Crise
de identidade ideológica da classe média
A
massificação do Ensino superior propiciou a formação de um varejo de alta renda
com boas condições de vida. Esse fenômeno inexistia antes do pós-guerra e da
criação da pílula anticoncepcional propiciadora do planejamento familiar com
poucos filhos e daí o ingresso da mulher no mercado de trabalho, muitas com
maior escolaridade diante dos homens, para aumentar a renda doméstica.
Uma
questão-chave é: essa classe média não altera a luta de classes da Era
industrial, tipo “nós contra eles”, em um reducionismo binário de operários
contra capitalistas? Os serviços e o comércio urbano passaram a predominar em
ocupação e fonte de renda e superaram aquele capitalismo industrial de outrora?
Essa
formulação está afinada com uma leitura crítica e sistêmica da transição
estrutural do capitalismo industrial para o capitalismo de serviços e consumo
de massa, especialmente, depois da Segunda Guerra Mundial. A expansão do Ensino
Superior é chave para a transformação social ainda em andamento.
A
massificação dessa Educação Superior emergiu nos Estados Unidos, no pós-guerra,
e no Brasil e na Europa, sobretudo após a revolta estudantil e a rebeldia em
costumes, ocorrida na década de 1960. Desempenhou um papel central em produzir
mão de obra qualificada para setores não industriais como serviços financeiros,
educação, saúde, tecnologia, administração pública e privada.
Gerou
expectativas de mobilidade social ascendente, inclusive em países periféricos
mais urbanizados. Aumentou o consumo educado (livros, viagens, tecnologia,
cultura) e consolidou um novo varejo urbano de alta renda (shopping centers,
turismo, moradia de classe média, bens duráveis), configurando uma sociedade
consumista.
Essa
expansão foi acompanhada por uma nova morfologia social da classe média. Deixou
de ser apenas intermediária entre capital e trabalho, mas se transformou como
consumidora, endividada e educada, com traços políticos ambíguos.
A
revolução demográfica e a participação feminina foram fundamentais no processo.
O advento da pílula anticoncepcional, o planejamento familiar e a entrada
massiva da mulher no mercado de trabalho aumentaram a renda doméstica
disponível, ampliando o mercado consumidor urbano.
Transformaram
o papel das mulheres de reprodutoras domésticas em agentes econômicas ativas.
Reforçaram o ideal da família de classe média em ter poucos filhos e fazer mais
investimentos em educação, saúde e lazer.
Isso
criou uma base para uma nova classe média urbana com padrões de vida inéditos
na história moderna. Foi especialmente visível nos chamados “Trinta gloriosos”
no Norte global e nas ondas de modernização urbana na América Latina nas
décadas de 1950–70.
A
emergência dessa nova classe média não eliminou a luta de classes industrial,
mas a transfigurou, deslocando-a da fábrica para a sociedade de consumo e
serviços. Fragmentou a ideologia ao criar identidades de classe mais difusas
entre profissionais liberais, técnicos, servidores públicos, pequenos
empresários etc. Neutralizou politicamente parte do proletariado tradicional ao
criar o mito da ascensão pelo mérito e status do consumo.
Contudo,
a classe média de alta renda continua dependente da valorização da força de
trabalho intelectual. Está subordinada às flutuações do mercado de crédito, do
emprego e da especulação imobiliária. Concentrada nos grandes centros urbanos,
não consegue se homogeneizar em todos os países com grandes territórios,
mantendo desigualdades regionais profundas.
A
predominância dos setores de serviços e comércio não elimina a lógica da
acumulação de capital, apenas a desloca para novos mercados como financeiros,
digitais, educacionais e culturais. Não extingue a exploração, mas a torna mais
sutil e fragmentada, via precarização, uberização e endividamento.
Substitui
a fábrica pela loja, o call center, a escola privada, o app, a
tela… As formas de dominação passam a ser simbólicas, cognitivas, afetivas e
algorítmicas.
Emerge,
em consequência, uma recomposição sistêmica da luta de classes, agora entre
capital acionário plataformizado e força de trabalho imaterial/precarizada?
Essa
nova classe média é ambígua porque é agente ativa no consumo e reprodutora
ideológica do sistema, mas vulnerável economicamente devido à oneomania. Também
conhecida como compulsão por compras, é um transtorno compulsivo caracterizado
por um impulso incontrolável de comprar, mesmo quando não há necessidade ou
quando a compra causa problemas financeiros pelo endividamento. Este transtorno
estimado em cerca de 3% da população mundial, geralmente, está associado ao
desejo de preencher um vazio emocional.
