quinta-feira, 29 de maio de 2025

Crise de identidade ideológica da classe média

A massificação do Ensino superior propiciou a formação de um varejo de alta renda com boas condições de vida. Esse fenômeno inexistia antes do pós-guerra e da criação da pílula anticoncepcional propiciadora do planejamento familiar com poucos filhos e daí o ingresso da mulher no mercado de trabalho, muitas com maior escolaridade diante dos homens, para aumentar a renda doméstica.

Uma questão-chave é: essa classe média não altera a luta de classes da Era industrial, tipo “nós contra eles”, em um reducionismo binário de operários contra capitalistas? Os serviços e o comércio urbano passaram a predominar em ocupação e fonte de renda e superaram aquele capitalismo industrial de outrora?

Essa formulação está afinada com uma leitura crítica e sistêmica da transição estrutural do capitalismo industrial para o capitalismo de serviços e consumo de massa, especialmente, depois da Segunda Guerra Mundial. A expansão do Ensino Superior é chave para a transformação social ainda em andamento.

A massificação dessa Educação Superior emergiu nos Estados Unidos, no pós-guerra, e no Brasil e na Europa, sobretudo após a revolta estudantil e a rebeldia em costumes, ocorrida na década de 1960. Desempenhou um papel central em produzir mão de obra qualificada para setores não industriais como serviços financeiros, educação, saúde, tecnologia, administração pública e privada.

Gerou expectativas de mobilidade social ascendente, inclusive em países periféricos mais urbanizados. Aumentou o consumo educado (livros, viagens, tecnologia, cultura) e consolidou um novo varejo urbano de alta renda (shopping centers, turismo, moradia de classe média, bens duráveis), configurando uma sociedade consumista.

Essa expansão foi acompanhada por uma nova morfologia social da classe média. Deixou de ser apenas intermediária entre capital e trabalho, mas se transformou como consumidora, endividada e educada, com traços políticos ambíguos.

A revolução demográfica e a participação feminina foram fundamentais no processo. O advento da pílula anticoncepcional, o planejamento familiar e a entrada massiva da mulher no mercado de trabalho aumentaram a renda doméstica disponível, ampliando o mercado consumidor urbano.

Transformaram o papel das mulheres de reprodutoras domésticas em agentes econômicas ativas. Reforçaram o ideal da família de classe média em ter poucos filhos e fazer mais investimentos em educação, saúde e lazer.

Isso criou uma base para uma nova classe média urbana com padrões de vida inéditos na história moderna. Foi especialmente visível nos chamados “Trinta gloriosos” no Norte global e nas ondas de modernização urbana na América Latina nas décadas de 1950–70.

A emergência dessa nova classe média não eliminou a luta de classes industrial, mas a transfigurou, deslocando-a da fábrica para a sociedade de consumo e serviços. Fragmentou a ideologia ao criar identidades de classe mais difusas entre profissionais liberais, técnicos, servidores públicos, pequenos empresários etc. Neutralizou politicamente parte do proletariado tradicional ao criar o mito da ascensão pelo mérito e status do consumo.

Contudo, a classe média de alta renda continua dependente da valorização da força de trabalho intelectual. Está subordinada às flutuações do mercado de crédito, do emprego e da especulação imobiliária. Concentrada nos grandes centros urbanos, não consegue se homogeneizar em todos os países com grandes territórios, mantendo desigualdades regionais profundas.

A predominância dos setores de serviços e comércio não elimina a lógica da acumulação de capital, apenas a desloca para novos mercados como financeiros, digitais, educacionais e culturais. Não extingue a exploração, mas a torna mais sutil e fragmentada, via precarização, uberização e endividamento.

Substitui a fábrica pela loja, o call center, a escola privada, o app, a tela… As formas de dominação passam a ser simbólicas, cognitivas, afetivas e algorítmicas.

Emerge, em consequência, uma recomposição sistêmica da luta de classes, agora entre capital acionário plataformizado e força de trabalho imaterial/precarizada?

