sexta-feira, 30 de maio de 2025


 

Leão XIV, para além de conservador ou progressista

Dois dias após a eleição de Robert Prevost, primeiro norte-americano a ocupar o cargo de pontífice da Igreja Católica Apostólica Romana, uma pesquisa de opinião realizada pela CNN americana com 35.929 pessoas constatava que, para 62% dos votantes a eleição do pontífice significava uma escolha deliberada da Igreja em contraposição a agenda política do presidente Donald Trump. Principal nome da extrema direita global, este destaca-se por agendas anti- imigrantes, de intolerância à população LGBTQI +, dentre outras.

Tal percepção foi em grande medida construída já nas primeiras sinalizações do pontífice em seu discurso de saudação no qual, horas após eleito, do alto da sacada principal da basílica de São Pedro, no Vaticano, sinalizou uma gestão em afinidade com a linha pastoral de seu antecessor, papa Francisco, e defendeu uma igreja que construa “pontes e diálogo”.

Poucos dias depois, em seu primeiro encontro com o corpo diplomático creditado junto à Santa Sé, ocorrido em 16/05, Leão XIV voltou a enfatizar uma agenda social progressista. Relembrando sua experiência enquanto imigrante, pregou o combate às desigualdades globais e defendeu “condições dignas de trabalho”. Seu discurso abordou ainda a defesa da paz, do diálogo interreligioso e um apelo ao desarmamento global3, afirmando:

“Essa ação combate toda a indiferença e chama continuamente a consciência, como o fez incansavelmente o meu venerado Predecessor, sempre atento ao grito dos pobres, dos necessitados e dos marginalizados, bem como aos desafios que marcam o nosso tempo, desde a salvaguarda da criação até à inteligência artificial.”

O aceno ao diálogo, no entanto, foi limitado. Nesse mesmo encontro Leão XIV também posicionou-se em defesa de uma concepção de família baseada na “união entre homem e mulher” e firmou que “não nascidos tem dignidade inerente”. Declarações que geraram o primeiro atrito do novo pontífice com as populações LGBTQI + e com mulheres que advogam o direito ao aborto como política pública. Posicionamentos que reaqueceram a dúvida: a final, o novo líder da Igreja Católica será progressista ou conservador?

É ainda cedo para determinar o perfil de fato e as agendas prioritárias que o novo pontificado adotará – sempre passíveis de disputas e tensionamentos –, mas se o nome dos pontífices sinalizam uma linhagem, a adoção do legado leonino nos oferece algumas pistas relevantes para compreensão de sua postura.

Ao adotar o nome de Leão XIV o pontífice resgata a referência a Doutrina Social Católica, criada no final do séc. XIX por Leão XIII como espécie de terceira via entre capitalismo e comunismo, entendidos como faces distintas de um problema único: a modernidade.

        Igreja e modernidade

Como sinalizado anteriormente, o corpo doutrinário conhecido como “Doutrina Social Católica” foi inaugurado pelo papado reformador de Leão XIII no final do século XIX. A formulação de tal doutrina é apontada por teólogos, historiadores, cientistas sociais e da religião como um posicionamento da Igreja

Católica frente aos debates sobre classes sociais e mundo do trabalho que se intensificavam há época, especialmente no continente europeu. Mas, sobretudo, foi uma guinada na relação de oposição que os católicos haviam adotado ferrenhamente contra os chamados valores modernos.

Como afirma a socióloga francesa Danièle Hervieu-Léger: “O impacto da modernidade sobre as religiões caracterizou-se menos pela dissolução da religião e do sentimento religioso — como previram algumas teses baseadas na sociologia weberiana — e mais pela imposição, às religiões tradicionais, da perda da hegemonia na regulamentação dos sentidos da sociedade, sendo a Igreja Católica a principal afetada.”