Talvez
também o impulsione o tensionamento entre a promessa meritocrática e a
realidade da estagnação da mobilidade social. Está situado no contexto de
transição da luta de classes industrial para a reconfiguração contemporânea
centrada em serviços, consumo e endividamento.
Recentemente,
surgiu a dúvida se é possível a massificação do empreendedorismo com
trabalhadores por meio de iniciativas particulares se tornando empreendedores
bem-sucedidos diante a exploração anterior do trabalho assalariado. Seria os
casos, por exemplo, da uberização do trabalho ou locação da própria moradia
como Airbnb.
Este é
o cerne de uma das maiores ilusões ideológicas da Era digital neoliberal: a
ideia de a massificação do empreendedorismo individual, via plataformas como
Uber ou Airbnb, representar emancipação econômica frente à exploração do
trabalho assalariado tradicional. A realidade sistêmica, porém, é mais complexa
e contraditória.
A
narrativa dominante sugere o mito do empreendedorismo massificado no qual todo
trabalhador pode “virar patrão de si mesmo”. A precariedade do emprego seria
compensada por liberdade, autonomia e ganho potencial porque plataformas
digitais permitem renda extra, flexibilidade e escalabilidade de negócios
pessoais.
Contudo,
essa ideologia desmaterializa relações de exploração e as reconfigura sob a
forma de “oportunidade individual”. O que era emprego com direitos vira
“parceria” – e o risco é transferido do capital para o indivíduo.
A
chamada “uberização” é uma nova forma de subordinação porque o trabalhador
uberizado arca com os custos do capital fixo (carro, combustível, manutenção).
É gerido por algoritmos, avaliado em tempo real, punido sem mediação humana.
Não tem vínculo formal, nem previdência, nem jornada definida. É substituível e
fragmentado, sem força coletiva de barganha. Desse modo, ele continua
subordinado, mas agora ao capital-plataforma, de forma invisível e
desterritorializada.
Quanto
ao Airbnb, a dúvida é se é uma renda passiva ou a financeirização da moradia?
Locar imóveis via Airbnb pode parecer emancipador pela geração de renda própria
e aproveitamento de ativos ociosos.
Mas no
plano sistêmico contribui à financeirização da habitação, retirando imóveis do
uso residencial estável e inflando aluguéis. Favorece quem já possui capital
imobiliário. Estimula a propriedade múltipla para renda passiva – a receita
gerada sem seu trabalho estar ativamente envolvido na sua geração –,
aprofundando desigualdades patrimoniais.
Não é
uma via massiva de ascensão. É sim um instrumento de reprodução da desigualdade
estrutural sob aparência de “empreendedorismo popular”.
As
barreiras à massificação do empreendedorismo autêntico têm fatores estruturais,
mas enfrenta obstáculos. A concentração de capital leva ao acesso desigual a
crédito, tecnologia e redes. A baixa mobilidade social conduz ao
empreendedorismo de necessidade, não de vocação. O domínio de plataformas
monopolistas resulta em uma intermediação assimétrica, onde se captura o valor
do trabalho.
Na
regulação fiscal e urbana, percebe-se a falta de políticas públicas de apoio ao
microempreendedor real, portanto, é uma cultura do risco com individualização
da falha e ausência de seguridade social.
A
massificação do empreendedorismo individual via plataformas não constitui
superação da exploração assalariada por emancipação, mas sim reciclagem da
exploração. É uma reorganização pós-fordista da precariedade e uma nova forma
de disciplinamento neoliberal pela via do sonho de ascensão individual.
Esse
modelo acumula capital e dados no topo, enquanto transfere risco para a base.
Para haver uma verdadeira emancipação, seria preciso democratização do acesso a
meios de produção e plataformas, cooperação econômica autogestionária, e não
intermediação extrativa. É necessária a reconstrução de uma proteção social
pós-salarial para esses novos modos de vida e trabalho.
