'Há
muita beleza, elegância e sensualidade na velhice feminina'
"É
um livro que faz analogias com todos os tipos de terror: o terror corporal, o
terror sobrenatural", diz a escritora costarriquenha Larissa Rú ao se
referir ao seu volume de contos Monstruos bajo la lluvia (Monstros sob a chuva,
em tradução livre).
E é
totalmente verdade. Em todos, há uma mulher; e, em todos, ela vivencia o terror
— às vezes mais realista, às vezes mais sangrento, às vezes fantasmagórico ou
grotesco — para falar de infidelidade, crueldade, rivalidade, desamor, aborto,
desejo, abuso e perseguições.
Rú é
historiadora da arte e se dedica ao gênero de ficção de terror e fantástica.
Monstruos bajo la lluvia e sua novela Cómo sobrevivir a una tormenta extranjera
(Como sobreviver a uma tempestade estrangeira) receberam o Prêmio Nacional
Aquileo J. Echeverría, o maior reconhecimento literário da Costa Rica.
Agora,
ela acaba de tirar do forno seu segundo romance, Canibalia, em que a
monstruosidade do canibalismo é exercida no próprio corpo.
Aqui,
alguns fragmentos para sentir o tom de suas histórias.
Do
conto Cabeza verde (Cabeça verde): "Continuo balançando o facão, com o
qual vovô corta o mato para plantar o milho, mas aos poucos, seu peso se
agiganta. E minhas pálpebras voltam a pesar mais do que o metal entre minhas
mãos."
Do
conto Cuencas (los ojos de Saturno) - (Cavidades, os olhos de Saturno):
"Senti de novo, do outro lado do meu pescoço. Desta vez, não contive um
gemido de horror. Aproximou o rosto do meu, minha pele estava no limite da
dele, no limite do osso exposto."
LEIA A
ENTREVISTA:
• Quando começou sua paixão pelo terror?
Larissa
Rú - Comecei a ler fantasia aos 13 anos com os livros de Crepúsculo e Jogos
Vorazes. Todos na minha escola estávamos lendo autoras anglo-saxãs, mulheres
brancas falando sobre seus problemas.
Eu
adorava, mas às vezes pensava: ai, queria algo que tivesse mais a ver com as
minhas preocupações, com o que eu vivo no dia a dia — por que não escrevo eu
mesma uma história?
Foi
fácil fazer terror com as minhas vivências, com meu entorno latino-americano,
tudo era natural para mim. Não vou dizer que é meu nicho, mas eu amo.
O
curioso é que, quando publiquei Monstruos bajo la lluvia, me disseram que eu
fazia parte de um boom latino-americano de escritoras de terror.
Fui
pesquisar e encontrei Mariana Enríquez, Mónica Ojeda, que admiro muito, e
percebi que é um movimento coletivo.
• Por trás do aterrador e do assustador,
quais são os temas que pulsam de sua obras?
Rú -
Eles vêm da insegurança na América Latina. Existe tanta raiva, tanto medo que
foram historicamente ignorados.
Recolher
tudo isso acabou levando a uma explosão: saio na rua apavorada, mas isso é
normal, porque você é mulher; estou com medo, bebi um pouco demais e meu
namorado está agindo de forma estranha — mas isso é normal, porque é seu
namorado e você bebeu demais.
Sinto
que é um despertar, um momento de dizer "esperem, isso não é normal".
• Como você define a monstruosidade?
Rú -
Gosto desde como ela foi vista até como eu posso contá-la, de acordo com as
diferentes mitologias universais.
O
grotesco e o monstruoso são qualidades permitidas, desde que sejam viris; para
uma mulher, isso é quase inconcebível — um monstro feminino tem certos
parâmetros para ser considerado aceitável.
Quando
há monstros propriamente femininos, eles costumam se associar à velhice e ao
frenesi sexual. Um exemplo é a vagina dentada na Mesoamérica, que se repete em
diversas mitologias americanas.
Na
cultura mixteca, por exemplo, existe a história dos gêmeos guerreiros que
precisam matar um monstro que os ameaça, descrito como uma velha que possui uma
vagina com dentes; a forma de destruí-la é com um pênis de pedra.
Em
várias versões do mito, arrancam seus dentes, a violentam e a matam.
A
sexualidade é bem vista quando é uma mulher jovem monstruosa; penso nos
videogames que mostram garotas sedentas por sangue, mas sexy. Mas quando é uma
velha, não: "matem-na!"
• É possível ser velha e sexy?
Rú -
Depende para quem você pergunta, porque os padrões sociais dizem que não, que a
velhice tem que ser recatada, o epítome da sabedoria — e eu acho que há muita
beleza, elegância e sensualidade na velhice feminina.
Na
masculinidade, temos os George Clooney, os "Silver Foxes" (homems
grisalhos), isso não lhes é tirado, mas para nós, sim.
• Você diria que é importante desenvolver
certa monstruosidade?
Rú -
Para mim, a pergunta é: onde estão os limites que nos permitem ser monstruosas?