Especialmente após a revolução francesa (1789-1799) e independência americana (1775-1783) a resposta da Igreja foi de oposição frontal. Da convocação de Gregório VI (1831-1846) ao combate do que classificava como “pestilentissimus error” (erro terrível) da liberdade de pensamento, da democracia e dos direitos do homem (Fülöp-Miller, 1941); à publicação do famoso “Syllabus errorum” (1864) compêndio de condenação às “heréticas oitenta teses de obras liberais”⁴ por seu sucessor, Pio IX (1846-1878); culminando na convocação do primeiro Concílio do Vaticano (1869 a 1870), que ratificou o “poder supremo da ordem monárquica papal” como “representante de Deus na Terra” e condenou à excomunhão todos que professassem fé nos valores da modernidade.

Contudo, os efeitos da resolução a que chegava o pomposo Concílio Vaticano I não saíram como esperado, reforçando a cisão de pensamento no interior da própria Igreja e aprofundando o declínio de seu poder político por toda Europa. Tornado ainda mais isolado Pio IX – último monarca dos estados pontifícios, anexados pelo reino da Itália em 1870 iniciando a intitulada questão romana.

Reunidos em conclave, os cardeais católicos buscaram em um antigo núncio apostólico5 junto à Bélgica, uma das primeiras potências industriais no nascedouro do capitalismo industrial, o novo líder. Sucedido o posto máximo da hierarquia Católica Romana por um papado reformador, Leão XIII (1878 – 1903) iniciou uma guinada na história da Igreja Católica cujas influências repercutem na geopolítica até o presente.

Voltando os olhos para a Igreja da escolástica, Leão XIII resgatou já no início de seu pontificado as proposições tomistas – referente pelo qual é conhecido o movimento teórico reformador iniciado por São Tomás de Aquino, que absorve de Aristóteles o método racionalista, aproximando-o da teologia e subjugando-o a ela (fundamento de toda a empreitada da Igreja na escolástica). Por meio da encíclica Aeterni Patris: sobre a restauração da filosofia cristã a recomendou como “fundamento espiritual” da Igreja, oficializando as bases da nova relação Igreja-modernidade.

Assim, com base no tomismo, Leão XIII defendia que não caberia a Igreja Católica intervir no regime político dos estados, mas guiá-los em direção aos valores ético e morais do cristianismo. Sem contrapor a Igreja à forma de governo secular, consolidava-se as bases de criação da Doutrina Social Católica, abrindo caminho para o surgimento décadas depois do Concílio Vaticano II, em direção frontalmente oposta ao Vaticano I.

O documento que marcou o esforço de terceira via da chamada “sociologia católica” diante de um mundo polarizado entre esquerda e direita foi a Encíclica Rerum Novarum (1891), de Leão XIII. Nela, sistematiza-se as contraposições da Doutrina Social Católica em relação tanto ao modelo de sociedade capitalista quanto às alternativas socialistas e comunistas. Explicitamente, suas principais linhas de contraposição foram:

à exploração da mão de obra humana pelo liberalismo econômico que tende a considerar o trabalho como um lucro e ignorar as necessidades do ser humano; […] à concentração das riquezas nas mãos de um pequeno grupo; […] ao socialismo e à sua filosofia materialista, assim como à sua doutrina inadmissível: abolição da propriedade privada, luta de classes, intervenções injustificáveis na vida das pessoas e das famílias (R.N. 11, 12, 13). (Leão XIII, 1891. s/p).

        Impactos sociais da Doutrina Social Católica

Os impactos da Doutrina Social Católica foram profundos e duais. Influenciou a então emergente formulação teórica dos Direitos Humanos, figurando a Rerum Novarum católica conhecida no ensino do ordenamento jurídico internacional ao lado do Manifesto do Partido Comunista (1848) como marcos teóricos dos chamados direitos humanos de segunda geração, que são aqueles de caráter prestacionais, ou seja, sob os quais os Estados são instados a intervir de forma proativa. Foram uma resposta e um posicionamento de outra ordem frente aos ditos direitos humanos de primeira geração, que tem como marcos jurídico e político a constituição norte americana e a revolução francesa, respectivamente, conhecidos como direitos passivos

Por meio da Doutrina Social, apostou-se no associativismo como chave da sociologia tomista-leonina como alternativa ao liberalismo econômico e ao coletivismo marxista. Tal proposta de associativismo baseava-se nas antigas associações profissionais do medievo, suplantadas pela doutrina liberal. Esse incentivo ao associativismo profissional tinha por base a defesa de que tanto patrões quanto empregados poderiam organizar-se, separada ou mutuamente, mas que essa organização não deveria estar fundada na luta de classes.

