Leão
XIV, para além de conservador ou progressista
Dois
dias após a eleição de Robert Prevost, primeiro norte-americano a ocupar o
cargo de pontífice da Igreja Católica Apostólica Romana, uma pesquisa de
opinião realizada pela CNN americana com 35.929 pessoas constatava que, para
62% dos votantes a eleição do pontífice significava uma escolha deliberada da
Igreja em contraposição a agenda política do presidente Donald Trump. Principal
nome da extrema direita global, este destaca-se por agendas anti- imigrantes,
de intolerância à população LGBTQI +, dentre outras.
Tal
percepção foi em grande medida construída já nas primeiras sinalizações do
pontífice em seu discurso de saudação no qual, horas após eleito, do alto da
sacada principal da basílica de São Pedro, no Vaticano, sinalizou uma gestão em
afinidade com a linha pastoral de seu antecessor, papa Francisco, e defendeu
uma igreja que construa “pontes e diálogo”.
Poucos
dias depois, em seu primeiro encontro com o corpo diplomático creditado junto à
Santa Sé, ocorrido em 16/05, Leão XIV voltou a enfatizar uma agenda social
progressista. Relembrando sua experiência enquanto imigrante, pregou o combate
às desigualdades globais e defendeu “condições dignas de trabalho”. Seu
discurso abordou ainda a defesa da paz, do diálogo interreligioso e um apelo ao
desarmamento global3, afirmando:
“Essa
ação combate toda a indiferença e chama continuamente a consciência, como o fez
incansavelmente o meu venerado Predecessor, sempre atento ao grito dos pobres,
dos necessitados e dos marginalizados, bem como aos desafios que marcam o nosso
tempo, desde a salvaguarda da criação até à inteligência artificial.”
O aceno
ao diálogo, no entanto, foi limitado. Nesse mesmo encontro Leão XIV também
posicionou-se em defesa de uma concepção de família baseada na “união entre
homem e mulher” e firmou que “não nascidos tem dignidade inerente”. Declarações
que geraram o primeiro atrito do novo pontífice com as populações LGBTQI + e
com mulheres que advogam o direito ao aborto como política pública.
Posicionamentos que reaqueceram a dúvida: a final, o novo líder da Igreja
Católica será progressista ou conservador?
É ainda
cedo para determinar o perfil de fato e as agendas prioritárias que o novo
pontificado adotará – sempre passíveis de disputas e tensionamentos –, mas se o
nome dos pontífices sinalizam uma linhagem, a adoção do legado leonino nos
oferece algumas pistas relevantes para compreensão de sua postura.
Ao
adotar o nome de Leão XIV o pontífice resgata a referência a Doutrina Social
Católica, criada no final do séc. XIX por Leão XIII como espécie de terceira
via entre capitalismo e comunismo, entendidos como faces distintas de um
problema único: a modernidade.
• Igreja e modernidade
Como
sinalizado anteriormente, o corpo doutrinário conhecido como “Doutrina Social
Católica” foi inaugurado pelo papado reformador de Leão XIII no final do século
XIX. A formulação de tal doutrina é apontada por teólogos, historiadores,
cientistas sociais e da religião como um posicionamento da Igreja
Católica
frente aos debates sobre classes sociais e mundo do trabalho que se
intensificavam há época, especialmente no continente europeu. Mas, sobretudo,
foi uma guinada na relação de oposição que os católicos haviam adotado
ferrenhamente contra os chamados valores modernos.
Como
afirma a socióloga francesa Danièle Hervieu-Léger: “O impacto da modernidade
sobre as religiões caracterizou-se menos pela dissolução da religião e do
sentimento religioso — como previram algumas teses baseadas na sociologia
weberiana — e mais pela imposição, às religiões tradicionais, da perda da
hegemonia na regulamentação dos sentidos da sociedade, sendo a Igreja Católica
a principal afetada.”
