Bactéria
na boca pode ajudar a prever evolução de um tipo de câncer
Por
décadas, os cuidados com a saúde bucal foram associados principalmente à
prevenção de cáries e doenças gengivais. No entanto, a ciência tem tornado cada
vez mais evidente a importância do microbioma oral – um conjunto de
microrganismos que habitam naturalmente a cavidade bucal.
Estudos
recentes têm demonstrado ligações entre desequilíbrios nesse ecossistema
microbiano e o desenvolvimento de cânceres de cabeça e pescoço, além de
associações cada vez mais sólidas com o câncer colorretal.
Entre
as espécies microbianas que mais têm chamado a atenção da comunidade científica
está a Fusobacterium nucleatum, uma bactéria normalmente encontrada em baixos
níveis na flora bucal de indivíduos saudáveis. Sua proliferação descontrolada,
no entanto, tem sido associada a doenças inflamatórias (como periodontite e
outros problemas da cavidade bucal) e, mais recentemente, ao aumento do risco
de desenvolver tumores malignos em outras partes do corpo.
A
associação da F. nucleatum com tumores despertou, há alguns anos, o interesse
de pesquisadores do Hospital de Amor (antigo Hospital de Câncer de Barretos),
que iniciaram estudos sobre o papel do microrganismo no câncer colorretal.
Mais
recentemente, com apoio da Fapesp e de outras agências de fomento, o grupo
expandiu as investigações para entender sua possível atuação nos tumores de
cabeça e pescoço. Descobriu que, nesses casos, a presença da bactéria está
associada a melhor prognóstico e maior sobrevida. Os resultados foram
publicados no Journal of Oral Microbiology.
Liderado
pelo pesquisador Rui Manuel Reis, diretor científico do Instituto de Ensino e
Pesquisa do Hospital de Amor, o estudo utilizou uma metodologia ultrassensível
(o PCR digital) para detectar a presença da F. nucleatum no tecido tumoral.
Para isso, os pesquisadores analisaram 94 amostras de pacientes com diferentes
tipos de câncer de cabeça e pescoço tratados na instituição.
“Realizamos
a análise intratumoral a partir de material de arquivo parafinado [conservado
em parafina], que foi usado originalmente para diagnóstico desses pacientes”,
explica Reis. “Com as metodologias mais tradicionais, seria difícil identificar
a presença dessa bactéria com a mesma precisão em material degradado, como o de
parafina. No entanto, a técnica de PCR ultrassensível oferece uma alta
confiabilidade e sensibilidade – até mesmo traços mínimos de DNA bacteriano
podem ser detectados”, destaca.
O
diferencial, segundo o pesquisador, foi detectar a bactéria dentro das células
tumorais, um achado surpreendente. “Se analisarmos a saliva de uma pessoa, é
provável que encontremos essa bactéria, já que ela está normalmente presente na
cavidade bucal e compõe o biofilme dental. O que não se esperava, porém, é que
ela estivesse localizada dentro do microambiente tumoral”, ressalta Reis.
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Melhor prognóstico
Ao
longo de aproximadamente cinco anos, os pesquisadores acompanharam os dados
clínicos dos pacientes e constataram que a presença da F. nucleatum nos tumores
estava associada a um prognóstico mais favorável. Ela foi identificada em 59,6%
dos casos, com maior prevalência em tumores de orofaringe (62,1%) do que de
cavidade oral (53,6%).
Pacientes
cujos tumores apresentavam a bactéria tiveram sobrevida média de 60 meses,
enquanto os demais viveram, em média, 36 meses – uma diferença significativa.
“Não esperávamos esse resultado, pois, em outros tipos de câncer, como o
colorretal, a presença da bactéria costuma estar associada a maior
agressividade e menor sobrevida”, comenta Reis.
Apesar
do achado promissor, os pesquisadores ainda não compreendem completamente o
motivo dessa associação positiva entre a presença da F. nucleatum e o melhor
prognóstico nos casos de câncer de cabeça e pescoço. Uma das hipóteses é que a
bactéria atue na regulação de fatores imunológicos, potencializando a resposta
do sistema imune e, assim, tornando o tumor menos agressivo. “Ainda não temos
essa resposta, mas vamos aprofundar as investigações. Esse será o próximo
passo”, diz o pesquisador.
Outra
linha de estudo buscará entender se a presença da F. nucleatum nos tumores pode
influenciar a resposta às terapias, o que abriria caminho para abordagens mais
personalizadas no tratamento desses pacientes. Se confirmada, a bactéria poderá
se tornar um importante biomarcador para o prognóstico do câncer de cabeça e
pescoço.
“Mostramos
que mesmo usando material antigo e em pequenas quantidades conseguimos detectar
essa bactéria. Ou seja, se no futuro ela for validada como biomarcador, já
temos uma técnica eficaz para identificá-la no tecido tumoral”, destaca Reis.
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Uma possível oncobactéria?
Na
avaliação de Reis, a análise do microbioma oral torna-se cada vez mais
essencial na compreensão da oncologia moderna. “Mais do que apresentar um
resultado definitivo, este é um estudo pioneiro, que chama a atenção para a
relevância dessa bactéria no contexto tumoral, e não apenas em doenças bucais”,
afirmou Reis.
Este é
apenas o começo de uma nova linha de investigação. “Essa bactéria está
emergindo como uma importante moduladora no contexto do câncer e pode
consolidar o uso do termo ‘oncobactéria’”, afirma. “Se for comprovado que ela
participa da origem do câncer, antibióticos poderão até ser considerados como
terapia complementar à quimioterapia e à radioterapia.”
Pesquisas
futuras poderão revelar se a presença da F. nucleatum está relacionada a
diferentes respostas ao tratamento, abrindo caminho para estratégias mais
personalizadas. A partir desse conhecimento, será possível identificar com mais
precisão quais terapias são potencialmente mais eficazes para cada tipo de
câncer, com base na presença ou ausência da bactéria.
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A doença no Brasil
O
câncer de cabeça e pescoço engloba uma série de tumores malignos que podem
aparecer na boca, orofaringe, laringe, nariz, seios nasais, nasofaringe, órbita
ocular, pescoço e tireoide. De acordo com o Instituto Nacional de Câncer
(Inca), os principais fatores de risco são tabagismo, etilismo e infecção pelo
vírus HPV, má higiene bucal e a desnutrição.
Dados
do Inca apontam que aproximadamente 80% dos casos diagnosticados no Brasil
entre 2000 e 2017 foram identificados em estágios avançados, o que reduz
significativamente as chances de sucesso no tratamento. Esses números reforçam
a importância de estratégias para o diagnóstico precoce e o desenvolvimento de
novas ferramentas prognósticas, como as apontadas neste estudo.
Fonte:
CNN Brasil

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