Tal organização deveria ter por base interesses econômicos comuns, tais como o desenvolvimento de ações sociais que viessem ao encontro das demandas de ambos, em contraponto a organização de classe propriamente dita, que tinha nos partidos políticos e posteriormente nos sindicatos classistas sua expressão máxima. Não atoa é a Igreja Católica que insere no Brasil a articulação da chamada sociedade civil, como defende a antropóloga Paula Montero.

Ademais, sua abrangência interpretativa dava margem ao surgimento de grupos com um perfil conservador renovado, por exemplo, o integralismo católico que surge nesse período. Baseado na doutrina social, os integralistas articulavam ao mesmo tempo as doutrinas de Pio IX com Leão XIII propondo que a Igreja deveria ser o centro político e moral do Estado¹.

Especialmente no caso Italiano, a Doutrina Social cumpriu papel importante para o estreitamento dos laços entre a Igreja Católica e o regime de Mussolini. Uma vez que este propunha uma engrenagem de estado onde as associações profissionais tinham proeminência, a Igreja via atendida no social-nacionalismo italiano também as suas proposições sobre o regime de estado adequado contra “os perigos do individualismo liberal e do coletivismo socialista”. Essa afinidade seria decisiva para viabilizar em um futuro não muito distante a resolução da chamada “questão romana”, por meio da assinatura do tratado de Latrão entre Santa Sé e o regime fascista, com a criação do Estado soberano do Vaticano.

Já no contexto francês, a doutrina social cumpriu papel importante de convencimento dos católicos em adesão ao ordenamento republicano. Como sinaliza Danièle Hervieu-Léger: “enquanto o clero diocesano aceitava pouco a pouco a vinculação à República defendida por Leão XIII, as congregações continuavam sendo o pivô das correntes antirrepublicanas e antidemocráticas². Em 11 de dezembro de 1905, dois anos após o falecimento de Leão XIII, foi promulgada a lei de separação entre Igreja e Estado, conhecida como “lei de separação”, que instituiu a laicidade estatal na França.

Experiências de terceira via da corte mais progressista também surgiram no bojo do incentivo ao associativismo católico operado pela doutrina social. O exemplo mais emblemático é a intitulada Ação Católica (A.C.), no seio da qual intelectuais católicos como Padre Joseph Cardijn desenvolveram um método próprio para análise de contexto e formulação de intervenções sociopastorais conhecido como trilogia pastoral, fundado nas premissas “ver, julgar, agir”, fortemente incorporada pela Teologia da Libertação e o catolicismo progressista latino-americano e recentemente resgatado pelo papado de Francisco em sua encíclica Laudato Si’.

Nesse sentido, é importante ressaltar que os impactos sociopolíticos decorrentes da formulação da Doutrina Social Católica são maleáveis a distintas conjunturas sociopolíticas e às realidades socioculturais das regiões e dos estados nacionais, ora operando o fortalecimento de tradições progressistas, ora se vinculando a correntes conservadoras.

        A teoria de estado tomista-leonina

Nesse primeiro período de formulação da Doutrina Social sua chave analítica, pegando de empréstimo do velho testamento, baseava-se no direito natural, que ganha preponderância sob o preceito de lei divina: “A lei natural, eis o fundamento no qual assenta a doutrina social da Igreja’ declarou o papa Pio XII”³.

Assim, para a emergente sociologia tomista-leonina o centro do problema social moderno era antes moral que econômico, uma vez que sob os valores liberais rompiam-se as hierarquias da ordem natural. Dito de outra forma, para a doutrina leonina o problema não residia na existência de um regime econômico fundado na propriedade privada – pois a existência dessa era compreendida por ordem natural – mas sim em um regime econômico sem valores. E os valores que lhe faltavam eram aqueles que a cristandade teria a oferecer.

