Carlos
Eduardo Araújo: O hoje vergonhoso senado brasileiro
Antes
de voltarmos o olhar ao Senado brasileiro, é necessário empreender um recuo
histórico para resgatar as origens remotas dessa instituição no seio da Roma
Antiga. O Senado romano constituiu-se como uma das mais longevas e influentes
estruturas políticas da civilização ocidental, atravessando com notável
resiliência as distintas fases da história romana — da monarquia (século VIII
a.C.) à derrocada do Império do Ocidente (século V d.C.). Sua estrutura e
atribuições transformaram-se ao longo dos séculos, ajustando-se às novas
conjunturas políticas, mas sem jamais perder sua condição simbólica de
autoridade, tradição e continuidade institucional.
A
influência do Senado romano ultrapassou a Antiguidade, inspirando a
configuração de instituições modernas, como os senados francês, italiano e
norte-americano. Ainda que com funções adaptadas às respectivas realidades,
todas evocam esse modelo arcaico que conjugava permanência, hierarquia e
o ethos aristocrático da República romana.
O
Senado brasileiro, fundado à sombra desse legado clássico, também conheceu
momentos de prestígio e reverência pública. Por sua configuração constitucional
e simbólica, foi concebido como uma câmara de reflexão e ponderação, destinada
a acolher os representantes mais experientes e ilustrados da Federação. Sua
razão de ser residia na moderação dos impulsos da Câmara dos Deputados,
funcionando como instância de equilíbrio, com vistas à estabilidade
institucional do país.
Nos
tempos imperiais, embora restrito a uma elite de grandes proprietários e
letrados, o Senado reunia figuras de sólida formação intelectual, conhecedoras
dos clássicos, do direito e da filosofia política. Mesmo quando associadas a
projetos conservadores ou autoritários, suas vozes ressoavam com retórica
refinada e respeito às formas do Estado.
No
alvorecer do século XX, em 1899, Machado de Assis publicou aquele que seria seu
vigésimo livro: Páginas recolhidas, uma miscelânea de textos de
gêneros diversos — ensaios, contos, discursos, crônicas, homenagens, peças —
compondo um retrato íntimo e, ao mesmo tempo, público de sua pena madura. Entre
essas peças, destaca-se uma joia de raro valor literário e político: o ensaio
intitulado “O Velho Senado”.
Esse
texto ocupa lugar singular não apenas na obra machadiana, mas também na memória
política do Brasil. Trata-se de uma evocação melancólica, de tom elegíaco, dos
tempos em que o jovem Machado de Assis atuava como jornalista no Diário
do Rio de Janeiro, na década de 1860 — período de transição em que o
Império buscava consolidar sua unidade, ao passo que fermentavam as tensões que
o conduziriam ao ocaso.
“O
Velho Senado” não é apenas uma crônica nostálgica: é um exercício de memória
política e uma crítica velada à degeneração das instituições. Ao celebrar
figuras senhoriais e cultas do Parlamento, Machado de Assis insinua, por
contraste, a decadência moral e intelectual que já se insinuava na cena
política brasileira. A elegância da forma dissimula, mas não encobre, o
desencanto do autor.
Essa
crítica machadiana, sutil, mas contundente, ecoa com ainda mais força em nossos
dias. O Senado brasileiro, outrora símbolo de autoridade ponderada e expressão
de maturidade republicana, parece ter cedido à banalização do debate, à erosão
ética e à perda do sentido público. De espaço de representação qualificada,
tornou-se, em muitos momentos, arena de interesses particulares, corporativos
ou francamente espúrios.
Ao
recordarmos o Senado romano e o “Velho Senado” machadiano, não o fazemos por
mero saudosismo, mas como contraponto à degradação contemporânea. Entre a
reverência de outrora e o descrédito atual, há um longo percurso de
transfigurações institucionais e éticas que merecem ser examinadas com
seriedade e senso crítico — sobretudo por aqueles que ainda acreditam no ideal
republicano.