Especialmente
após a revolução francesa (1789-1799) e independência americana (1775-1783) a
resposta da Igreja foi de oposição frontal. Da convocação de Gregório VI
(1831-1846) ao combate do que classificava como “pestilentissimus error” (erro
terrível) da liberdade de pensamento, da democracia e dos direitos do homem
(Fülöp-Miller, 1941); à publicação do famoso “Syllabus errorum” (1864)
compêndio de condenação às “heréticas oitenta teses de obras liberais”⁴ por seu
sucessor, Pio IX (1846-1878); culminando na convocação do primeiro Concílio do
Vaticano (1869 a 1870), que ratificou o “poder supremo da ordem monárquica
papal” como “representante de Deus na Terra” e condenou à excomunhão todos que
professassem fé nos valores da modernidade.
Contudo,
os efeitos da resolução a que chegava o pomposo Concílio Vaticano I não saíram
como esperado, reforçando a cisão de pensamento no interior da própria Igreja e
aprofundando o declínio de seu poder político por toda Europa. Tornado ainda
mais isolado Pio IX – último monarca dos estados pontifícios, anexados pelo
reino da Itália em 1870 iniciando a intitulada questão romana.
Reunidos
em conclave, os cardeais católicos buscaram em um antigo núncio apostólico5
junto à Bélgica, uma das primeiras potências industriais no nascedouro do
capitalismo industrial, o novo líder. Sucedido o posto máximo da hierarquia
Católica Romana por um papado reformador, Leão XIII (1878 – 1903) iniciou uma
guinada na história da Igreja Católica cujas influências repercutem na
geopolítica até o presente.
Voltando
os olhos para a Igreja da escolástica, Leão XIII resgatou já no início de seu
pontificado as proposições tomistas – referente pelo qual é conhecido o
movimento teórico reformador iniciado por São Tomás de Aquino, que absorve de
Aristóteles o método racionalista, aproximando-o da teologia e subjugando-o a
ela (fundamento de toda a empreitada da Igreja na escolástica). Por meio da
encíclica Aeterni Patris: sobre a restauração da filosofia cristã a recomendou
como “fundamento espiritual” da Igreja, oficializando as bases da nova relação
Igreja-modernidade.
Assim,
com base no tomismo, Leão XIII defendia que não caberia a Igreja Católica
intervir no regime político dos estados, mas guiá-los em direção aos valores
ético e morais do cristianismo. Sem contrapor a Igreja à forma de governo
secular, consolidava-se as bases de criação da Doutrina Social Católica,
abrindo caminho para o surgimento décadas depois do Concílio Vaticano II, em
direção frontalmente oposta ao Vaticano I.
O
documento que marcou o esforço de terceira via da chamada “sociologia católica”
diante de um mundo polarizado entre esquerda e direita foi a Encíclica Rerum
Novarum (1891), de Leão XIII. Nela, sistematiza-se as contraposições da
Doutrina Social Católica em relação tanto ao modelo de sociedade capitalista
quanto às alternativas socialistas e comunistas. Explicitamente, suas
principais linhas de contraposição foram:
à
exploração da mão de obra humana pelo liberalismo econômico que tende a
considerar o trabalho como um lucro e ignorar as necessidades do ser humano;
[…] à concentração das riquezas nas mãos de um pequeno grupo; […] ao socialismo
e à sua filosofia materialista, assim como à sua doutrina inadmissível:
abolição da propriedade privada, luta de classes, intervenções injustificáveis
na vida das pessoas e das famílias (R.N. 11, 12, 13). (Leão XIII, 1891. s/p).
• Impactos sociais da Doutrina Social
Católica
Os
impactos da Doutrina Social Católica foram profundos e duais. Influenciou a
então emergente formulação teórica dos Direitos Humanos, figurando a Rerum
Novarum católica conhecida no ensino do ordenamento jurídico internacional ao
lado do Manifesto do Partido Comunista (1848) como marcos teóricos dos chamados
direitos humanos de segunda geração, que são aqueles de caráter prestacionais,
ou seja, sob os quais os Estados são instados a intervir de forma proativa.
Foram uma resposta e um posicionamento de outra ordem frente aos ditos direitos
humanos de primeira geração, que tem como marcos jurídico e político a
constituição norte americana e a revolução francesa, respectivamente,
conhecidos como direitos passivos
Por
meio da Doutrina Social, apostou-se no associativismo como chave da sociologia
tomista-leonina como alternativa ao liberalismo econômico e ao coletivismo
marxista. Tal proposta de associativismo baseava-se nas antigas associações
profissionais do medievo, suplantadas pela doutrina liberal. Esse incentivo ao
associativismo profissional tinha por base a defesa de que tanto patrões quanto
empregados poderiam organizar-se, separada ou mutuamente, mas que essa
organização não deveria estar fundada na luta de classes.
