciso lembrar para poder
esquecer”, explica Marcia Curi Vaz Galvão, que inicialmente foi viver na
Argentina e Espanha. Muitas famílias foram dizimadas ou desestruturadas pelos
órgãos de repressão. Crianças perderam seus pais, que terminaram presos,
torturados, mortos ou desaparecidos. Sozinhos passaram pelo Juizado de Menores
antes de deixar o Brasil. O maior temor era que também tivessem um
desaparecimento forçado, que fossem adotadas ou mesmo assassinadas.
Filho
do agricultor e líder camponês Francisco Julião, Anacleto Julião de Paula
Crêspo demonstra todo o temor vivido ainda em terras brasileiras, quando a
sociedade e a repressão militar ameaçavam sua família de morte. “Em uma ocasião
ameaçaram-nos, escrevendo em carvão, nos muros de nossa casa, que matariam toda
a família enforcada nas árvores de nosso próprio quintal. Eram ameaças muito
concretas. Incontáveis cartas nos chegavam sem trazer remetente ou assinatura.
Uma dessas cartas anônimas, no entanto, se referia a mim, então com não mais
que 10 anos de idade”. Anacleto conta ainda que sozinhos em Cuba ele e os
irmãos tentaram manter laços com o Brasil e seus familiares. Mas nada adiantou.
“Fomos à embaixada suíça, que se encarregava dos interesses da ditadura
brasileira em Cuba, na intenção de requerer nosso passaporte. Informaram-nos
que, no Brasil, éramos persona non grata, que lá, não nos queriam. Dali em
diante, o único vínculo que ainda pudemos conservar com o Brasil, além da
afeição às memórias, eram as desgastadas certidões de nascimento que havíamos
levado conosco, corroídas nas bordas e deterioradas nas dobras”.
Isabel
Maria Gomes da Silva, filha do líder operário e sindicalista Virgílio Gomes da
Silva – um dos expoentes da Ação Libertadora Nacional (ALN) e de Ilda Martins
da Silva, descreve que ela e seus irmãos foram levados a unidades da Febem
antes de partirem para o exílio. “Minhas primeiras lembranças remontam aos três
ou quatro anos de idade, já em Cuba. Também não guardo memórias do ano em que
vivemos no Chile, nem da jornada para chegar, atravessando fronteiras,
Paraguai, Argentina, Chile até o destino final: Cuba. Três anos antes havia
sido arrancada do colo da minha mãe com apenas três meses, levada para um
‘Juizado de menores’ onde meus irmãos Vlademir e Virgílio, de 8 e 7 anos,
respectivamente, cuidaram de mim, mas disto tomei conhecimento muito tempo
depois”, relata Isabel. O pai, Virgílio, foi preso e morreu no dia 29 de
setembro de 1969, depois de uma longa sessão de tortura.
A
história de uma dessas passagens pela Febem paulista vem de Gregorio Gomes da
Silva, um dos irmãos de Isabel. Ele conta que em 1969, junto com Isabel, que na
época tinha 4 meses de idade; e Vladimir e Virgílio, com 8 e 7 anos
respectivamente, registram inúmeras passagens em circunstâncias delicadas no
chamado Juizado de Menores. “Eles relatam que foram levados, não lembro quantas
vezes, a passar o dia em umas casas grandes, bacanas, onde eram bem tratados
(talvez tenha sido uma única vez). Com certeza não tinham a noção sobre a
possibilidade de serem entregues em adoção, mas tinham medo de serem separados.
Contam que dormiam amarrados nos pés do berço onde dormia minha irmã caçula
(Isa) [para evitar que a bebê fosse levada]”. Sofrer maus tratos no Juizado de
Menores em São Paulo também é lembrança de Luis Carlos Max do Nascimento,
sobrinho do operário Manuel Dias do Nascimento, o Neto, de Osasco, militante da
Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Ele ficou exilado em Cuba, depois.
Luis
Carlos conta sobre a detenção junto com dois irmãos na Febem. “Samuel, por ser
maiorzinho, foi levado para um centro de menores infratores. Lá ele sofreu maus
tratos”. Luis Carlos e a irmã Zuleide foram levados para uma unidade com
crianças menores de 7 anos de idade. “Lá tinha até crianças de berço. Sofremos
pressões psicológicas, tiraram nossos pertences, nos vestiram com a roupa do
sistema, cortaram o cabelo de Zuleide de forma brutal e até roubaram seu
brinquinho de ouro, presente de nossa avó. Eles sabiam que éramos parentes de
presos políticos. Lembro que foi muito dolorosa e sentida a separação de minha
avó, éramos muito próximos”, desabafa. Eles também foram trocados pelo
embaixador alemão Ehrenfried Von Holleben, em junho de 1970. No México, o
Brasil disputava a Copa do Mundo de futebol e levou a taça. Era o tricampeonato
mundial utilizado pelo general Emílio Garrastazu Médici para vangloriar seu
governo ditatorial e encobrir o terror praticado pelos agentes do estado no
país. O medo de sofrer qualquer tipo de sevícia era enorme por quem passou por
uma dessas unidades de internação compulsória. Mas assim como no exílio, nessas
entidades os filhos dos presos políticos pela ditadura receberam ajuda de quem
estava mais próximo. “Fomos colocados em camas com outras crianças. Os lençóis
estavam molhados e cheiravam à urina. Uma senhora me ameaçava dizendo que por
ser filha de terroristas era odiada por todos. Senti muito medo e me escondia
embaixo das camas para não ser vista. Tinha uma garota mais velha que me adotou
e protegeu. Foi um momento muito tenso. Estava longe dos meus irmãos e
vulnerável a ataques”, revela Ângela Telma Lucena Imperatrice, filha de Antônio
Raymundo de Lucena, militante da VPR, morto a tiros pela repressão em Atibaia,
interior de São Paulo, em 20 de fevereiro de 1970. Ela foi levada para morar em
Cuba por muitos anos com o irmão, Adilson. “Foi um horror para mim [ser levado
para essas instituições]”, explica Adilson Oliveira Lucena, irmão de Ângela
Telma. “Caminhando um pouco mais em minhas lembranças, minha mente me leva
agora para o ‘Juizado de Menores’. Desse lugar eu guardo o dia em que cortaram
o meu cabelo: eu tinha cabelos bem compridos. Certo dia, uma das encarregadas
de cuidar de nós sentou-me numa cadeira, fez uma trança no meu cabelo, ao lado
havia outra mulher, falando para cortar o meu cabelo e entregar a ela, porque
queria fazer uma peruca e esse fato me fez ficar muito doente, de tristeza.