Longe
de um relato protocolar, o texto de Machado de Assis é uma composição
memorialística, em que tempo e memória modulam os contornos de figuras solenes,
muitas já provectas, que exerciam a função de senadores — ou, como ele preferia
designá-los, intérpretes da “unidade nacional”.
No
ensaio, colhem-se trechos de grande densidade literária e reflexiva: “A
propósito de algumas litografias de Sisson, tive há dias uma visão do Senado de
1860. Visões valem o mesmo que a retina em que se operam. Um político, tornando
a ver aquele corpo, acharia nele a mesma alma dos seus correligionários
extintos, e um historiador colheria elementos para a História. Um simples
curioso não descobre mais que o pitoresco do tempo e a expressão das linhas com
aquele tom geral que dão as cousas mortas e enterradas”.
“Para
avaliar bem a minha impressão diante daqueles homens que eu via ali juntos,
todos os dias, é preciso não esquecer que não poucos eram os contemporâneos da
Maioridade, alguns da Regência, do Primeiro Reinado e da Constituinte. Tinham
feito ou visto fazer a história dos tempos iniciais do regime, e eu era um
adolescente espantado e curioso. Achava-lhes uma feição particular, metade
militante, metade triunfante, um pouco de homens, outro pouco de instituição”.
Este
excerto é expressão magistral do olhar retrospectivo, histórico e estético de
Machado de Assis sobre as instituições do Brasil imperial. A frase inicial —
“Visões valem o mesmo que a retina em que se operam” — estabelece o princípio
fundamental da subjetividade como filtro da memória histórica. O Senado que se
lhe revela por meio das litografias de Sisson é menos um corpo institucional
vivo que uma aparição espectral, fragmento de uma era em dissolução.
Machado
de Assis vê naqueles senadores uma singular ambivalência: “metade militante,
metade triunfante, um pouco de homens, outro pouco de instituição.” Com isso,
sugere que tais personagens, moldados por décadas de protagonismo político,
tornaram-se parte da própria engrenagem simbólica do Estado. Mais do que
indivíduos, encarnavam uma ideia de poder sustentada por certa solenidade
institucional — uma liturgia do exercício público que, mesmo revestida de
conservadorismo ou autoritarismo, impunha algum respeito.
O texto
de Machado de Assis não é apenas uma evocação nostálgica; é também uma crítica
sutil, marcada pelo ceticismo, à teatralidade do poder. A expressão “o tom
geral que dão as cousas mortas e enterradas” carrega tanto a melancolia quanto
o estranhamento — como se aquele Senado fosse simultaneamente familiar e
distante, digno e já anacrônico.
O que
Machado de Assis oferece, assim, é uma meditação sobre o tempo e o desgaste das
instituições, antecipando, em chave ensaística, o olhar que desenvolveria nos
romances: aquele que desnuda as aparências e questiona as ilusões do poder.
A distância
entre aquele Senado — elitista, mas dotado de certa gravidade e forma — e o que
hoje se apresenta à sociedade brasileira é abissal. Se no Império os senadores,
embora pertencentes a uma oligarquia letrada, encarnavam a função pública com
certo decoro e erudição, hoje, salvo raras exceções, assistimos à degradação da
figura senatorial.
A
representação política, que outrora requeria domínio da retórica e senso de
responsabilidade institucional, transformou-se, em muitos casos, em mero
espetáculo. O tribuno, que falava em nome da República, cedeu lugar ao
performer do escândalo — frequentemente histriônico, deseducado, agressivo e
sem compostura. A grosseria passou a ser confundida com autenticidade; a
ignorância, com sinceridade; a truculência, com bravura.
A
política converteu-se em palco de vaidades e ressentimentos. A figura do
senador — que antes simbolizava estabilidade, ponderação e reflexão — foi
reduzida à de um personagem de redes sociais, voltado não à República, mas à
autopromoção diante de seus seguidores. Já não se trata de representar o país,
mas de alimentar a lógica contínua da polarização.