Tal
organização deveria ter por base interesses econômicos comuns, tais como o
desenvolvimento de ações sociais que viessem ao encontro das demandas de ambos,
em contraponto a organização de classe propriamente dita, que tinha nos
partidos políticos e posteriormente nos sindicatos classistas sua expressão
máxima. Não atoa é a Igreja Católica que insere no Brasil a articulação da
chamada sociedade civil, como defende a antropóloga Paula Montero.
Ademais,
sua abrangência interpretativa dava margem ao surgimento de grupos com um
perfil conservador renovado, por exemplo, o integralismo católico que surge
nesse período. Baseado na doutrina social, os integralistas articulavam ao
mesmo tempo as doutrinas de Pio IX com Leão XIII propondo que a Igreja deveria
ser o centro político e moral do Estado¹.
Especialmente
no caso Italiano, a Doutrina Social cumpriu papel importante para o
estreitamento dos laços entre a Igreja Católica e o regime de Mussolini. Uma
vez que este propunha uma engrenagem de estado onde as associações
profissionais tinham proeminência, a Igreja via atendida no social-nacionalismo
italiano também as suas proposições sobre o regime de estado adequado contra
“os perigos do individualismo liberal e do coletivismo socialista”. Essa
afinidade seria decisiva para viabilizar em um futuro não muito distante a
resolução da chamada “questão romana”, por meio da assinatura do tratado de
Latrão entre Santa Sé e o regime fascista, com a criação do Estado soberano do
Vaticano.
Já no
contexto francês, a doutrina social cumpriu papel importante de convencimento
dos católicos em adesão ao ordenamento republicano. Como sinaliza Danièle
Hervieu-Léger: “enquanto o clero diocesano aceitava pouco a pouco a vinculação
à República defendida por Leão XIII, as congregações continuavam sendo o pivô
das correntes antirrepublicanas e antidemocráticas². Em 11 de dezembro de 1905,
dois anos após o falecimento de Leão XIII, foi promulgada a lei de separação
entre Igreja e Estado, conhecida como “lei de separação”, que instituiu a
laicidade estatal na França.
Experiências
de terceira via da corte mais progressista também surgiram no bojo do incentivo
ao associativismo católico operado pela doutrina social. O exemplo mais
emblemático é a intitulada Ação Católica (A.C.), no seio da qual intelectuais
católicos como Padre Joseph Cardijn desenvolveram um método próprio para
análise de contexto e formulação de intervenções sociopastorais conhecido como
trilogia pastoral, fundado nas premissas “ver, julgar, agir”, fortemente
incorporada pela Teologia da Libertação e o catolicismo progressista
latino-americano e recentemente resgatado pelo papado de Francisco em sua
encíclica Laudato Si’.
Nesse
sentido, é importante ressaltar que os impactos sociopolíticos decorrentes da
formulação da Doutrina Social Católica são maleáveis a distintas conjunturas
sociopolíticas e às realidades socioculturais das regiões e dos estados
nacionais, ora operando o fortalecimento de tradições progressistas, ora se
vinculando a correntes conservadoras.
• A teoria de estado tomista-leonina
Nesse
primeiro período de formulação da Doutrina Social sua chave analítica, pegando
de empréstimo do velho testamento, baseava-se no direito natural, que ganha
preponderância sob o preceito de lei divina: “A lei natural, eis o fundamento
no qual assenta a doutrina social da Igreja’ declarou o papa Pio XII”³.
Assim,
para a emergente sociologia tomista-leonina o centro do problema social moderno
era antes moral que econômico, uma vez que sob os valores liberais rompiam-se
as hierarquias da ordem natural. Dito de outra forma, para a doutrina leonina o
problema não residia na existência de um regime econômico fundado na
propriedade privada – pois a existência dessa era compreendida por ordem
natural – mas sim em um regime econômico sem valores. E os valores que lhe
faltavam eram aqueles que a cristandade teria a oferecer.
