190
anos da Cabanada: a luta de negros e indígenas por terra e liberdade
Há 190
anos, no fim de maio de 1835, as tropas rebeldes dos cabanos se rendiam ao
governo regencial, encerrando a Cabanada.
A
guerra dos cabanos foi inicialmente um movimento de caráter restaurador que se
desenvolveu nas províncias de Pernambuco e Alagoas durante o Período Regencial.
Motivada
pela insatisfação com as mudanças políticas e com a crise social instauradas
após a abdicação de Dom Pedro I, a Cabanada se tornaria um grande movimento
popular, mobilizando milhares de camponeses, negros e indígenas na luta contra
a opressão das elites.
Sob a
liderança de Vicente de Paula, os cabanos organizaram ataques contra os
engenhos e fazendas, visando a libertação dos escravizados.
Os
rebeldes também exortaram o povo a se unir na luta pelo direito à terra e
conseguiram controlar parte do território pernambucano, resistindo por três
anos às ofensivas das tropas regenciais.
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O Período Regencial
A
Cabanada foi um dos vários conflitos que eclodiram no Brasil ao longo do
Período Regencial — o interlúdio entre o Primeiro e o Segundo Reinado, iniciado
após a abdicação de Dom Pedro I, em 7 de abril de 1831.
A
renúncia do imperador fora motivada por uma série de fatores. A tendência
absolutista de Pedro I, evidenciada pelo ataque à Assembleia Constituinte de
1823, havia gerado enorme descontentamento entre os liberais.
A
centralização do poder e a continuidade da crise econômica, agravada pela
Guerra da Cisplatina, desgastaram a popularidade do imperador entre as elites.
E havia, por fim, a crise sucessória do trono português, uma questão em aberto
desde a morte de Dom João VI.
Dom
Pedro II, o herdeiro do trono, tinha apenas 5 anos de idade quando seu pai
renunciou. Assim, entre 1831 e 1840, o Brasil seria governado por regentes. O
vácuo do poder estimulou disputas intensas entre as facções políticas,
agravadas pela fragilidade das instituições e pela falta de coesão entre as
províncias.
Esse
ambiente de forte instabilidade política levou ao surgimento de uma série de
revoltas pelo país, incluindo a Cabanagem no Pará, a Balaiada no Maranhão, a
Sabinada na Bahia e a Revolução Farroupilha no Rio Grande do Sul.
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A crise no Nordeste
A crise
política do Período Regencial ressoou com mais força na Região Nordeste, onde a
tensão social foi potencializada pela crise econômica. As economias locais eram
muito dependentes exportação de açúcar e algodão, mas vinham sofrendo com a
crescente concorrência dos centros produtores do Caribe e dos Estados Unidos.
Em
Pernambuco e Alagoas, províncias que concentravam mais da metade dos engenhos
de açúcar do Brasil, as oligarquias já se ressentiam da perda de poder
econômico. Ao mesmo tempo, o modelo da monocultura agroexportadora, baseada no
latifúndio e no uso do trabalho escravo, gerava a concentração de recursos e
relegava a maior parte da população à miséria.
A
nomeação de autoridades impopulares, impostas pelo governo regencial, e a
cobrança abusiva de impostos também causavam um incômodo generalizado e
agravavam o sentimento de exclusão.
Não
demorou para que parte da oligarquia rural associasse as dificuldades que se
agravavam sob o novo regime à abdicação de Dom Pedro I. A crise econômica,
social e política, na visão de muitos, se devia à falta de uma liderança forte,
revestida de legitimidade.
Essa
interpretação, no entanto, foi adaptada e ganhou força também nas classes
populares. À medida em que crescia a percepção de que o governo regencial era a
representação política dos interesses das elites agrárias, avolumava-se o
clamor popular pela restauração de Pedro I — bem como a mistificação de sua
figura como um salvador, cujo retorno garantiria paz, justiça social e alívio
ao povo.
Difundiu-se
largamente a ideia de que o retorno de Pedro I garantiria a concessão de terra
para os camponeses e de liberdade para os escravizados. Isso fez com que a
restauração do trono se tornasse uma bandeira defendida pelos “cabanos” —
pessoas de origem humilde, mestiços, negros fugidos e libertos e indígenas que
moravam nas cabanas simplórias na Zona da Mata e no Agreste.
Começava
a surgir, assim, uma aliança improvável entre as oligarquias rurais e as
classes populares — unidas, ainda que por motivos divergentes, contra as
reformas do governo regencial.
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A Abrilada e o levante dos proprietários
Uma
primeira tentativa de restaurar o trono de Pedro I ocorreu em abril de 1832,
durante a chamada “Abrilada”. Comerciantes e proprietários de terra de origem
portuguesa do Recife, reunidos em torno da sociedade secreta “Coluna do Trono e
do Altar”, iniciaram um levante contra o governo regencial.