Se o
Senado do Império era, ao menos no imaginário machadiano, “um pouco de homens,
outro pouco de instituição”, o Senado contemporâneo parece ter se tornado, em
larga medida, nem uma coisa, nem outra — mas uma caricatura de si mesmo, ora
grotesca, ora inócua.
Machado
de Assis, com sua pena fina e melancólica, talvez não se espantasse com tal
destino. Afinal, já soubera ver, no coração da pompa imperial, o gérmen da
obsolescência. Seu “Velho Senado” é, pois, mais do que um retrato do passado: é
um espelho do presente — e um aviso silencioso sobre o destino das instituições
que esquecem sua função histórica e se entregam à farsa.
Machado
de Assis, que via nos senadores de 1860 “um pouco de homens, outro pouco de
instituição”, talvez — mesmo com todo o seu ceticismo quanto à natureza humana
— não deixasse de se escandalizar diante das figuras públicas de hoje, nas
quais transborda a personalidade e rareia por completo qualquer vestígio de
sentido institucional. O senso de Estado, que outrora conferia dignidade e
gravidade à vida pública, cedeu lugar ao ressentimento, à revanche partidária e
a uma autopromoção histriônica, ruidosa e grotesca, mais afeita ao espetáculo
do que à responsabilidade republicana.
O
grotesco que ecoa nas sessões do Senado é sintoma de uma política que perdeu o
senso de medida. A hybris — esse descomedimento trágico que a
cultura grega tão bem conhecia — manifesta-se agora em berros, insultos,
performances agressivas, roupas caricatas, linguajar vulgar e, sobretudo, no
desprezo escancarado pelas normas do debate civilizado. A divergência já não
organiza o conflito político; em seu lugar, imperam a deselegância como método
e o ridículo como estratégia de visibilidade.
Se os
senadores do Império, mesmo com as limitações de seu tempo e classe, compunham
a história, os de hoje frequentemente encenam uma paródia dela, destituída de
qualquer consciência do papel institucional que deveriam representar.
Machado
de Assis jamais foi panegirista. Seu olhar sobre o Império é atravessado pela
ironia, pela suspeita, por um desencanto maduro. Mas o que nos separa dele é
que, em sua época, a política ainda se movia dentro de uma ideia de forma, de
civilidade, de representação nacional. O Senado a que se referia era palco da
história — não um reality show de humores descontrolados.
Ao
evocar as figuras do passado, Machado de Assis parece perguntar: o que resta da
dignidade pública quando os homens se confundem com as instituições? Hoje, a
pergunta se inverte: o que resta da instituição quando só restam homens vazios
de grandeza e cheios de si?
Entre
as “cousas mortas e enterradas” que Machado de Assis contempla nas litografias
do Senado imperial, ainda se entreveem vestígios de compostura, rito e respeito
à tradição. Hoje, assistimos à substituição da gravidade pelo deboche, do
argumento pelo ataque pessoal, da elegância pelo espetáculo vulgar.
Se os
senadores do passado pareciam estátuas de bronze, imóveis na memória imperial,
os de hoje, muitas vezes, se assemelham a fantoches movidos por algoritmos,
paixões momentâneas, interesses escusos e sem substância nem horizonte de
Estado.
E se é
verdade, como disse Machado de Assis, que “as visões valem o mesmo que a retina
em que se operam”, talvez nossa retina esteja obscurecida por um Brasil cindido
e adoecido — em que até o Senado, outrora símbolo de ponderação, converte-se em
palco de uma farsa que roça a tragédia.
Mesmo
sob a República, em momentos cruciais, o Senado ainda acolheu juristas
eminentes, tribunos notáveis e estadistas que enfrentaram os dilemas nacionais
com gravidade e competência. Contudo, nas últimas décadas — e mais intensamente
nos anos recentes — essa imagem tem se corroído até tornar-se caricatural.
O
Senado brasileiro abriga hoje, em proporções crescentes, figuras oriundas da
extrema direita, políticos de retórica virulenta, comportamento
anti-institucional e discurso obscurantista. Muitos são personagens grotescos,
despreparados, que desprezam a história, o saber, a ciência e o debate
racional. Não compreendem o espírito da República e, ao invés de elevar o
debate público, arrastam-no para a esfera da grosseria, da desinformação e do
populismo de espetáculo.