Essa nova classe média é ambígua porque é agente ativa no consumo e reprodutora ideológica do sistema, mas vulnerável economicamente devido à oneomania. Também conhecida como compulsão por compras, é um transtorno compulsivo caracterizado por um impulso incontrolável de comprar, mesmo quando não há necessidade ou quando a compra causa problemas financeiros pelo endividamento. Este transtorno estimado em cerca de 3% da população mundial, geralmente, está associado ao desejo de preencher um vazio emocional.

Talvez também o impulsione o tensionamento entre a promessa meritocrática e a realidade da estagnação da mobilidade social. Está situado no contexto de transição da luta de classes industrial para a reconfiguração contemporânea centrada em serviços, consumo e endividamento.

Recentemente, surgiu a dúvida se é possível a massificação do empreendedorismo com trabalhadores por meio de iniciativas particulares se tornando empreendedores bem-sucedidos diante a exploração anterior do trabalho assalariado. Seria os casos, por exemplo, da uberização do trabalho ou locação da própria moradia como Airbnb.

Este é o cerne de uma das maiores ilusões ideológicas da Era digital neoliberal: a ideia de a massificação do empreendedorismo individual, via plataformas como Uber ou Airbnb, representar emancipação econômica frente à exploração do trabalho assalariado tradicional. A realidade sistêmica, porém, é mais complexa e contraditória.

A narrativa dominante sugere o mito do empreendedorismo massificado no qual todo trabalhador pode “virar patrão de si mesmo”. A precariedade do emprego seria compensada por liberdade, autonomia e ganho potencial porque plataformas digitais permitem renda extra, flexibilidade e escalabilidade de negócios pessoais.

Contudo, essa ideologia desmaterializa relações de exploração e as reconfigura sob a forma de “oportunidade individual”. O que era emprego com direitos vira “parceria” – e o risco é transferido do capital para o indivíduo.

A chamada “uberização” é uma nova forma de subordinação porque o trabalhador uberizado arca com os custos do capital fixo (carro, combustível, manutenção). É gerido por algoritmos, avaliado em tempo real, punido sem mediação humana. Não tem vínculo formal, nem previdência, nem jornada definida. É substituível e fragmentado, sem força coletiva de barganha. Desse modo, ele continua subordinado, mas agora ao capital-plataforma, de forma invisível e desterritorializada.

Quanto ao Airbnb, a dúvida é se é uma renda passiva ou a financeirização da moradia? Locar imóveis via Airbnb pode parecer emancipador pela geração de renda própria e aproveitamento de ativos ociosos.

Mas no plano sistêmico contribui à financeirização da habitação, retirando imóveis do uso residencial estável e inflando aluguéis. Favorece quem já possui capital imobiliário. Estimula a propriedade múltipla para renda passiva – a receita gerada sem seu trabalho estar ativamente envolvido na sua geração –, aprofundando desigualdades patrimoniais.

Não é uma via massiva de ascensão. É sim um instrumento de reprodução da desigualdade estrutural sob aparência de “empreendedorismo popular”.

As barreiras à massificação do empreendedorismo autêntico têm fatores estruturais, mas enfrenta obstáculos. A concentração de capital leva ao acesso desigual a crédito, tecnologia e redes. A baixa mobilidade social conduz ao empreendedorismo de necessidade, não de vocação. O domínio de plataformas monopolistas resulta em uma intermediação assimétrica, onde se captura o valor do trabalho.

Na regulação fiscal e urbana, percebe-se a falta de políticas públicas de apoio ao microempreendedor real, portanto, é uma cultura do risco com individualização da falha e ausência de seguridade social.

A massificação do empreendedorismo individual via plataformas não constitui superação da exploração assalariada por emancipação, mas sim reciclagem da exploração. É uma reorganização pós-fordista da precariedade e uma nova forma de disciplinamento neoliberal pela via do sonho de ascensão individual.

Esse modelo acumula capital e dados no topo, enquanto transfere risco para a base. Para haver uma verdadeira emancipação, seria preciso democratização do acesso a meios de produção e plataformas, cooperação econômica autogestionária, e não intermediação extrativa. É necessária a reconstrução de uma proteção social pós-salarial para esses novos modos de vida e trabalho.