A
insurreição, comandada pelos militares Francisco José Martins e José Gabriel de
Morais Meyer, se estendeu por mais de uma semana, até ser esmagada pelas tropas
regenciais. Os revoltosos, isolados após uma batalha nos arredores do Forte de
São João Batista do Brum, foram forçados ao recuo, exilando-se no interior da
província.
As
tropas rebeldes rapidamente se reorganizaram e empreenderam novas ofensivas. Na
região de Panelas de Miranda, no agreste pernambucano, o capitão-mor Torres
Galindo assumiu o comando da insurreição. Ele seria posteriormente preso e
substituído por Antônio Timóteo de Andrade.
Simultaneamente,
outra rebelião contra a Regência eclodiu na Praia de Barra Grande (atual
Maragogi), na província de Alagoas, sob a liderança de João Batista de Araújo.
O
presidente de Pernambuco, Francisco de Carvalho, providenciou o envio de um
grande contingente de soldados, comandados por José Vaz do Pinho Carapeba, para
esmagar o levante. Antônio Timóteo foi morto em combate e João Batista de
Araújo foi capturado pelos homens do Almirante Tamandaré.
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A Cabanada
A
prisão dos comandantes militares não bastou para debelar o levante. Ao
contrário: a liderança do movimento passou para as forças populares e a
insurreição cresceu exponencialmente, sendo agora tocada pelos cabanos.
O
principal comandante das forças populares era Vicente Ferreira de Paula, filho
de um vigário e de uma negra escravizada. Ele operou uma mudança retórica de
fundamental importância para revigorar o movimento, substituindo o foco na
restauração de Dom Pedro I pela luta contra o sistema escravagista e a opressão
das elites.
A
exortação à luta pela terra e pela liberdade unificou os cabanos,
registrando-se ampla adesão entre os chamados “papa-méis” (escravizados
foragidos que viviam na mata) e os indígenas (sobretudo os povos das aldeias de
Jacuípe, além de grupos Fulniôs e Xucurus).
Os
cabanos realizaram uma série de ataques contra fazendas e engenhos de açúcar,
visando libertar os escravizados. Muitos dos cativos se ofereciam para lutar no
exército revolucionário, que crescia continuamente. No ápice, o movimento
cabano mobilizava cerca de 15 mil combatentes.
Respaldos
pelo apoio popular e utilizando a estratégia de guerrilha, os rebeldes
conseguiram neutralizar as sucessivas campanhas militares do governo regencial,
fazendo com que a insurreição se estendesse por um longo período. Muitos dos
soldados do império, descontentes com o governo regencial, acabavam deserdando
e se juntando às tropas rebeladas.
Os
cabanos asseguraram o controle de uma vasta região do território pernambucano,
que se estendia por quase 300 quilômetros de comprimento e 60 quilômetros de
largura, abrangendo uma série de vilarejos — Panelas, Altinho, Utinga, Porto
Calvo, Cavaco, Japaratuba, Riachão etc.
Nesses
territórios, os rebeldes implementaram experiências de uso comunal da terra,
similares aos sistemas instituídos pelos quilombolas. Da mesma forma, buscaram
criar modelos mais democráticos de gestão coletiva.
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O fim do movimento
A
mudança de enfoque dos cabanos, priorizando a luta contra o sistema
escravagista, e os ataques contra os latifúndios e engenhos acabaram por levar
ao rompimento com os setores da burguesia que apoiavam a insurreição em seu
início.
Essa
cisão se acentuou após a morte de Dom Pedro II, em setembro de 1834. Para os
oligarcas que queriam apenas a restauração do trono, o movimento havia perdido
a razão de existir. Para os cabanos que lutavam contra a escravidão e pelo
direito à terra, a luta prosseguia.
Preocupado
com a expansão do movimento, o governo regencial organizou uma expedição
militar de grande porte para esmagar a Cabanada. Tropas com mais de 6.000
homens varreram o interior da província, destruindo os vilarejos e as lavouras
dos cabanos. A operação resultou na morte de mais de mil rebeldes.
Em
paralelo à repressão militar, o governo instituiu uma estratégia para dividir o
movimento, oferecendo dinheiro, instrumentos agrícolas e insumos para os que
desistissem. A fome e o surgimento de uma grave epidemia de varíola nos
aldeamentos cabanos levaram muitos à deserção.
Por
fim, o bispo João da Purificação Marques Perdigão, atuando em nome do governo,
convocou uma conferência de paz e ofereceu anistia aos revoltosos. A maioria
dos rebeldes concordou com os termos.
Assim,
em 29 de maio de 1835, após três anos de combate um saldo de mais de 15 mil
mortos, o levante foi oficialmente encerrado.
Vicente
de Paula, o líder da revolta, recusou-se a desistir. Ele se refugiou em Riacho
do Mato, onde tentou reconstituir o movimento, formando um exército
revolucionário com 300 combatentes, que prosseguiu com os ataques aos engenhos
e fazendas até 1841. Vicente seria posteriormente enviado para o presídio de
Fernando de Noronha, onde ficou preso por 11 anos.
Fonte:
Por Estevam Silva, em Opera Mundi

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