Essa
deterioração não se limita a nomes específicos: reflete uma crise estrutural.
Vivemos a erosão da cultura política, a banalização do voto, o domínio de
máquinas de manipulação digital, o desmonte da educação pública e o
esvaziamento do ideal de serviço como missão cívica e ética. O Senado tornou-se
palco de farsas, onde se confundem autoridade com autoritarismo, liberdade com
libertinagem retórica e representação popular com populismo vulgar.
É
doloroso constatar que um dos pilares do sistema republicano se transformou, em
larga medida, em reduto de servilismo, ressentimento e desinformação. Quando a
casa da razão se torna antessala da irracionalidade militante, a própria
República adoece — e gravemente. O declínio do Senado reflete o empobrecimento
do debate público e a falência de um projeto nacional assentado na dignidade
institucional e no primado do pensamento.
Um
episódio recente sintetiza esse processo: a convocação da influencer Virginia
Fonseca para depor na Comissão Parlamentar de Inquérito dos jogos de aposta
eletrônicos. Com mais de 52 milhões de seguidores — muitos deles oriundos das
camadas mais vulneráveis —, sua figura pública desempenha papel deletério ao
estimular, direta ou indiretamente, o consumo de plataformas que corroem os já
escassos recursos da população periférica. Sob o verniz do entretenimento,
perpetua-se um processo de exploração econômica e simbólica que adoece o tecido
social.
A
maneira como foi recebida no Senado evidenciou um rebaixamento institucional
alarmante. Longe de qualquer espírito crítico, diversos senadores
comportaram-se como fãs deslumbrados, disputando selfies com quem simboliza a
mercantilização das emoções e a despolitização das massas. A presidente da CPI
adotou um tom de tietagem impróprio à gravidade da função. Naquele instante, o
Senado deixou de ser fórum de fiscalização e se converteu em vitrine de
vaidades e frivolidade.
Esse
tipo de conivência com o entretenimento vulgar e com os ídolos digitais — cuja
lógica é obscurecer o debate e ampliar a alienação — não é um caso isolado. É
sintoma de um empobrecimento mais profundo, no qual se diluem os critérios de
decoro, competência e responsabilidade. Essa personagem, que deveria ter sido
interpelada com seriedade e rigor, foi recebida com deferência indevida,
sorrisos cúmplices.
Todavia,
ao receber a senadora Marina Silva, uma das mais respeitadas figuras da
política nacional, o comportamento foi completamente diferente. Ela foi
ofendida de maneira vil por parlamentares que se valeram de linguagem chula,
retórica misógina e agressividade performática como métodos sistemáticos de
atuação. O ataque contra Marina Silva não é apenas pessoal: é um ataque ao
decoro, à inteligência política e ao legado ético de uma mulher que há décadas
contribui para o debate público com profundidade e comprometimento.
Na
audiência pública, da qual era convidada, um episódio de profunda gravidade
simbólica e institucional impôs-se com desconcertante clareza. No seio da
Comissão de Infraestrutura, em meio a debates acalorados — como frequentemente
ocorre quando o tema do meio ambiente chega ao Parlamento, onde os interesses
do agronegócio e da mineração contam com aguerridos defensores —, o presidente
da comissão, senador da República, dirigiu-se à senadora Marina Silva, atual
Ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, com a injuriosa e carregada de
simbolismo recomendação de que ela deveria “se colocar em seu lugar”.
A
frase, entre outras manifestações de descortesia e flagrante desrespeito,
afronta diretamente a liturgia do cargo que o parlamentar ocupa. Mais do que um
ato de grosseria, trata-se da repetição de um gesto ancestral de silenciamento
— uma prática que, longe de ser inofensiva, traduz a permanência de estruturas
históricas de dominação, hierarquização e exclusão, que ainda regem os
subterrâneos do poder no Brasil.
