Pejotização
e o colapso silencioso da Previdência
Além
de precarizar, a multiplicação de contratos PJ corrói a base de financiamento
de uma conquista histórica – e abre espaço para a enésima contrarreforma.
Debate no STF, portanto, não é apenas jurídico. Envolve o futuro dos direitos e
proteções que constituem a cidadania
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A
transformação das relações laborais no Brasil tem apresentado uma tendência preocupante
desde a implementação da reforma trabalhista. O fenômeno conhecido como
“pejotização” – a contratação de trabalhadores como pessoas jurídicas em vez de
empregados formais – representa não apenas uma mudança nos arranjos
contratuais, mas uma profunda alteração na própria estrutura das relações
sociais de produção, revelando novas formas de exploração do trabalho que
precisam ser analisadas a partir de uma perspectiva historiográfica que
valorize a agência dos trabalhadores e as dimensões morais da economia.
Segundo
estudo realizado por pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas, a pejotização
custou aos cofres públicos entre R$ 89 bilhões e R$ 144 bilhões entre 2018 e
2023. Como observa Nelson Marconi, coordenador do curso de graduação em
administração pública da FGV, “do ponto de vista social, os trabalhadores têm
perdas em termos de direitos, como férias, décimo terceiro e aviso prévio. Para
o lado da empresa, isso flexibiliza o mercado de trabalho e diminui encargos.
Mas, do ponto de vista econômico, tem um impacto muito forte na arrecadação.
Diminui o dinheiro para financiar políticas públicas.” (Desidério, 2025).
Esta
transformação nas relações de trabalho não pode ser compreendida como um mero
ajuste técnico ou jurídico no sistema produtivo brasileiro. Representa, antes,
um movimento histórico que ressignifica a própria noção de trabalho, alterando
profundamente os laços sociais e a consciência de classe dos trabalhadores. A
substituição do vínculo empregatício formal por uma relação comercial entre
empresas mascara relações de poder e dominação historicamente constituídas,
criando a falsa impressão de autonomia e empreendedorismo.
Como
argumenta David Harvey em seu estudo sobre a condição pós-moderna, o que
testemunhamos é parte de um processo mais amplo de acumulação flexível, que
impõe novas formas de controle do trabalho enquanto dissolve conquistas
históricas dos trabalhadores. “A acumulação flexível envolve rápidas mudanças
nos padrões de desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões
geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado
‘setor de serviços’.” (Harvey, 1992).
A
análise das perdas arrecadatórias decorrentes da pejotização revela não apenas
um problema fiscal, mas sobretudo uma profunda contradição no projeto econômico
vigente. As simulações apresentadas pelos pesquisadores da FGV indicam que,
caso metade dos trabalhadores CLT em 2023 se tornassem trabalhadores por conta
própria, a perda de arrecadação chegaria a mais de R$ 384 bilhões em apenas um
ano. Tal cenário, descrito como “extremo, mas possível” pelos próprios
pesquisadores, evidencia o potencial desestabilizador dessa prática para as
finanças públicas e, consequentemente, para a manutenção das políticas sociais.
A
historiadora Bárbara Weinstein, em seu estudo sobre a formação da classe
trabalhadora brasileira, nos lembra que “as transformações nas relações de
trabalho nunca são meros reflexos de mudanças econômicas ou tecnológicas, mas
constituem processos ativamente disputados, negociados e contestados pelos
diversos atores sociais envolvidos.” (Weinstein, 1996). A pejotização
contemporânea, portanto, deve ser compreendida como um campo de disputa onde se
confrontam interesses antagônicos e visões distintas sobre o valor social do
trabalho.
O
fenômeno da pejotização emerge não como desenvolvimento natural ou inevitável
das relações produtivas, mas como resultado de escolhas políticas deliberadas e
de interpretações jurídicas específicas. O crescimento exponencial do número de
trabalhadores por conta própria após a reforma trabalhista evidencia o caráter
induzido dessa transformação, que responde a interesses econômicos específicos
em detrimento da proteção social historicamente construída.
Ricardo
Antunes, ao analisar as metamorfoses no mundo do trabalho, argumenta que “o que
vemos hoje no Brasil é parte de um processo global de precarização estrutural
do trabalho, que combina o desmonte dos direitos sociais com novas formas de
gestão e controle da força de trabalho. A pejotização representa uma dessas
novas modalidades de precarização, que transfere para o trabalhador individual
os riscos e custos anteriormente assumidos pelo capital.” (Antunes, 1999).
A
dimensão moral dessa transformação não pode ser subestimada. Ao se
reconfigurarem as relações de trabalho sob a aparência de contratos entre
pessoas jurídicas, opera-se também uma profunda alteração nas expectativas
recíprocas entre empregadores e trabalhadores, nas noções compartilhadas de
justiça e nas práticas de solidariedade que tradicionalmente caracterizavam as
relações laborais. A economia, como sempre enfatizaram os historiadores sociais
britânicos, nunca é apenas uma questão de números, mas também um campo de
relações morais historicamente construídas.
Olivia
Pasqualeto, professora de Direito da FGV, observa com precisão um dos aspectos
mais problemáticos desse processo quando afirma que “quando o STF diz que
qualquer relação vai ser lícita, ficamos sem saber qual elemento vai
diferenciar uma coisa da outra. Fica nebuloso saber o que deve ser regido pela
CLT.” (Desidério, 2025). Esta nebulosa distinção revela-se não apenas um
problema técnico-jurídico, mas um sintoma da crescente descaracterização do
trabalho como relação social dotada de proteções específicas.