E o que faz os homens monstruosos?
No
cinema contemporâneo, nas fábulas, temos contos de lição moral, histórias da
Bela e a Fera; penso em La novia del rey Lindorm (A noiva do rei Lindorm), onde
ele se transforma em uma serpente.
Temos
que aceitar a monstruosidade dos homens, mas em que mundo um homem aceita a
monstruosidade de uma mulher?
Uma
mulher com qualidades grotescas nunca é aceitável, e investigar o motivo dessas
divisões me parece fascinante.
É
interessante ver como encontramos certa liberdade de expressão ao estabelecer
uma relação mais cúmplice com os monstros, explorando os limites e
confraternizando com a noção do monstruoso, além da dimensão sexual.
A gente
é muitas coisas, camadas sobre camadas, um ser humano.
É um
tema importante no feminismo, mas estamos diminuindo tudo o que somos, vendo
com lupa, quando na verdade a imagem é muito maior.
• O terror corporal dos seus relatos
lembra o filme A Substância...
Rú - O
corpo é como um primeiro laboratório, tem tanta dor, tanta potência. É
interessante experimentar com uma mulher consciente do próprio corpo, que o
maquila, o exercita, o corta, como no meu conto Vaidades.
Adorei
o filme, senti uma conexão forte porque ele fala sobre a velhice. Brinca com o
grotesco, os corpos se abrem, mas uma das cenas mais nojentas é quando o
personagem de Dennis Quaid está comendo camarões.
Achei
brilhante, porque tem a trama densa de Demi Moore e Margaret Qualley, mas o que
nos causa repulsa é um homem, o chefe despedindo ela enquanto está comendo.
Essa
cena deixa claro contra quem devemos antagonizar; não são as mulheres que são
um espelho uma da outra, é a sociedade que as coloca para competir.
Tristemente,
já vi muita gente dizendo que, ao fazer 30 anos, seu valor social despenca.
Então uma ruga, nesse contexto, pode ser aterrorizante.
Por
isso acho brilhante: quem é o inimigo? Quando começamos a nos tornar peões
desse jogo de opressão? É o jogo de comer ou ser comido.
• Esse é o tema que você aborda na sua
recente novela Canibalia, onde o terror está na onicofagia (o hábito de roer
unhas)...
Rú - É
sobre uma garota que começa a desenvolver tendências canibais. Queria explorar
o tema da mulher selvagem, maligna, que enlouquece.
Ela é
uma pianista que não encontra trabalho nas artes e tem que trabalhar em um call
center; uma experiência própria, claro, que também é coletiva na América Latina
para quem estudou artes.
Sente-se
esmagada pelo peso de uma corporação, sem escapatória no trabalho, o diploma
não serve para nada.
Começa
a ficar frustrada, também por um evento traumático, e canaliza isso em seus
hábitos de consumo; então começa a praticar onicofagia, a se comer, e deseja
ver os outros se comerem também.
Está
presa na máquina capitalista: matar ou ser morto, comer alguém para sobreviver.
Usa seu corpo como sua única propriedade.
• Todos os relatos são em primeira pessoa.
Como é para você se colocar nessas situações?
Rú - Me
liberta muito. Eu estou atirando, estou na linha de frente do jogo. É
libertador usar minhas próprias experiências, amplificá-las, colocar elementos
sobrenaturais.
Em
outros contos, foi como pedir perdão a mim mesma por ter sido tão dura; talvez
manifestar coisas vergonhosas.
Com
Canibalia foi uma experiência diferente. Quando estava escrevendo, passava por
uma situação médica, tinha que fazer um tipo de quimioterapia e sentia que
precisava derramar minha saúde nesse livro.
Posso
dizer que derramei lágrimas, suor e sangue. Escrevi sobre pedofilia e o
assassinato de uma menina, o que me cobrou um preço alto. Com esse livro, tive
conflitos.
Já com
Monstruos bajo la lluvia, há uma relação de carinho, por me permitir me
expressar e chegar à paz com minha saúde mental.
• O que é o mais monstruoso destes tempos?
Rú - Eu
diria que é a falta de empatia, os conflitos regionais.
Me
desespera abrir os noticiários e ver o que está acontecendo na Palestina e
perceber como essas coisas são reduzidas a números, a decisões frias, a
dinheiro: quanto se pode capitalizar com alguns corpos, com algumas mortes?
Para as grandes potências, é isso que importa.
É um
monstro de dimensões enormes, que ultimamente tem me afetado muito. Ver essas
coisas nas redes sociais me apavora.
• E como se liquida esse monstro?
Rú -
Não tenho a resposta. Neste momento, luto com o quanto realmente um pode fazer,
com o que se pode fazer, o que se pode dizer.
Tudo
pode ser dito, mas é um monstro muito abstrato para mim, nunca vi nada tão cru,
tão violento.
Estamos
delineando esse monstro, conhecendo-o, porque ele sempre esteve aí, mas nunca
tinha estado tão visível como agora, não é?
Fonte:
BBC News Mundo

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