¨ O ANDES-SN sob o
domínio do capital fictício. Por João dos Reis da Silva Junior
No
início de maio por ocasião das eleições para diretoria do ANDES-SN, escrevi um texto,
postado no site A
Terra é Redonda, que ingenuamente considerei que poderia contribuir. O texto
apresentava as quatro chapas e relatava e os esperneios judiciais acima da
política de um sindicalismo que não tem uma teoria política sindical. Muitos
foram os incautos que leram a primeira parte e mostraram equívocos nas
propostas e havia.
Porém,
para minha tristeza ninguém comentou as duas outras partes sobre a universidade
pública brasileira e o ANDES-SN já estarem sob o domínio do capital fictício.
Deixo de acreditar no movimento docente. Não sabem que universidade temos, como
poderão os neófitos e dinossauros construírem uma proposta para a universidade
pública?
Vai
algumas pistas da universidade pública e do ANDES-SN sob o domínio do capital
fictício, que ninguém enxergou
As
eleições de maio de 2025 para a diretoria do ANDES-SN foram marcadas por forte
fragmentação política, baixa participação da base e pela ausência de uma
proposta de ruptura com a financeirização da universidade pública brasileira.
Quatro chapas foram homologadas, expressando diferentes correntes e visões
internas, mas nenhuma delas apresentou uma crítica estrutural ao modelo de
universidade sob o domínio do capital fictício.
O
processo eleitoral expôs um sindicato atravessado por disputas internas, mas
incapaz de formular uma estratégia coletiva frente à crise profunda da educação
superior. O debate permaneceu preso ao horizonte do assembleísmo tradicional,
ignorando as transformações materiais do trabalho docente e a captura
institucional do próprio sindicato.
A
universidade pública brasileira não é mais aquilo que parte do movimento
docente acredita estar defendendo. Ela foi atravessada, capturada e
reconfigurada sob a lógica do capital fictício — forma social de valorização
sem substância produtiva, alimentada pela financeirização do fundo público,
pela competição reputacional e pela transformação do conhecimento em ativo
intangível. Não se trata de uma abstração teórica.
Trata-se
de um processo concreto: o orçamento das universidades federais passou a ser
gerido por mecanismos de limitação fiscal que subordinam as finalidades
acadêmicas às exigências do “resultado primário”. A Lei do Teto de Gastos (EC
95/2016), o novo arcabouço fiscal (LC 200/2023) e a sistemática dos contratos
de gestão transformaram reitores em gestores de metas e indicadores,
universidades em vitrines de rankings, e a pesquisa em moeda reputacional
indexada ao fator de impacto. A produção científica, cada vez mais, não se
orienta por sua relevância pública, mas por sua capacidade de se transformar em
pontuação avaliativa no Qualis, no Sucupira, nas métricas do Scopus, nos
relatórios de “produtividade” do CNPq.
Essa
lógica não é neutra. Ela reordena a estrutura universitária por dentro,
fragmentando áreas do saber, hierarquizando epistemologias e estrangulando
financeiramente as ciências humanas, sociais e artes. Laboratórios viram
plataformas de captação de recurso externo, professores tornam-se
empreendedores de si mesmos, estudantes são pressionados a performar excelência
num ambiente cada vez mais hostil, inseguro e competitivo.
A
carreira docente já não garante estabilidade existencial; a lógica de contratos
temporários, avaliações periódicas e estímulo à superprodução intelectual molda
subjetividades disciplinadas e adoecidas. Mais do que isso: a própria missão da
universidade é subvertida. A crítica estrutural é substituída pela “inovação
social”, o pensamento pela “resolução de problemas”, o engajamento pelo
“alinhamento estratégico”.
Sob o
domínio do capital fictício, o saber torna-se veículo de valorização simbólica
— algo que precisa gerar cotação. A CAPES já não é apenas uma agência de
fomento, mas um sistema de mensuração; o MEC se converte em gestor de contratos
e metas; os PDI das universidades operam como planos empresariais. A docência é
reduzida a atividade indexada ao Lattes.
Nesse
contexto, o que se torna “excelente” não é o conhecimento que emancipa, mas o
que rende prestígio, atrai investimentos, sobe no ranking, cria spin-offs,
firma convênios, vira patente. A pesquisa crítica, a extensão
contra-hegemônica, a reflexão histórica, a arte insurgente? Todas sob risco de
obsolescência institucional.