O historiador
Sidney Chalhoub, em seus estudos sobre trabalho, cidadania e direitos no
Brasil, nos oferece uma perspectiva valiosa ao afirmar que “as transformações
nas relações de trabalho no Brasil sempre foram mediadas por intensas disputas
políticas e jurídicas, nas quais os trabalhadores nunca foram sujeitos
passivos, mas agentes que continuamente reinterpretam e contestam as imposições
das classes dominantes.” (Chalhoub, 1986).
A
análise histórica do fenômeno da pejotização deve considerar não apenas seus
impactos econômicos imediatos, mas também suas implicações para a construção da
cidadania no Brasil. Ao se substituir a relação empregatícia formal por
contratos comerciais, fragilizam-se os mecanismos de proteção social que,
historicamente, serviram como porta de entrada para direitos sociais mais
amplos na sociedade brasileira.
Mike
Davis, em sua análise sobre o trabalho precário global, argumenta que “a
informalização e precarização das relações de trabalho não representam um
retorno a formas pré-modernas de exploração, mas constituem modalidades
inteiramente novas de extração de mais-valor, adaptadas às condições do
capitalismo financeirizado contemporâneo.” (Davis, 2006).
O
embate jurídico em curso no Supremo Tribunal Federal, que suspendeu todos os
processos sobre o tema até um julgamento definitivo, ilustra como as lutas dos
trabalhadores por reconhecimento e direitos se deslocaram para a arena
judicial. Este deslocamento, contudo, não diminui o caráter essencialmente
político e social da questão; apenas reconfigura os termos do conflito e os
espaços institucionais onde ele se desenvolve.
A
suspensão das quase 460 mil ações sobre reconhecimento de relação trabalhista
em 2024 representa não apenas uma questão jurídica, mas um momento crítico para
a reconfiguração das relações entre capital e trabalho no Brasil contemporâneo.
O resultado deste embate determinará não apenas o futuro imediato de milhares
de trabalhadores, mas estabelecerá precedentes para toda a classe trabalhadora
brasileira nas próximas décadas.
O
impacto da pejotização sobre o sistema previdenciário brasileiro revela uma
dimensão particularmente alarmante desse processo. Estamos diante de um
desmantelamento silencioso da seguridade social, operado não através de uma
reforma aberta e transparente, mas por meio de uma erosão gradual da sua base
de financiamento. Quando um trabalhador deixa de contribuir como empregado
formal e passa a fazê-lo como microempreendedor individual, a diferença de
arrecadação não representa apenas um número nas contas públicas – simboliza o
esvaziamento de um pacto social que, por décadas, garantiu dignidade a milhões
de brasileiros na velhice, na doença e na incapacidade laboral.
Este
esvaziamento ocorre em um contexto demográfico de envelhecimento populacional,
no qual a sustentabilidade da Previdência já enfrenta desafios consideráveis. A
pejotização, portanto, acelera e agrava uma crise anunciada, comprometendo a
viabilidade futura de um sistema que representa uma das maiores conquistas
sociais da história brasileira. Não se trata apenas de um problema fiscal, mas
de uma questão ética fundamental sobre o tipo de sociedade que estamos
construindo e os valores que a orientam.
A
história das relações trabalhistas no Brasil revela um padrão recorrente de
formalização precária, no qual direitos são concedidos no plano legal, mas
continuamente subvertidos na prática cotidiana. A pejotização contemporânea
representa um novo capítulo nessa história, com a particularidade de utilizar
instrumentos jurídicos formais – como a constituição de pessoas jurídicas –
para legitimar a evasão de obrigações trabalhistas e previdenciárias. O verniz
de legalidade que recobre essas práticas torna-as particularmente insidiosas,
pois dificulta seu reconhecimento como formas de precarização e exploração.
A
experiência histórica nos ensina, contudo, que as relações de trabalho nunca
são estáticas e que sua configuração depende fundamentalmente das lutas sociais
em curso. A pejotização, apesar de sua aparente solidez jurídica e econômica,
não está imune à contestação e à resistência dos trabalhadores. Novas formas de
organização coletiva já começam a emergir entre trabalhadores “pejotizados”
que, apesar da fragmentação de seus vínculos formais, compartilham experiências
comuns de precariedade e insegurança.
Este
movimento de ressignificação e reapropriação da própria condição de trabalho
representa uma continuidade histórica com as tradições de luta da classe
trabalhadora brasileira, que sempre encontrou formas criativas de resistência
mesmo nos contextos mais adversos. A compreensão desta agência histórica dos
trabalhadores – sua capacidade de interpretar, contestar e transformar as
condições de sua própria exploração – é fundamental para qualquer análise
crítica do fenômeno da pejotização que não se limite a reproduzir determinismos
econômicos ou legalismos superficiais.
O que
está em jogo, portanto, não é apenas uma questão técnica de classificação
jurídica de relações laborais, mas a própria redefinição do horizonte de
direitos e proteções que constituem a cidadania social no Brasil contemporâneo.
A disputa sobre a pejotização é, em última instância, uma disputa sobre o valor
social do trabalho e sobre a responsabilidade coletiva frente aos riscos e
vulnerabilidades inerentes à condição humana. Seu desfecho dependerá não apenas
de decisões judiciais ou políticas, mas da capacidade de mobilização e
organização dos próprios trabalhadores em defesa de um projeto de sociedade que
reconcilie desenvolvimento econômico com justiça social e dignidade no
trabalho.
Fonte:
Por Erik Chiconelli Gomes, em Outras Palavras

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