A fala
não se deu no vácuo. Foi proferida em um espaço institucional de relevância,
diante de temas sensíveis como a criação de unidades de conservação na Margem
Equatorial brasileira e a exploração de petróleo na foz do Amazonas, questões
que desafiam diretamente o modelo extrativista e a lógica de crescimento
ilimitado que muitos, no Parlamento, ainda tomam como dogma. Marina Silva, voz
dissonante nesse cenário, expressava — com a serenidade e o rigor técnico que
lhe são característicos — a necessidade de prudência, de escuta da ciência e de
respeito aos compromissos socioambientais do país.
Diante
disso, o ataque não foi gratuito: foi reação política e simbólica ao incômodo
que representa a presença de uma mulher negra, de origem popular, defensora
intransigente da floresta e dos povos que nela vivem, em um espaço
tradicionalmente ocupado por oligarquias brancas, masculinas e
patrimonialistas.
“Colocar-se
em seu lugar”, nesse contexto, não é apenas uma frase infeliz. É o eco de
séculos de silenciamento, de confinamento social, de imposição de limites ao
protagonismo de sujeitos historicamente marginalizados. O incômodo que Marina
provoca — e que se expressou com virulência naquela audiência — decorre
precisamente de sua recusa a aceitar os “lugares” que lhe foram reservados pela
ordem tradicional: a invisibilidade, a submissão, a obediência.
O
episódio, portanto, não é isolado, nem deve ser banalizado. Ele revela o
desconforto das elites políticas com a democratização do debate público e com a
presença de vozes que rompem com os pactos tácitos da exclusão e da
desigualdade. Mais do que um ataque pessoal, trata-se de uma tentativa de
reafirmar a velha ordem: aquela em que o poder fala grosso, impõe-se pela
força, e dita quem pode ou não falar, existir, decidir.
É
imperativo que esse gesto seja denunciado e confrontado. Que se compreenda sua
densidade simbólica. E que se reforce o compromisso com uma política que
reconheça a pluralidade, a escuta e o respeito como fundamentos inegociáveis da
vida democrática.
Mas que
lugar seria esse?
A
pergunta, embora possa parecer retórica, é essencialmente política, ética e
histórica. Quando uma autoridade parlamentar – e não qualquer uma, mas o
presidente de uma comissão estratégica do Senado – utiliza tal expressão, não
está apenas sendo grosseiro ou desrespeitoso no plano pessoal. Está reiterando
uma lógica patrimonialista e patriarcal, fundada no silenciamento de vozes
dissidentes, no controle simbólico dos corpos políticos e na perpetuação de uma
ordem social excludente.
A
audiência tinha como pauta a discussão sobre a criação de unidades de
conservação marinha na Margem Equatorial brasileira, especialmente na costa do
Amapá, tema que toca diretamente o debate sobre licenciamento ambiental,
soberania energética e preservação socioambiental.
Marina
Silva, com seu histórico intransigente de defesa da natureza e dos povos da
floresta, foi chamada a prestar esclarecimentos e apresentar argumentos
técnicos. Fê-lo com a sobriedade e a coerência que lhe são características,
afirmando que a proteção ambiental não inviabiliza a exploração de petróleo,
desde que esta se submeta ao devido licenciamento, conforme as leis vigentes e
os compromissos climáticos assumidos pelo Brasil.
A
reação de parte dos parlamentares, no entanto, deixou transparecer mais do que
divergência de opinião. Revelou ressentimento diante da autoridade moral e
intelectual de uma mulher negra, ex-seringueira, oriunda do Acre, que ascendeu
sem renegar suas raízes e que insiste em manter a coerência em meio a tantas
negociações espúrias da cena política.
“Colocar-se
em seu lugar” é uma fórmula cruelmente familiar no repertório das exclusões
brasileiras. É a linguagem da disciplina autoritária, da ordem hierárquica que
não tolera a alteridade, do incômodo diante da ousadia de quem ocupa espaços
que historicamente foram interditados. É o gesto simbólico de quem, sentindo-se
ameaçado pela presença do outro, tenta recolocá-lo na subalternidade.