Com
base nesse princípio formulou-se a teoria de estado tomista-leonina, assim
sintetizada pelo historiador austríaco Fülöp-Miller:
Em vez
do conceito marxista de classes, que já no seu enunciado marca a oposição de
combate duma camada social contra a outra, a encíclica papal reestabelecia por
assim dizer a concepção tomista de estado […]. Pressupõe-se que toda atividade
humana, desde a ação mais insignificante à mais sublime, se encaixa nessa
escala numa jerarquia (sic) de funções; […] o sentido da natureza do Estado é
‘a comunidade do superior e do inferior’. O pobre é ‘cidadão como o rico’ e
seria ‘manifesta insânia favorecer uma parte da sociedade e negligenciar a
outra’. É óbvio que também compete ao Estado proteger legalmente o proprietário
contra toda expoliação, prevenir tumultos e violências. Onde, porém, o
descontentamento social provém de abusos reais, o poder político tem o dever de
eliminar oportunamente esses motivos e sustentar os direitos do trabalhador
(Fülöp-Miller, 1941, p. 124)
Assim,
a histórica “abertura à modernidade” católica configurou-se – a par do tomismo
que a animava – menos por uma adesão aos valores modernos que por um
reposicionamento dos termos da disputa sobre os sentidos e os fins últimos
dessa modernidade, por meio do chamado compromisso social.
• Leão XIV, conservador ou progressista?
Grosso
modo, essa postura continua sendo o pano de fundo que orienta o posicionamento
da Doutrina Social Católica até o presente – até hoje é por meio da doutrina
social que os papas se pronunciam sobre os principais problemas sociais do
mundo, passando pela economia, guerras até a crise climática (a Laudato Si’ de
Francisco é um exemplo).
Precisamente
em função da base teórico-ideológica que sustenta a Doutrina Social Católica –
em que pese transformações importantes tenham sido operadas, inclusive
regionalmente pelas conferências episcopais, e que cada papa imprima sob ela
uma lente mais progressista ou conservadora –, essa continua sendo a baliza da
relação que os católicos mantem não apenas com as questões referentes aos
conflitos de classe como também aqueles compreendidos como de ordem moral, a
identidade de gênero, as questões ligadas a reprodução e à concepção de
família, como bem analisam as antropólogas Brenda Carranza e Maria José Rosado.
Não por
acaso, especialmente no que concerne ao tema do aborto, é comum uma afinidade
condenatória tanto entre setores conservadores quanto progressistas no interior
do catolicismo. Não é exagero afirmar que, sob a regência da doutrina social,
opera-se um dos raros consensos no interior de uma Igreja profundamente
fragmentada, precisamente no que concerne a condenação do aborto. É
significativo, portanto, que em um contexto de polarização no interior da
Igreja haja um aceno em direção ao fortalecimento de sua doutrina social.
Exatamente
por isso a definição de progressista ou conservador usada para a política
tradicional não serve para compreender o posicionamento político da Igreja
Católica. Em alguns temas há afinidade com agendas políticas da esquerda em
outros com a direita. Isso ocorre porque os valores que a Igreja disputa são os
valores da modernidade e o papel da Igreja sob ela.
Em
artigo de 1983 intitulado conservador ou progressista: uma questão de
conjuntura o antropólogo Rubem César Fernandes defende a tese de que enquadrar
as posturas de uma organização, grupo ou pessoa enquanto progressista ou
conservador deve fundamentalmente levar em conta sob qual conjuntura essa
classificação está informada. Nenhuma análise séria sobre Igreja Católica pode
abdicar esse postulado.
Por
isso, na contramão da percepção dos norte-americanos sob a eleição do novo
pontífice como contraponto a agenda de Donald Trump e da extrema- direita,
levando em conta os sinais professados pela adoção da linhagem de Leão XIV em
um cenário de polarização entre esquerda e direita, apostaria em pontos de
contato e pontos de fratura. Contato nas agendas de gênero, reprodução e
sexualidade, fratura na agenda social.
Fonte:
Por Breno Botelho, no Le Monde

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