¨      O ANDES-SN sob o domínio do capital fictício. Por João dos Reis da Silva Junior

No início de maio por ocasião das eleições para diretoria do ANDES-SN, escrevi um texto, postado no site A Terra é Redonda, que ingenuamente considerei que poderia contribuir. O texto apresentava as quatro chapas e relatava e os esperneios judiciais acima da política de um sindicalismo que não tem uma teoria política sindical. Muitos foram os incautos que leram a primeira parte e mostraram equívocos nas propostas e havia.

Porém, para minha tristeza ninguém comentou as duas outras partes sobre a universidade pública brasileira e o ANDES-SN já estarem sob o domínio do capital fictício. Deixo de acreditar no movimento docente. Não sabem que universidade temos, como poderão os neófitos e dinossauros construírem uma proposta para a universidade pública?

Vai algumas pistas da universidade pública e do ANDES-SN sob o domínio do capital fictício, que ninguém enxergou

As eleições de maio de 2025 para a diretoria do ANDES-SN foram marcadas por forte fragmentação política, baixa participação da base e pela ausência de uma proposta de ruptura com a financeirização da universidade pública brasileira. Quatro chapas foram homologadas, expressando diferentes correntes e visões internas, mas nenhuma delas apresentou uma crítica estrutural ao modelo de universidade sob o domínio do capital fictício.

O processo eleitoral expôs um sindicato atravessado por disputas internas, mas incapaz de formular uma estratégia coletiva frente à crise profunda da educação superior. O debate permaneceu preso ao horizonte do assembleísmo tradicional, ignorando as transformações materiais do trabalho docente e a captura institucional do próprio sindicato.

A universidade pública brasileira não é mais aquilo que parte do movimento docente acredita estar defendendo. Ela foi atravessada, capturada e reconfigurada sob a lógica do capital fictício — forma social de valorização sem substância produtiva, alimentada pela financeirização do fundo público, pela competição reputacional e pela transformação do conhecimento em ativo intangível. Não se trata de uma abstração teórica.

Trata-se de um processo concreto: o orçamento das universidades federais passou a ser gerido por mecanismos de limitação fiscal que subordinam as finalidades acadêmicas às exigências do “resultado primário”. A Lei do Teto de Gastos (EC 95/2016), o novo arcabouço fiscal (LC 200/2023) e a sistemática dos contratos de gestão transformaram reitores em gestores de metas e indicadores, universidades em vitrines de rankings, e a pesquisa em moeda reputacional indexada ao fator de impacto. A produção científica, cada vez mais, não se orienta por sua relevância pública, mas por sua capacidade de se transformar em pontuação avaliativa no Qualis, no Sucupira, nas métricas do Scopus, nos relatórios de “produtividade” do CNPq.

Essa lógica não é neutra. Ela reordena a estrutura universitária por dentro, fragmentando áreas do saber, hierarquizando epistemologias e estrangulando financeiramente as ciências humanas, sociais e artes. Laboratórios viram plataformas de captação de recurso externo, professores tornam-se empreendedores de si mesmos, estudantes são pressionados a performar excelência num ambiente cada vez mais hostil, inseguro e competitivo.

A carreira docente já não garante estabilidade existencial; a lógica de contratos temporários, avaliações periódicas e estímulo à superprodução intelectual molda subjetividades disciplinadas e adoecidas. Mais do que isso: a própria missão da universidade é subvertida. A crítica estrutural é substituída pela “inovação social”, o pensamento pela “resolução de problemas”, o engajamento pelo “alinhamento estratégico”.

Sob o domínio do capital fictício, o saber torna-se veículo de valorização simbólica — algo que precisa gerar cotação. A CAPES já não é apenas uma agência de fomento, mas um sistema de mensuração; o MEC se converte em gestor de contratos e metas; os PDI das universidades operam como planos empresariais. A docência é reduzida a atividade indexada ao Lattes.

Nesse contexto, o que se torna “excelente” não é o conhecimento que emancipa, mas o que rende prestígio, atrai investimentos, sobe no ranking, cria spin-offs, firma convênios, vira patente. A pesquisa crítica, a extensão contra-hegemônica, a reflexão histórica, a arte insurgente? Todas sob risco de obsolescência institucional.