A
captura não é total, mas é estrutural. Ela compromete o horizonte do público,
não apenas seu financiamento. O capital fictício transforma a universidade em
ativo reputacional e a ciência em instrumento de geração de valor
simbólico-mercantil. Essa inversão não é percebida por grande parte das chapas
que disputam o ANDES-SN porque elas próprias ainda operam na ilusão de que a
universidade possa ser redimida apenas por meio de mais democracia interna,
assembleias, plenárias, ou por uma disputa de projeto pedagógico abstrato.
Mas não
haverá projeto pedagógico possível enquanto a universidade for instrumento de
valorização especulativa, mediada por rankings e métricas globais. O que está
em jogo não é a forma de gestão da universidade, mas sua função no interior de
um capitalismo financeirizado e dependente.
<><>
O ANDES-SN sob o domínio do capital fictício
Se a
universidade pública brasileira foi capturada, o mesmo ocorre — por caminhos
distintos — com seu sindicato nacional. O ANDES-SN não escapou à lógica da
financeirização. A captura aqui opera por outros meios: pelo esvaziamento de
base, pela substituição da luta coletiva por lógicas de certificação política,
pela transformação das pautas em rituais simbólicos, e pela incorporação do
sindicalismo docente à racionalidade reputacional.
As
chapas que disputam sua direção não refletem mais sobre o tipo de trabalho
docente que existe hoje, sobre a universidade financeirizada que habitamos,
sobre a alienação crescente do ofício intelectual. Permanecem presas a
categorias que perderam densidade histórica, como “carreira única”, “democracia
universitária” e “autonomia plena”, sem perceber que o terreno da luta mudou
completamente.
Não se
trata de deslegitimar a luta sindical. Ao contrário: trata-se de recusar seu
esvaziamento. O que vemos é um sindicato transformado em máquina de reprodução
de visibilidade entre correntes político-partidárias, onde os debates reais
sobre a função da universidade pública são substituídos por slogans e
panfletos. A pauta sindical tornou-se administrável — luta-se por reajuste de
benefícios, recomposição orçamentária, espaços em conselhos universitários, mas
não se enfrenta o fato de que a própria função social do docente mudou.
O
professor foi convertido em gestor de si, sua produção científica é mensurada
como ativo, sua aula é avaliada por NPS, sua trajetória é monitorada por
algoritmos da Capes e do CNPq. O sindicato que não diagnostica essa mutação não
pode defender o professor.
Além
disso, o ANDES-SN passou a operar também por meio de uma racionalidade
reputacional. Sua força organizativa é hoje medida por quantidade de
assembleias, moções aprovadas, pautas formalmente apresentadas. A ação concreta
se tornou performance — e a militância, uma burocracia simbólica.
Em vez
de enraizamento nos cotidianos docentes, o que se vê é a circulação de
lideranças em eventos, lives, publicações e textos que repetem diagnósticos
antigos. Não há interpelação concreta da financeirização da vida acadêmica, da
captura subjetiva dos docentes, da transformação dos sindicatos em simulacros.
A prova
disso é que nenhuma das chapas apresentou uma crítica radical à financeirização
da universidade. Nenhuma propôs a revisão da própria forma sindical, nenhuma
analisou os contratos de gestão, os PDIs, a inserção nos rankings, a captura
epistêmica dos currículos. Nenhuma denunciou a conversão do saber em ativo
reputacional, a dissolução da vocação crítica, o sofrimento psíquico como
manifestação política. Todas operam como se estivéssemos em 1998.
Essa
anacronia não é inocente: ela preserva uma estrutura de poder. Enquanto o
capital fictício transforma o conhecimento em ativo e os professores em
máquinas de produtividade, o sindicato opera como ritualização da luta, como
manutenção de estruturas que legitimam correntes políticas e produzem efeitos
simbólicos. Mas não constroem resistência. Não mobilizam a base. Não interpelam
a forma-universidade, nem a forma-sindicato.
Se a
universidade está sob cerco, o ANDES-SN tornou-se sua fortaleza simbólica. E
toda fortaleza que se recusa a compreender a guerra que a cerca está fadada a
ruir — não pelo ataque inimigo, mas pela corrosão interna. A defesa real da
universidade pública não virá das chapas que disputam cargos no sindicato, mas
daqueles que ousarem romper com a farsa e construir uma insurgência cotidiana,
concreta, que recuse a mercantilização do saber e reabilite o professor como
sujeito de crítica — e não como administrador de sua própria precariedade.
Fonte:
Por Fernando Nogueira da Costa, em A Terra é Redonda

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