Ficamos sob a guarda do Juizado de Menores por volta de um mês ou pouco mais que
isso e saímos de lá após muita luta de minha avó, para que fôssemos liberados,
evitando assim sermos adotados por outras famílias, sendo que minha avó havia
sido incluída na lista dos quarenta prisioneiros políticos trocados pelo
embaixador alemão”, conta hoje Zuleide do Nascimento.
• Traição da confiança dos brasileiros
A
lógica de guerra dos militares foi cruel com as crianças na ditadura. Diante da
inocência infantil, o mundo adulto militar agiu de forma truculenta,
desrespeitosa e humilhante. Aqueles que deveriam cuidar das crianças agiram de
forma a trair a confiança de todo o povo brasileiro. Importante lembrar ainda
que no Brasil a ditadura militar também sequestrou bebês, crianças e
adolescentes filhos de opositores ao regime. Essas crianças foram apropriadas,
ou adotadas conforme a legislação, por famílias de militares ou por famílias
ligadas aos militares, outro crime dos militares que permaneceu oculto por mais
de 60 anos. O livro Cativeiro sem fim denuncia esta barbaridade ocorrida nas
décadas de 1960, 1970 e 1980 em vários estados brasileiros. Foram 19 casos, sendo
11 deles registrados na região onde houve a guerrilha do Araguaia. São filhos
de guerrilheiros, de camponeses, de militantes de esquerda ou de pessoas
simpatizantes das forças progressistas que lutavam por democracia e liberdade.
Paralelamente, o exílio dos pequenos se transformou num longo tempo congelado
de vida, de isolamento da família, de parentes, do país e da vida cotidiana,
principalmente para as crianças, como é possível sentir nos depoimentos
descritos nesta obra.
O
exílio despertou sentimentos contraditórios de culpa, perda de sentidos e de
referências. Essas crianças exiladas, banidas, fugitivas, refugiadas,
imigrantes, apátridas, subversivas, miniterroristas são vítimas de um sistema
totalitário. E estavam simplesmente fugindo da morte, lutando pela vida.
Evidente que toda a situação produziu consequências psicológicas nefastas em
todos durante suas jornadas fora do nosso chão. Neste livro estão importantes
registros com a mais crua e simples informação, fatos da vida desses pequenos
cidadãos, considerados persona non grata pela ditadura. As crianças viveram em
muitos países. Escaparam das consequências sinistras de um golpe militar de
estado no Brasil, mas vivenciaram e sofreram com as agruras de outros golpes na
Argentina, no Chile, na Guiné Bissau. Imergiram em outras culturas, enfrentaram
barreiras da língua, falta de um emprego, desilusões, inexistência dos pais e
familiares, distância dos amigos. Ficaram sem um governo para protegê-los. Mas
se autoajudaram e juntas reconstruíram a vida no exterior. Voltaram para um
país que mal reconheciam ou desconheciam totalmente. Se reinventaram e são
exemplo de persistência, lealdade ao Brasil, que os militares tanto pregavam e
não praticaram.
Passados
60 anos do golpe de 1964, a memória do regime militar brasileiro está submetida
a diferentes disputas e tensões. As memórias infantis sobre o período de exílio
abrem uma nova página na história desse período grotesco e revelam histórias,
fatos e informações nunca antes divulgados. Assim, este livro mantém viva a
memória sobre um dos períodos mais cruéis e sangrentos da vida política do
Brasil. Sob outro olhar traz à tona lembranças do arbítrio, perseguição,
tortura, morte e suas consequências sobre os brasileiros e a sociedade. Não se
trata de uma celebração de piedade às vítimas da ditadura militar, mas uma
rememoração da palavra, uma memória que transforma o presente, conforme aponta
Jeanne Marie Gagnebin em Lembrar, escrever, esquecer[3], ao demonstrar que não
é revanchismo, mas sim mostrar as narrativas, fatos e casos que ficaram
escondidos, adormecidos por décadas. As novas gerações de brasileiros, o mundo,
precisam saber o que a ditadura militar fez com os pequenos brasileiros.
Fonte:
Por Eduardo Reina, em Outras Palavras

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