A captura não é total, mas é estrutural. Ela compromete o horizonte do público, não apenas seu financiamento. O capital fictício transforma a universidade em ativo reputacional e a ciência em instrumento de geração de valor simbólico-mercantil. Essa inversão não é percebida por grande parte das chapas que disputam o ANDES-SN porque elas próprias ainda operam na ilusão de que a universidade possa ser redimida apenas por meio de mais democracia interna, assembleias, plenárias, ou por uma disputa de projeto pedagógico abstrato.

Mas não haverá projeto pedagógico possível enquanto a universidade for instrumento de valorização especulativa, mediada por rankings e métricas globais. O que está em jogo não é a forma de gestão da universidade, mas sua função no interior de um capitalismo financeirizado e dependente.

<><> O ANDES-SN sob o domínio do capital fictício

Se a universidade pública brasileira foi capturada, o mesmo ocorre — por caminhos distintos — com seu sindicato nacional. O ANDES-SN não escapou à lógica da financeirização. A captura aqui opera por outros meios: pelo esvaziamento de base, pela substituição da luta coletiva por lógicas de certificação política, pela transformação das pautas em rituais simbólicos, e pela incorporação do sindicalismo docente à racionalidade reputacional.

As chapas que disputam sua direção não refletem mais sobre o tipo de trabalho docente que existe hoje, sobre a universidade financeirizada que habitamos, sobre a alienação crescente do ofício intelectual. Permanecem presas a categorias que perderam densidade histórica, como “carreira única”, “democracia universitária” e “autonomia plena”, sem perceber que o terreno da luta mudou completamente.

Não se trata de deslegitimar a luta sindical. Ao contrário: trata-se de recusar seu esvaziamento. O que vemos é um sindicato transformado em máquina de reprodução de visibilidade entre correntes político-partidárias, onde os debates reais sobre a função da universidade pública são substituídos por slogans e panfletos. A pauta sindical tornou-se administrável — luta-se por reajuste de benefícios, recomposição orçamentária, espaços em conselhos universitários, mas não se enfrenta o fato de que a própria função social do docente mudou.

O professor foi convertido em gestor de si, sua produção científica é mensurada como ativo, sua aula é avaliada por NPS, sua trajetória é monitorada por algoritmos da Capes e do CNPq. O sindicato que não diagnostica essa mutação não pode defender o professor.

Além disso, o ANDES-SN passou a operar também por meio de uma racionalidade reputacional. Sua força organizativa é hoje medida por quantidade de assembleias, moções aprovadas, pautas formalmente apresentadas. A ação concreta se tornou performance — e a militância, uma burocracia simbólica.

Em vez de enraizamento nos cotidianos docentes, o que se vê é a circulação de lideranças em eventos, lives, publicações e textos que repetem diagnósticos antigos. Não há interpelação concreta da financeirização da vida acadêmica, da captura subjetiva dos docentes, da transformação dos sindicatos em simulacros.

A prova disso é que nenhuma das chapas apresentou uma crítica radical à financeirização da universidade. Nenhuma propôs a revisão da própria forma sindical, nenhuma analisou os contratos de gestão, os PDIs, a inserção nos rankings, a captura epistêmica dos currículos. Nenhuma denunciou a conversão do saber em ativo reputacional, a dissolução da vocação crítica, o sofrimento psíquico como manifestação política. Todas operam como se estivéssemos em 1998.

Essa anacronia não é inocente: ela preserva uma estrutura de poder. Enquanto o capital fictício transforma o conhecimento em ativo e os professores em máquinas de produtividade, o sindicato opera como ritualização da luta, como manutenção de estruturas que legitimam correntes políticas e produzem efeitos simbólicos. Mas não constroem resistência. Não mobilizam a base. Não interpelam a forma-universidade, nem a forma-sindicato.

Se a universidade está sob cerco, o ANDES-SN tornou-se sua fortaleza simbólica. E toda fortaleza que se recusa a compreender a guerra que a cerca está fadada a ruir — não pelo ataque inimigo, mas pela corrosão interna. A defesa real da universidade pública não virá das chapas que disputam cargos no sindicato, mas daqueles que ousarem romper com a farsa e construir uma insurgência cotidiana, concreta, que recuse a mercantilização do saber e reabilite o professor como sujeito de crítica — e não como administrador de sua própria precariedade.

 

Fonte: Por Fernando Nogueira da Costa, em A Terra é Redonda 

 

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