Marina
Silva sempre recusou os lugares a ela previamente designados. Se incomoda, é
precisamente porque desafia os estereótipos. Porque sua presença é, em si, um
deslocamento da norma, um gesto político de reconfiguração do espaço público. E
é isso que parte da elite política ainda não suporta: que sujeitos
historicamente marginalizados tomem a palavra com autoridade, que se recusem a
baixar os olhos, que não peçam licença para existir.
A
reação da senadora à fala ofensiva foi exemplar. Requereu, com serenidade e
firmeza, um pedido de desculpas. Diante da recusa, levantou-se e deixou a
audiência. Com esse gesto, reafirmou seu lugar – não aquele que lhe quiseram
impor, mas aquele que construiu com dignidade: o lugar da altivez republicana,
da ética da responsabilidade, do compromisso com o bem comum e com os mais
vulneráveis.
A
comissão discutia também, de maneira indireta, os impactos do Projeto de Lei nº
2.159/2021, que busca reformular as regras do licenciamento ambiental no
Brasil, suscitando preocupações legítimas quanto à fragilização dos controles
ambientais. Marina Silva, coerente com sua trajetória, tem se manifestado
contrária à tramitação açodada do projeto, pleiteando mais tempo para o debate
público. E foi justamente esse posicionamento, aliado à sua autoridade moral e
técnica sobre o assunto, que provocou reações de tamanha violência simbólica.
Diante
da gravidade do episódio, o mínimo que se espera é um pedido de desculpas
público e inequívoco, além de uma reflexão institucional profunda sobre os
limites do comportamento parlamentar, não apenas em relação às normas
regimentais, mas aos valores que sustentam uma democracia plural, inclusiva e
respeitosa da diversidade. O Senado da República não pode tolerar que seus
espaços sejam usados para reproduzir lógicas de opressão. Deve ser, antes de
tudo, um lugar de escuta, de debate democrático e de reconhecimento da
dignidade de todas as vozes que o compõem.
O
verdadeiro “lugar” de Marina Silva é aquele em que ela mesma se colocou — e com
o qual a história brasileira já se reconciliou: o lugar da palavra lúcida, da
coragem política e da memória viva de que o poder não é propriedade de castas,
mas construção coletiva e democrática.
Nesses
discursos e atitudes, observa-se o triunfo da ignorância sobre a razão, da
grosseria sobre o debate, do populismo de redes sobre o republicanismo
institucional. Não é mais possível ignorar a crise da representatividade
política em sua forma mais dramática: aquela em que os representantes da
soberania popular se tornam agentes da sua corrosão.
O que
se assiste, portanto, é uma situação de absoluto desalento. Uma frustração
legítima, profunda, da confiança depositada pelo povo em seus legisladores. O
Senado, que deveria ser o santuário da maturidade política, converteu-se em
palco de obscurantismo, de vulgarização da linguagem, de desprezo à cultura e
de escárnio à Constituição que juraram defender.
Diante
disso, é necessário exprimir, com veemência e com argumentos, uma revolta não
apenas moral, mas também política. Trata-se de um repúdio consciente e fundado
contra tudo o que essa degradação representa: a destruição simbólica da
República, a erosão das instituições, a perpetuação da ignorância como valor e
a transformação da política em espetáculo de horrores.
O
Senado, hoje, não é apenas um espelho da crise nacional — é, em muitos
aspectos, seu motor. E enquanto essa casa não recuperar a dignidade perdida,
será impossível falar em reconstrução democrática verdadeira.
Quando
a voz serena da lucidez é soterrada pelo ruído ensurdecedor da grosseria, da
incivilidade e do ressentimento, a política perde por completo sua compostura —
e o que sobra é a degradação. É nesse espelho turvo — o do Senado contemporâneo
— que o país, lamentavelmente, se contempla. Ou, quem sabe, prefira desviar o
olhar e fingir que não se reconhece.
Fonte:
A Terra é Redonda

Nenhum comentário:
Postar um comentário