Com base nesse princípio formulou-se a teoria de estado tomista-leonina, assim sintetizada pelo historiador austríaco Fülöp-Miller:

Em vez do conceito marxista de classes, que já no seu enunciado marca a oposição de combate duma camada social contra a outra, a encíclica papal reestabelecia por assim dizer a concepção tomista de estado […]. Pressupõe-se que toda atividade humana, desde a ação mais insignificante à mais sublime, se encaixa nessa escala numa jerarquia (sic) de funções; […] o sentido da natureza do Estado é ‘a comunidade do superior e do inferior’. O pobre é ‘cidadão como o rico’ e seria ‘manifesta insânia favorecer uma parte da sociedade e negligenciar a outra’. É óbvio que também compete ao Estado proteger legalmente o proprietário contra toda expoliação, prevenir tumultos e violências. Onde, porém, o descontentamento social provém de abusos reais, o poder político tem o dever de eliminar oportunamente esses motivos e sustentar os direitos do trabalhador (Fülöp-Miller, 1941, p. 124)

Assim, a histórica “abertura à modernidade” católica configurou-se – a par do tomismo que a animava – menos por uma adesão aos valores modernos que por um reposicionamento dos termos da disputa sobre os sentidos e os fins últimos dessa modernidade, por meio do chamado compromisso social.

        Leão XIV, conservador ou progressista?

Grosso modo, essa postura continua sendo o pano de fundo que orienta o posicionamento da Doutrina Social Católica até o presente – até hoje é por meio da doutrina social que os papas se pronunciam sobre os principais problemas sociais do mundo, passando pela economia, guerras até a crise climática (a Laudato Si’ de Francisco é um exemplo).

Precisamente em função da base teórico-ideológica que sustenta a Doutrina Social Católica – em que pese transformações importantes tenham sido operadas, inclusive regionalmente pelas conferências episcopais, e que cada papa imprima sob ela uma lente mais progressista ou conservadora –, essa continua sendo a baliza da relação que os católicos mantem não apenas com as questões referentes aos conflitos de classe como também aqueles compreendidos como de ordem moral, a identidade de gênero, as questões ligadas a reprodução e à concepção de família, como bem analisam as antropólogas Brenda Carranza e Maria José Rosado.

Não por acaso, especialmente no que concerne ao tema do aborto, é comum uma afinidade condenatória tanto entre setores conservadores quanto progressistas no interior do catolicismo. Não é exagero afirmar que, sob a regência da doutrina social, opera-se um dos raros consensos no interior de uma Igreja profundamente fragmentada, precisamente no que concerne a condenação do aborto. É significativo, portanto, que em um contexto de polarização no interior da Igreja haja um aceno em direção ao fortalecimento de sua doutrina social.

Exatamente por isso a definição de progressista ou conservador usada para a política tradicional não serve para compreender o posicionamento político da Igreja Católica. Em alguns temas há afinidade com agendas políticas da esquerda em outros com a direita. Isso ocorre porque os valores que a Igreja disputa são os valores da modernidade e o papel da Igreja sob ela.

Em artigo de 1983 intitulado conservador ou progressista: uma questão de conjuntura o antropólogo Rubem César Fernandes defende a tese de que enquadrar as posturas de uma organização, grupo ou pessoa enquanto progressista ou conservador deve fundamentalmente levar em conta sob qual conjuntura essa classificação está informada. Nenhuma análise séria sobre Igreja Católica pode abdicar esse postulado.

Por isso, na contramão da percepção dos norte-americanos sob a eleição do novo pontífice como contraponto a agenda de Donald Trump e da extrema- direita, levando em conta os sinais professados pela adoção da linhagem de Leão XIV em um cenário de polarização entre esquerda e direita, apostaria em pontos de contato e pontos de fratura. Contato nas agendas de gênero, reprodução e sexualidade, fratura na agenda social.

 

Fonte: Por Breno Botelho, no Le Monde


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